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São Paulo, 8 de dezembro de 2017

 

O avião vai deixando silenciosamente Santiago e o país de Enrique Lihn, Vicente Huidobro, Gonzalo Rojas, Gonzalez Vera, Gonzalo Millán, Carlos de la Rokha, Elvira Hernández, Roberto Bolaño, Carlos Pezoa Veliz, Gabriela Mistral, entre incontáveis poetas que o Chile concebeu e segue gestando. Às minhas costas vai ficando a sóbria capital, encalacrada entre a cordilheira e a ideia do mar, entubada num mapa estreito, cujo fluxo de ar encontra apenas uma direção, norte–sul, para correr, cidade fechada, cidade poética. Apesar do estômago liricamente retorcido — potencializado pela turbulência, frequente no trânsito sobre os Andes —, agrada-me o fato de transportar em minha bagagem excertos de uma biografia poética recolhidos em solo chileno.

Ainda que a imprensa e a academia tenham demonstrado um interesse persistente por escavar resenhas de sua vida, a verdade é que, apesar das habituais enumerações de filhos e romances, sabemos pouco sobre Nicanor Parra [nota 1].

De estatura mediana,
Com uma voz nem fina nem grossa,
Filho mais velho de professor primário
E de uma doméstica costureira;
Magro de nascimento
Ainda que devoto de uma boa mesa;
De face esquálida
Mas, sim, abundantes orelhas;
Com um rosto quadrado
Onde as pálpebras se abrem pequenas
E um nariz de boxeador mulato
Sobre uma boca de ídolo asteca
-Tudo isto banhado
Por uma luz entre irônica e pérfida-
Nem muito esperto nem doido varrido
Fui o que fui: uma mescla
De vinagre e azeite de oliva
Um embutido de anjo e fera! [nota 2]

Faz cinco anos, bastou-me uma breve pesquisa, e a internet me cedeu dados geográficos suficientes para eu endereçar uma viagem que teria como destino buscar o poeta. A casa de Nicanor Parra fica incrustada num dos braços da pequena baía de Las Cruces, a 100 km de Santiago, onde a rua Pedro Ilich cruza com a Lincoln, configurando no mapa uma cruz meio torta. No percurso inclinado da rua que leva a este entroncamento, quase não há transeuntes, ouvem-se apenas as ondas quebrando nas rochas e o ruído do sapato roçando as pedras da vereda. O pedestre, desde a rua, vê o mar nas brechas esparsas entre as casas que se afundam nos lotes. O céu sobre o Pacífico é sempre de um azul pesado, turvo, moldado pelo vento frio e insistente. A vegetação costuma ser triste, de tonalidade escura, verde-oliva em contraste com o solo bege, claro e seco. Sujo de poeira, parado em frente a um portão branco, o famoso fusca prateado do poeta. A casa de Parra fica alguns degraus abaixo do nível da rua: encaixada na topografia, aproveita-se da inclinação do terreno para se abrir sobre o mar. Na fachada oposta, que eu não via, imaginava uma grande varanda, sobre a qual estariam dispostas algumas cadeiras confortáveis em que o poeta, agasalhado, observaria o oceano.

No entanto, na altura de meus olhos, o mar estava encoberto pela superfície do telhado escuro da casa, cujas pequenas telhas de madeira são típicas da arquitetura autóctone chilena. Uma cerca baixa divide a rua do pequeno jardim em desnível, onde sobressaem uma macieira e uma espécie de palmeira do frio, de casca grossa e copa espinhosa. A casa é construída sobre uma base de pedras encorpadas que se estende configurando um platô que a contorna. As pedras formam, em frente à porta de entrada, um pequeno alpendre, sobre o qual pousam duas cadeiras metálicas de estofado de plástico roxo. E, na porta de madeira maciça, a inscrição em spray negro que diz: “antipoesia”.

No nível da rua, à esquerda da casa, uma garagem para um carro só, feita de tábuas, parecia ter sido transformada numa espécie de escritório ou refúgio de trabalho. Um pouco deslocada da implantação da casa, também desfruta de ampla vista sobre o Pacifico. Para minha surpresa, pela janela de vidro na esquina dessa pequena construção, pude ver Nicanor, sozinho e descabelado, frequentando as palavras.

Não é possível — pensei – o que faço eu aqui a perseguir esse poeta? Tudo era descaradamente quimérico, mas também tão profundamente literário. Nicanor estava ali?, Dentro daquele pequeno ateliê?, A tão poucos metros de mim? Fui invadida por uma proverbial timidez, não podia suportar a ideia de tocar sua porta e balbuciar qualquer asneira sem propósito. As palavras desapareceram num branco hostil. Se, por um lado, existia uma solicitação interna que me provocava ao confronto e reprimia uma espécie de cerimônia, por outro, o deleite daquele quase encontro já se fazia pleno.

Fui pega de surpresa, mesmo tendo percorrido todo o trajeto entre minha casa, no centro da cidade de São Paulo, e a sua, num corte do Atlântico ao Pacífico, eu não me sentia capaz de encará-lo. Desci caminhando até o povoado, sentei-me num pequeno restaurante em frente à praia, cuja varanda pouco generosa estava exposta à violência do vento pacífico que fumou meus cigarros. Enquanto contemplava a água da baía convertida numa fumegante lâmina negra, tomei uma garrafa de vinho branco e escrevi, ainda embriagada, numa vaga e dispersa tentativa de entender o que acabara de passar. Estava acometida pela imagem poética que eu criara, confiante na legitimidade e romantismo de meu quase-encontro com Nicanor. Na realidade, tudo, absolutamente tudo a esta hora parecia muito lento, moroso, ensanguentado pelo crepúsculo daquele lado do paraíso.

 

*

Uma série de coincidências impediu que meu relato terminasse aqui. Anos depois, a profissão me levou outra vez em direção a Nicanor Parra, como se eu tivesse arquitetado, naquele antiencontro poético, uma linha invisível que me ataria a ele. Meu poeta favorito faria 100 anos [nota 3] e eu estaria no Chile.

Junto a meu amigo Alejandro Zambra [nota 4], numa manhã fria de verão, seguimos calados em seu carro rumo a Las Cruces, naquele mesmo ponto da longa costa chilena em que eu havia estado alguns anos antes. Dessa vez, 5 de dezembro de 2014, Nicanor sabia de nossa visita, que havíamos estabelecido para as 12h, podendo se estender para um almoço, com sorte um café com sobremesa.

A estrada atravessava uma silhueta pedregosa e melancólica, com raras e solitárias casas varridas pelo vento cortante. Enquanto ele dirigia, eu hesitava entre a paisagem ainda ensopada pelo sereno, que deslizava pela janela, e o pequeno caderno que eu preenchia de borrões, cuja ilegibilidade era acentuada pelo tremor da estrada e pela confusão mental da ansiedade. Meus hábitos de arquiteta não me deixam esquecer um trajeto percorrido, e eu me lembrava nitidamente do caminho a La Torre de Marfil [nota 5].

Com o telefone, tirei uma única foto da fachada da casa, daquela mesma vista que eu contemplara sem tocar alguns anos antes. Quem abriu a porta foi La Colombina, caçula do poeta, que nos convidou a entrar manifestando um sorriso entre amável e desconfiado. Ofereceu um abraço afetuoso a Alejandro, perguntou-me se já nos conhecíamos e me estendeu a mão. Conduziu-nos por um saguão de pedra, gelado como meu estômago, e nos indicou a porta à esquerda, que nos levaria à sala. Alejandro com sua camisa azul escura guiou a procissão, eu me ocultava retraída detrás de seu tamanho, o que, no entanto, não me impediu de ver, contra a luz branca que vinha da janela, surgir a silhueta descabelada do poeta, que minhas pupilas custaram a focalizar. Ele nos esperava no sofá, no fundo da sala abafada, amortecida por tapetes e quadros. Esguio e elegante, Nicanor se pôs de pé apoiando a mão esquerda na mesa de centro, ergueu o rosto quadrado e ofereceu os braços ao escritor amigo. Por cima dos ombros de Alejandro, espiou-me. Fiz uma pequena reverência e me aproximei desejando o abraço. Num gesto infantil de quem se entrega confiante aos braços de um adulto, mergulhei no volume de roupa que recobria seu corpo magro e ereto. Ali, entocada, apertei com minha mão esquerda a sua direita com força, a tempo de refrear as lágrimas que se mantiveram na borda de meus olhos até a final do dia. Senti seu cheiro. Afastei meu corpo trêmulo e completei a saudação com um breve movimento afirmativo com a cabeça e um sorriso sem mostrar os dentes. Eu havia tocado a pele da criatura que me concedera, sem saber, o maior prazer da poesia. Nicanor vestia uma calça verde como o sofá e casaco bege sobre um pijama azul claro, cujo colarinho despontava sob a gola arredondada da caxemira. Quando soltei sua mão, ele voltou a sentar-se no sofá contra a janela, Alejandro buscou uma cadeira de madeira e eu me acomodei no sofá ao lado, completei um respiro, olhei a janela que enquadrava o mar, segurando bravamente aquela volúpia triste, um segundo após o êxtase. Depositei sobre a mesa meu caderno de notas e algumas folhas preenchidas de perguntas estratégicas que nunca foram feitas. Nicanor tem 100 anos para contar, uma biblioteca copiosa em sua memória e uma irreverencia paqueradora que não necessita auxílio temático para disparar seus gatilhos. Observando meu caderno sobre a mesa, perguntou-me se eu era jornalista, e al tiro disse, num tom acusatório, que não gosta de entrevistas e ainda menos de jornalistas — que, segundo ele, distorcem tudo o que diz —, que os questionários soam como interrogatórios e que prefere respeitar os tempos naturais das conversas.

“Joana é sua tradutora ao português”, intervém Alejandro a tempo. Nicanor me olha agora com menos desconfiança, mas, ríspido, retruca: “Eu não leio as traduções de meus poemas, elas devem ser una expropriación revolucionária, quando traduzidos, já não me pertencem mais”. E me piscou um olho.

Digo as coisas como elas são
Ou sabemos tudo de antemão
Ou não saberemos nunca absolutamente nada.

A única coisa que nos permitem
É aprender a falar corretamente [nota 6].

Um olhar inadvertido pode deixar passar despercebida uma infinidade de pequenas intervenções poéticas que Nicanor dispõe em sua casa. Disfarçadas em meio a uma sala aparentemente comum, dispostas sobre objetos banais, estão pequenas legendas provocativas que o poeta escreve à mão. Renomeados, passam de objetos monótonos a subversivos. Em frente à lareira metálica, debaixo de um crucifixo pintado de preto, a epígrafe: “Vou e volto”. Sobre a foto de grupo, provavelmente da formatura do colegial, repleta de jovens garotos de cabelos lustrosos, pousa outro papel que diz: “Todas iríamos ser rainhas”, em referência ao título de um poema de Gabriela Mistral; sobre um quadro do pintor surrealista Roberto Matta, que acomoda uma dedicatória a Nicanor, o registro: “O Parra Matta”. Esses crachás antipoéticos [nota 7] espalhados pela casa nos fazem redescobrir cada objeto numa espécie de desafino conceitual, terno e violento, mas sempre saborosamente insuspeito. A casa do poeta é em si subversiva, constrói configurações linguísticas que contêm suas próprias leis. A sensação é de que são analogias de que o leitor necessitava, algo que andava buscando, como diz o próprio Nicanor: uma agulhada na medula.

 

 

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*

Nicanor deliberava fluidamente sobre o panorama literário e a conjuntura era adequada para o prolongamento de temas que salpicavam poesia, música popular e tudo aquilo que frequenta o debate sobre linguagem e semiótica. Os 100 anos que recém-completara não turvavam sua memória nem agilidade. Para mim, estava claro que não visitava o poeta a fim de discutir questões de meu trabalho como tradutora, e, sim, para escutar o que lhe desse na telha, que seguramente enriqueceria meu repertório para traduzi-lo.

Quando estivemos a sós, Nicanor sacou um álbum de fotografias e me narrou seu século de encontros, amantes, viagens e desavenças. Eu não seria leviana de tentar reproduzir suas palavras, mas havia algo na forma de sua fala que me intrigava. Os hiatos em seu colóquio não eram apenas pausas que visam suspense narrativo ou meras estratégias para o desenvolvimento do discurso, havia algo mais que me escapava, a voz dele soava num ritmo familiar, porém diverso de qualquer outro interlocutor com quem eu já havia estado. Notei então um movimento sutil em sua mão direita, que saltando de dedo em dedo acompanhava o ritmo das sílabas que lhe saíam da boca. Acreditei entender o que eu intuía, mas também é certo que isso me parecia um pouco estranho e obsessivo de minha parte. O poeta conta as sílabas de sua fala? Será possível que a poesia encharque também seu idioma oral? Entrei numa espécie de transe mental e certa hiperatividade cerebral: sim, Nicanor conta as sílabas que pronuncia! O poeta fala em verso.

Como em seus poemas, aparentemente falados, com uma sintaxe ao que tudo indica coloquial, a fala de Nicanor tem um fluxo que, metricamente, corresponde ao decassílabo ou a uma medida muito próxima a ele. Talvez não estejamos acostumados a prestar atenção à forma da fala e o que apreendemos mais diretamente é a palavra, a sintaxe, o que é dito. Quiçá porque num contexto de linguagem oral, imprevisível, não se esperam regularidades. Mas a métrica em Nicanor Parra — tanto em sua poesia como em sua fala ordinária — é elemento de fundo, uma mão silenciosa que soma.

Nesse instante memorável, estive, com efeito, em frente a meu antipoeta obsessivo, como jamais imaginara. Dei-me conta de que os paradoxos, descobertas e experimentações do século XX se personificavam de alguma maneira nesse sujeito, cuja espessura histórica me escapava às mãos... Nicanor leva a cabo a ideia de dissolução das fronteiras entre arte e vida, tem plena compreensão do poder da imagem, da concisão e da ironia, tem apreciação estética apurada em relação à complexidade e à contradição. Como pode um homem, ao completar 100 anos, ser fundamentalmente contemporâneo? Essa e outras perguntas me esquentavam o cérebro durante aquele dia, mas, acrescendo apenas que, quando a noite ia caindo, surrupiei sua caneta esferográfica que pousava sobre a mesa e me despedi beijando a sua mão que escreve.

***

A antologia com a obra de Nicanor Parra será lançada no Brasil no 2º semestre de 2018 pela Editora 34, com tradução de Joana Barossi.

 

NOTAS

[nota 1]. Nicanor Parra, nascido em San Fabián de Alício, em 1914, ganhador do Prêmio Cervantes e diversas vezes cotado para o Nobel, é quiçá a figura mais importante na história da poesia hispano-americana contemporânea. Mesmo que pareça, esse não é um simples juízo de valor, nem é mais uma das hipérboles que decoram os prólogos e contracapas: basta folhear qualquer compêndio de história da literatura para saber que a publicação, em 1954, de Poemas e antipoemas mudou o rumo da poesia hispano-americana. Segundo Niall Binns, grande estudioso de sua obra, há um antes e um depois de Parra. Em termos gerais, o poeta é pouco conhecido pelos leitores brasileiros, não apenas por não haver sido traduzido ao português, mas também porque no Brasil a poesia ocupa uma posição bem discreta, digamos, na vida cotidiana e mesmo cultural. O Chile, por sua vez, transpira poesia. Seria o equivalente à música no Brasil: lá se discute poesia na mesa do bar, os taxistas têm suas preferências, os poetas são notícia de capa de jornal.

[nota 2]. Epitáfio (Poemas y antipoemas, 1954).

[nota 3]. 5 de setembro de 2014.

[nota 4]. Alejandro Zambra é poeta e escritor chileno.

[nota 5]. Nicanor tem o costume de renomear as coisas ao seu redor, como no poema Mudanças de nome, “O poeta não cumpre sua palavra / Se não muda o nome das coisas”, criou seu próprio vocabulário, e os entes queridos e objetos de empatia acabam por receber novas alcunhas: sua casa é chamada por ele de Torre de Marfim.

[nota 6]. Cartas do poeta que dorme numa cadeira, Otros Poemas, 1950–1968.

[nota 7]. Essas sutis e compulsivas intervenções contêm o mesmo jogo de regras da antipoesia que o poeta desenvolveu em grande parte de sua obra. Elas me levam a pensar em outras famílias de artefatos, que vêm da revolução objetual que se inaugurou com Picasso em meados de 1912 — com suas construções e colagens —, e que os dadaístas e surrealistas exploraram a fundo. Naturalmente, a figura de Marcel Duchamp têm neste âmbito uma importância incontestável, pois ele conseguiu, por meio de seus readymades, que as coisas pudessem remeter simultaneamente a vários universos conceituais radicalmente diferentes. Parra, nesse âmbito, também extrapola a lógica combinatória das colisões: das palavras entre si, dos objetos com os objetos, e dos textos antipoéticos com as coisas sublevadas de sua servidão original.