Há uma curiosa e muito fértil tradição na arte e na literatura brasileira do século XX (e que se mantém, bem ou mal, nas primeiras décadas desta época nova): ela poderia, quem sabe?, ser definida a partir da ideia da mistura, do amálgama de formas e afetos, de gestos e discursividades que pertencem, a um só tempo, aos extratos mais profundos da cultura popular, da vida e dos modos de expressão dos mais pobres, e às urgências e demandas estéticas da vanguarda, da arte erudita e do universo puramente especulativo. Nomes muito diferentes entre si como os do músico Rogério Duprat, do cineasta Rogério Sganzerla, do artista plástico Helio Oiticica e o de escritores como João Guimarães Rosa e Torquato Neto formam parte desse grupo possível, ao qual poderíamos dizer pertence, no presente, o poeta e multiartista mineiro Ricardo Aleixo, que neste ano de 2017 completa 25 anos de vida literária, uma vez que esse é o tempo que o separa de seu primeiro livro, Festim, de 1992. Sua obra (em processo, é preciso lembrar, “obra permanentemente em obras”, conforme propõe o próprio), do mesmo modo que a desses outros criadores, não procura efetuar uma síntese entre o dado popular, relacionado de algum modo à cultura de massas, e o impulso da forma de fundo intelectual. Apesar de alimentar-se desses dois grandes mananciais, seu trabalho não vai basear-se na conciliação de valores e tradições, como que resolvendo, no processo mesmo da escrita e da arte, a partir de imagens e metáforas precisas, contrariedades muito mais amplas, ligadas a questões de classe, raça e pertencimento institucional e mercadológico brasileiros. Ao contrário, a obra de Ricardo Aleixo, como antes haviam sido as de Torquato e Oiticica, por exemplo, apostam no impasse e no experimentalismo, na frequentação ambígua de múltiplas origens e linguagens, diversos discursos que se somam em seus trabalhos sem, necessariamente, apagar seus traços e valores específicos.
A impureza e a contaminação parecem ser os seus aspectos mais significativos, aquilo mesmo que define essa estranha tradição entre nós: as obras que dela derivam – e a poesia de Aleixo confirma a cada passo esses elementos, modificando a equação proposta, ampliando as fronteiras do texto e da criação poéticas, propondo algo que, conforme adiante ficará mais claro, o autor chama de “poesia expandida” – são profundamente experimentais, procurando renovar, pela pesquisa estética e pelo inconformismo ideológico, os meios de expressão e a história das linguagens e do pensamento no Brasil. Não são obras que procuram a comunicação fácil e a adequação a padrões de gosto reconhecíveis à primeira vista, como qualquer um que tenha escutado os acordes vigorosos e a melodia insidiosa de A banda tropicalista (1968), ou assistido à torrente de imagens que se colam e sobrepõe umas às outras em O bandido da luz vermelha (do mesmo ano de 1968), pode perceber. Sem necessariamente recusar o diálogo com o grande público, encerrando-se num jogo formal hermético e autorreferente, mas sem no entanto buscá-lo a qualquer preço, Aleixo e os demais artistas dessa pequena lista (elenco com certeza incompleto) fazem da vivência de temas e questões da cultura popular a mola propulsora, a fagulha inicial para a exploração muito consciente que fazem das formas e modos discursivos inusuais, da experimentação em torno de texturas e sonoridades outras. No caso do poeta mineiro, são duas as marcas mais visíveis dessa passagem pelo arcaico e pelo popular em sua obra: de um lado, a presença da rua, das vias periféricas de uma grande cidade qualquer – e seus sons e personagens; de outro, a cultura negra, os mitos, valores e modulações do corpo negro, que ao mesmo tempo se atualiza no presente brasileiro da exclusão e do racismo e se soma aos incontáveis corpos e movimentos ancestrais que atravessam e dão forma, também no presente, aos gestos do homem e às palavras do escritor.
Nascido em Belo Horizonte em 1960, Ricardo Aleixo habita desde sempre um espaço que ele mesmo prefere definir como uma espécie de “centro excêntrico”: situada no coração da região Sudeste, a mais rica do país e onde alguns dos investimentos e aparelhos culturais mais importantes estão fixados, a capital de Minas Gerais, no entanto, guarda distância relativa (alguns quase dirão prudente) em relação às disputas, grupos e contradições mais abertas que têm lugar no eixo Rio-São Paulo. Conectada ao que acontece nesses dois grandes centros, próximo deles, mas flutuando mais livre de suas injunções e constrangimentos, o poeta, como parte dos escritores e artistas surgidos em Minas ou outras margens do país, desfruta de largo espaço de autonomia em relação às disputas territoriais de poder e visibilidade, podendo entregar-se à impureza e às formas da contaminação criativa que tanto o parecem interessar. O passeio pelo espaço incontrolável da rua e pela memória arcaica da diáspora africana que sua obra faz de mistura ao estudo demorado da poesia visual, dos jogos sonoros e imagéticos de extração concreta, da busca expansiva por modos de criação que passem pelo corpo em performance e pelos torneios vocais, talvez possam ser explicados por aqui, uma vez que o artista, deslocado e algo desarraigado na periferia de BH, sem o impulso e também sem os limites da vivência criativa que um grupo organizado colocam, pôde entregar-se à exploração sistemática e estudada das múltiplas tradições que lhe chegavam e a que sentia pertencer.
Como habitante da periferia e homem comum, pôde localizar nos moradores de rua, camelôs, artistas ambulantes (os Modelos vivos que dão nome a um de seus mais importantes livros, de 2010) e demais figuras marginalizadas alguns dos personagens que povoam seus poemas: o menino veloz, meio pick pocket, meio Exu de Cine-olho, por exemplo; os passeadores de uma Berlim ensolarada e saturada de História com quem o poeta cruza, a pé, num poema emblemático como Máquina zero, texto fundamental do livro de mesmo título, de 2004; ou ainda o mendigo com quem se encontra e troca respeitosas saudações de reconhecimento mútuo, como vai aparecer num poema de Antiboi, seu mais recente livro, lançado em julho deste ano. Como poeta-inventor, interessado nos ecos da vanguarda e nos gestos criativos que propõe o novo e o estranho ao leitor-espectador, Aleixo lançou-se aos limites da linguagem verbal, chegando mesmo a explodi-los, num certo sentido: desde o início, seus poemas passam pelo minimalismo e por uma visualidade inquieta, incorporando também, como no livro escrito em parceria com o poeta mineiro Edmilson de Almeida Pereira, A roda do mundo, de 1996, os mitos e sonoridades africanas, formando uma massa sonora sofisticada e incomum, plena de palavras e nomes próprios que remetem ao traço arcaico da cultura negra, seus ritos e religiosidades ferozes, no mesmo passo em que deslocam a percepção do leitor usual de poesia.
Dos extremos de uma tradição excêntrica e pouco conhecida na lírica brasileira, o poeta se encaminha de maneira mais decidida para a performance e o canto, para uma poesia que se faz dentro e fora do livro, que é corpo e letra ao mesmo tempo. Informado, é certo, do estado da arte da performance e dos espetáculos letrados que mundo a fora se produziam, Ricardo Aleixo no entanto não experimenta apenas no rastro do que de mais interessante se fez e fazia no gênero, mas procura inventar, a partir dos seus próprios recursos (tantas vezes precários) e dos saberes que o formavam e informavam, os modos de performar os seus textos, refazendo-os completamente, escrevendo-os no ar com os movimentos dos braços, pernas e cabeça (como uma “corpografia”, segundo o autor define no poema-ensaio Poemanto, de Modelos vivos, processo de dança-escrita que os frequentadores da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty puderam ver neste ano, numa das apresentações que o poeta fez na série do festival intitulada Fruto estranho, e que reuniu também nomes como os de Josely Vianna Baptista, Adelaide Ivánova e André Vallias, entre outros), atravessando-os com o som de instrumentos improvisados, objetos que se transformam em moldura sonora para a criação poética, a articulação – a modo de colagem – de sonoridades e palavras, versos que se repetem e misturam a canções, trechos de textos alheios, onomatopeias e silêncios: tudo isso se combina na prática expansiva do autor, que age nesses momentos sobre o palco (qualquer espaço, na verdade) como uma espécie de DJ de si mesmo, de sua voz: quem já o assistiu em performance pôde ver como fragmentos de dois, três poemas seus se combinam, por exemplo, a trechos de sambas cantados por ele, que acelera e recua, expande e alonga a duração das palavras de modo a desfazê-las por completo, inoculando musicalidade e outros significados ao texto antes puro recitativo, texto que passará então a habitar a fronteira incerta que, conforme o próprio Aleixo propõe, na esteira do que críticos e teóricos e outros artistas também têm feito, é o território da “poesia expandida”, aquela que se faz a partir e em direção ao livro, mas que igualmente recupera, em chave diversa e sempre surpreendente, as origens imemoriais da arte poética, que antes de ser texto impresso e leitura silenciosa era voz e gesto, corpo e presença.
Seus dois últimos livros, Impossível como nunca ter tido um rosto, de 2015, e o já citado Antiboi, vão na direção das pesquisas expansivas e das apresentações multimidiática que têm marcado a trajetória recente do artista. Em ambos os livros têm retornado, com força e insistência, reflexão sobre o racismo e a violência do Estado contra as populações negras. Sem necessariamente se deixar ler de modo cerrado pelas demandas de uma produção ligada à militância política e aos compromissos públicos com o discurso das minorias, Ricardo Aleixo, artista negro, intervém na cena e no debate com os instrumentos que lhe são próprios: a desautomatização da língua e a subversão daquilo que, nela (língua, linguagem, modos de pensar e sentir pela palavra, de perceber o mundo como texto), é excesso e engessamento, é esquecimento e mistificação. Num poema como Na noite calunga do Bairro Cabula, onde a partir do mito e da quase homofonia entre termos tão distintos quanto calunga (infinito, inesgotável) e Cabula, bairro de Salvador e palco de um massacre recente, no qual, em 2015, a polícia militar assassinou 13 jovens negros, Aleixo consegue dar voz e visibilidade à chacina, em franca denúncia de seu caráter racial e continuado, verdadeira política de Estado em relação à juventude negra da periferia das grandes cidades, ao mesmo tempo em que conseguiu, em dísticos rigorosamente construídos, elaborar uma partitura tensa em torno da qual o canto, a dimensão propriamente performática e vocal da sua poesia se recobria de sentidos políticos mais imediatos e evidentes. O mesmo ocorrerá em Meu negro, poema em prosa e forma visual inquietante – caracteres brancos se inscrevem sobre um fundo negro, página preta que contrasta com as demais do livro – no qual Aleixo enumera, entre irônico e reflexivo, os muitos nomes e qualidades ambíguas que definem um negro no Brasil (e não apenas): a violência da apropriação, da definição apriorística, dos estereótipos sociais e sexuais, comparecem no texto de modo incômodo, devolvendo ao leitor, reelaboradas, muitas das ideias e expressões que circulam como veneno sutil na linguagem e no tecido social mais corriqueiro. Ética e estética, nesse caso e em toda a sua obra, são uma coisa só, sendo também, segundo o poeta indicou em entrevista a Reuben da Rocha, uma poética, isto é, lugar de encontro e articulação, no plano específico da forma e da ação, de elementos éticos e estéticos.
Antiboi, como o nome já indica e o poeta em conversa reafirma, é índice crítico de negatividade, marco de um momento sombrio, no qual velhas tensões políticas e novos disparadores de conflitos sociais parecem explodir com muita força, dando ensejo ao retorno e à reinscrição de práticas violentas e punitivas, modos de exclusão e silenciamento do outro que vão atingir, como sempre ocorre, os estratos mais vulneráveis da população brasileira, aqueles que, historicamente desprotegidos e atacados (os negros, as mulheres, a comunidade LGBT, os moradores das periferias), são os primeiros a novamente ter os seus direitos mínimos cerceados. Inscrito nesse tempo fraturado – os poemas foram compostos, segundo Aleixo, depois do turbilhão de 2013 – e disposto a pensá-lo, o livro se apresenta a partir de inúmeros poemas de circunstância, aparecendo como resposta estética do autor às muitas solicitações do mundo atual, às contradições em que o país mergulhou depois da derrubada (no Congresso, num desarranjo dos acordos políticos até então vigentes) da presidenta eleita Dilma Rousseff. Mais uma vez, será pelo amálgama tenso entre experimentação e cultura popular que a voz do escritor se afirmará, na medida em que as canções e festejos tradicionais de Parintins se transformam, a partir de um processo sofisticado de depuração e deslocamento, em índices de uma vida (a vida precária dos mais pobres, em especial) na qual nada é caprichoso/ nada é// garantido. De modo curioso, no entanto, a um diagnóstico algo terrível dos dias que correm, o poeta irá recorrer, para cobrar ao mundo a pequena parcela de esperança a que parece ter direito, à memória dos pais e à imaginação do futuro dos filhos. Em poemas que desenham a ideia de transmissão e herança, de continuidade e passagens, ele se dobra às lembranças ternas da mãe, de cuja voz, diz, se recorda mais do que nenhuma outra, da habilidade que tinha em falar, encadear histórias. Pensando, amedrontado e infantil, em qual dos dois, pai ou mãe, morreria primeiro, o poeta projeta a perda inevitável ao mesmo tempo em que se vê em antecipação sozinho, com outra família a que também pertencerá, cheio de responsabilidades e alegrias. A negociação dos tempos que Antiboi propõe, a dureza do agora saturado de contradições contra, literalmente contra, o tempo dilatado da memória e da imaginação, é uma das chaves do livro, contraponto e modo de potencialização íntima do que nele é discurso público, intervenção crítica.
No período mais recente, como consequência dos 25 anos de publicação do seu primeiro livro, e em resposta ao crescente reconhecimento público de uma obra que encontra acolhida no Brasil e no exterior, o trabalho poético de Ricardo Aleixo, é possível dizer, passa por um processo de releitura e consagração acadêmica e editorial. Não que lhe faltassem leitores dedicados e atenção da Universidade. Acontece que o número cada vez mais expressivo de convites para palestras e performances, a presença pública do escritor que aumenta e se faz necessária por parte de leitores, editores, tradutores e amantes da poesia, vão dando a medida de uma obra que, continuamente celebrada nos círculos especializados como uma das mais importantes trajetórias artísticas da sua geração – certamente Aleixo é o poeta mais importante que Belo Horizonte, ponto de passagem de tantos outros poetas relevantes na cena nacional, foi capaz de produzir nas últimas décadas – passa agora por celebração e reproposição, termos que em nenhum momento significam a transformação sem arestas do seu texto (ou da sua imagem) em matéria de consumo descartável, fácil e não problemático. Ao contrário. O que se vê, talvez, tem a ver com a complexificação do debate sobre poesia entre nós, no qual o lugar do poeta, seu destino público, as estratégias de divulgação e consumo, as investigações sobre a natureza mesma do texto poético, seus limites e potencialidades, são discutidas com mais ênfase e intensidade, num momento em que se assiste, incontornavelmente, o retorno e o crescimento do interesse por um gênero que tantas vezes, e de modo rasteiro, teve decretado o seu fim, assegurado o seu cancelamento social e a sua desimportância. Nesse contexto, a obra de Ricardo Aleixo, acima de tudo um poeta-pensador, alguém que intervém criticamente na cena, configurando muitas das suas questões mais urgentes, encontrou e vem encontrando repercussão e desdobramento, o que colocou o poeta, mais recentemente, num lugar ao mesmo tempo privilegiado e difícil, posto que sua trajetória sintetiza questões do tempo ao passo em que se propõe a rasgá-lo, desfazendo a sua trama e expondo o que nele é convencionalidade e contradição.
Uma das marcas mais evidentes desse processo de reproposição e novas leituras porque passa a obra de Aleixo é a publicação, nos primeiros meses de 2018, de uma antologia de seus poemas pela editora Todavia. Seu livro, provisoriamente nomeado Pesado demais para a ventania, conforme informa o poeta, foi escolhido para abrir a coleção dedicada à poesia que a editora pretende lançar já no primeiro semestre do próximo ano. Reunindo textos de todos os seus livros anteriores, o volume vem sendo preparado pelo autor e irá assinalar, segundo ele, um momento importante de balanço e reinvenção, na medida em que permitirá ver, com atenção, a trajetória percorrida, ao mesmo tempo em que se poderá imaginar, a partir daí, desse arco de texto e ideias, os caminhos dos textos e performances que virão. Até aqui quase sempre publicado por casas editoriais de Belo Horizonte, ou mesmo auto-editado, como ocorreu com Impossível como nunca ter tido um rosto, o poeta passará a ser distribuído mais facilmente em escala nacional.
A entrada na cena em outro circuito lança o experimentalismo e a forma exigente de Aleixo em direção a um público mais amplo, que poderá tanto se reconhecer na sua poesia quanto estranhar-se, e passar a ver, a partir da lente fornecida pelo rigor e pela vitalidade que marcam essa obra, algo que lhe falta e que se revela necessário. Independente de qual será e como se dará a relação de um público potencialmente mais amplo e diversificado à poesia do autor de Trívio, o que parece ser decisivo, nesse momento, é a pura presença dos seus versos no centro do mercado editorial e das engrenagens que, de um modo ou de outro, participam do trabalho de circulação de ideias no país. A voz de um autor complexo e pouco afeito às negociações às vezes excessivamente centradas num eu que se expressa veloz tem, quem sabe?, muito a dizer sobre o papel político da linguagem poética, sua capacidade de resistência à comunicação banal e inexpressiva que, mais do que qualquer outra coisa, reproduz os discursos do poder e seus trejeitos imperceptíveis. A voz e o corpo de um escritor negro, com todas as questões já mencionadas, têm muito a dizer e muito a expor, ainda que a partir de um lugar incômodo. Espécie de veneno-remédio para os tempos que correm, a poesia de Ricardo Aleixo pode contribuir com o necessário processo de demolição crítica do que há de estanque nas formas de representação e nas configurações do pensamento sensível entre nós. E sua poesia pode também repropor o valor enorme das palavras, num contexto no qual, tantas vezes, ele parece ter sido esquecido. Seus textos, performances e experiências inclassificáveis com o verbo e com o corpo (“tudo é texto”, recorda O poemanto: vide o mapa genômico) colocam de novo a todos o risco que está implicado nos atos de ler, escrever e vozear um poema. Parece pouco, se visto de longe. Mas é imenso.