Na desorganização dos recém-chegados da livraria, duas caixas no topo de uma pilha atraem minha atenção: são dois blocos imponentes ainda plastificados, sobrepostos, formando entre eles um ângulo de 90 graus; uma estrutura sólida que destoa da pilha vertical e irregular, composta pelos livros fininhos, em sua maioria de poesia contemporânea, ao lado. Trata-se dos volumes de Poesia Completa e de Crônicas de Educação, de Cecília Meireles, ambos lançados pela Global Editora no final do ano passado. Aparentemente na contramão do projeto editorial de publicação dos poetas modernistas empreendido nos últimos anos, ela retorna às livrarias em edições monumentais, mantendo a imagem de uma poeta [nota 1] de peso, indiscutível.
Com acréscimos e atualizações em relação às edições anteriores, os dois volumes que reúnem a totalidade de sua obra poética são, entretanto, apenas parte de um ambicioso plano de reedição iniciado em 2011, depois de 30 anos de uma complicada disputa judicial entre herdeiros. O início do projeto editorial, que botou em circulação novas edições de seus livros de poesia, coincidiu, inclusive, com um investimento editorial mais amplo de retomada do modernismo brasileiro. Obras de grandes poetas como Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Murilo Mendes e Jorge de Lima voltaram a ser publicadas em edições autônomas com novos projetos gráficos e fortuna crítica.
Se, por um lado, eu tinha passado os últimos meses formando pilhas de autoras no canto direito da minha escrivaninha, guiada pela necessidade de conhecer cada vez mais literatura escrita por mulheres (sobretudo minhas contemporâneas), e assim criar a possibilidade de revolver o cânone literário majoritariamente branco e masculino que fui consumindo em minha formação; por outro, lá estava eu torcendo o nariz para Cecília Meireles. Consciente de uma história literária em que as mulheres consagradas por escrever poesia se contam nos dedos, lá estava eu reafirmando o cânone estabelecido sem nem ao menos ter a generosidade de voltar e olhar com mais atenção para o conteúdo daquelas caixas imponentes. Os volumes ainda plastificados no topo da pilha e eu me perguntando com sinceridade: o que, afinal, eu conhecia de Cecília Meireles? Três ou quatro poemas lidos em livros didáticos ou na internet e o tal poema da Bailarina (que sabe-se lá porque eu sei quase inteiro de cor).
“Cecília Meireles” - Eis um nome que passou batido na minha formação na faculdade de Letras e esteve distante de todas as minhas leituras eleitas nos últimos 10 anos. Vou além: quem fala dela hoje em dia? Claro, não me refiro aos especialistas ou de lições de literatura do Ensino Médio. Se não faltam autores contemporâneos para colocarmos no baú dos drummondianos e do cabralinos, Cecília parece não ter deixado herança significativa mesmo sendo – ou talvez justamente por ser - “o lugar em que a mulher começa a se localizar em poesia”, como nos lembra Ana Cristina César. Assim, a pergunta que me guia de forma um tanto subjetiva ao longo deste texto, sem nenhuma pretensão de esgotar a questão: existe algum interesse em / espaço para / modo possível de reler Cecília Meireles hoje em dia? Um interesse em atualizá-la para além do espaço já estabelecido pelo seu cânone?
ESSA PALAVRA DE LUXO
Começo tentando situar o lugar onde estamos: existe incômodo e também ignorância nesse frágil ponto de partida, mas a prosa crítica de Ana Cristina César garante um espaço para começarmos desdobrar uma discussão ainda muito atual. Faço referência ao ensaio, publicado no final da década de 1970, Mulher e Literatura: essa palavra de luxo, no qual a relação entre os gêneros poético e feminino aparecem tensionados justamente na leitura que Ana C. faz de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa.
Num primeiro momento, Ana C. nota que o olhar erudito acerca de Cecília Meireles não se distingue em nada do senso comum sobre o poético e o feminino. O que seria considerado poético – isto é, traços líricos e subjetivos em poesia, construções metafóricas, versos metrificados e rimados, a expressão de uma interioridade em poesia – estaria atrelado fortemente à manutenção de uma concepção construída do feminino.
Dessa relação naturalizada entre lirismo e poesia escrita por mulheres (também conhecida como “poesia feminina”) derivam duas atitudes críticas questionáveis (pra não dizer, claramente, machistas): a confirmação do vínculo natural entre o feminino e o poético tendo como desdobramento um olhar condescendente em relação à mulher que escreve – a cristalização de que mulheres tratam de temas amenos e têm como principal interesse questões de intimidade; ou a negação, o silenciamento do fato de quem escreve ali é mulher, como se isso fosse irrelevante diante de um cenário de produção literária predominantemente masculino em que a mulher, quando aparece, é o objeto de contemplação do poeta.
Por mais que a descrição inicial da poesia escrita por mulheres ali seja um tanto diferente do que parece ser a tônica da produção de nossas poetas hoje, referência unânime entre nossas contemporâneas, Ana C. funciona aqui como um divisor de águas. Um divisor que separa duas formas distintas de entender a relação entre a mulher que escreve poesia e o resultado dessa escrita.
Cecília Meireles é mulher, escreve poesia e definiu a dicção de “poesia de mulher” no Brasil, mas o incômodo que partilhamos, pelo menos desde Ana Cristina César, é que Cecília, apesar de boa escritora, esteve distante das renovações da poesia brasileira. Nesse ensaio, aliás, Ana C. expõe abertamente que a poesia de Cecília Meireles não é irreverente, questionadora e imperfeita como aquela produzida pelos poetas (homens) modernistas: ela constrói uma poesia tecnicamente perfeita e escreve belos poemas, às margens do Modernismo, sem inquietar ninguém [nota 2]. A elevação dos temas presentes na poesia mais difundida de Cecília Meireles, sua fuga do real, do tangível, da materialidade e, principalmente, sua aparente isenção em discutir dentro de sua produção poética seu lugar de enunciação (ser mulher) é o que marcaria esse não lugar, observado por Ana C., esse lugar inócuo.
Como outra via possível diante do pacífico universo codificado de Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa, Ana C. elege a explicitação temática, fazendo menção a um poema de Adélia Prado que diz “eu tenho inveja de Carlos Drummond de Andrade,| apesar de nossas extraordinárias semelhanças”. Pois bem, salvo engano, em geral não admitimos que nosso ponto de comparação possa ser Cecília, negamos que ela tenha esse lugar em nossa história. Endossamos a visão de que essa tal “poesia feminina” é frágil. Drummond é o nosso contraponto. É nele que vemos um reflexo possível, um desafio incontornável. Drummond, Cabral, Oswald ou, quando elegemos uma poeta para dialogarmos, preferimos Marianne Moore ou talvez Gertrude Stein, autoras que assumiram a inovação como ponto central de suas poéticas.
Não busco fazer uma defesa da poesia de Cecília Meireles. Estou apenas constatando esse incômodo e nem sei ao certo como expressá-lo sem parecer ingênua, sem projetar algo que parece não existir: adoraria perceber em sua produção poética uma potência política – no sentido de que a poesia escrita por mulheres hoje é política (um desejo de que fosse simples escrever um Minha Cecília Meireles como Susan Howe e sua Emily Dickinson?).
Nos raros depoimentos de poetas contemporâneas [nota 3] sobre sua relação com Cecília Meireles, inclusive, a ligação se estabelece como uma lembrança distante, uma referência perdida nos primórdios da leitura ou detalhes pinçados para, talvez, dar forma a algo de outra ordem. Nada soa como “quando amo uma coisa, eu a quero pra mim e tento pegá-la [nota 4]”. Marília Garcia, por exemplo, tendo entre suas referências mais marcantes o literalismo francês, parece forçar uma aproximação com entornos da obra de Cecília, mencionando as ilustrações do livro infantil Ou isto ou aquilo e um poema musicado. Micheliny Verunschk diz estar atenta a uma musicalidade circular, quase obsessiva na obra de Cecília, além de demonstrar interesse pela distinção entre os termos poeta/ poetisa, lembrando que, a partir de Cecília, entendemos que poesia não tem gênero, mas fazendo a ressalva de que talvez fosse preciso nos reapropriar do termo poetisa para tirar dele sua carga pejorativa. Ana Martins Marques, talvez o mais próximo que possamos estar da limpidez de Cecília, diz dar atenção a seus poemas de viagem que possuem uma dicção mais concreta e prosaica. Em seu primeiro livro, A vida submarina, um poema chamado Senha para Cecília faz homenagem à poeta:
Quem perdeu a vida
por delicadeza
ganhou-a decerto
numa outra mesa
que os jogo da vida,
para quem os joga
são feitos de perdas
e de novas provas.
O peso do mundo é leve,
mas não há quem o carregue.
Os versos de Rimbaud “Por delicadeza | perdi minha vida” são convertidos aqui numa chave para coabitar a dinâmica estabelecida entre a densidade daquilo que Cecília evoca (sua sombra, as perdas) e a leveza de seus versos, faces opostas que ao mesmo tempo fascinam e nos colocam distantes de sua poesia. Curiosamente, na página ao lado desse mesmo livro, lemos outro poema, dedicado à Ana C.:
Ciganas
passeando
com um rosto escolhido
por paisagens cegas de palavras
traduzidas
inconfessas
rabiscos
ao sol.
Cotidianas
vivendo dias de diários
e mentindo descaradamente
nos silêncios das cartas
(selos postais
unhas postiças
versos pós-tudo).
Fulanas
de nomes reversíveis
para ir e voltar
sem sair do lugar:
self sáfari
por essa paisagem toda
que no fundo
Ana
nada tem a ver conosco.
Em comparação os poemas de Ana Martins Marques nos dão indícios de que dialogar com a poesia de Cecília Meireles não é o caminho mais simples. Porque, sejamos sinceras: não é fácil restabelecer o encantamento pela limpidez dos versos de Cecília, quando a nudez e a crueza de versos como “acordei com coceira no hímen” (Ana C.) ou “durmo com um martelo | embaixo do travesseiro” (Adelaide Ivánova) parecem tão urgentes. Estamos apegadas demais ao real para entender esse corpo que se extingue, queremos reconhecer imediatamente naquilo que lemos nossos corpos presentes e atuantes. Ler a poesia de Cecília Meireles é tão difícil, porque as imagens que codificavam a poesia escrita por mulheres, pelo menos desde Ana C., foram suplantadas por uma nova postura da mulher que escreve poesia: o desrecalque temático das questões da mulher na produção poética e a desmontagem dos códigos do lirismo.
Cecília Meireles foi pioneira: sendo a primeira mulher a receber o prêmio da Academia Brasileira de Letras, em 1939, o reconhecimento de seu trabalho acarretaria, como alerta Mario de Andrade em seu ensaio Cecília e a poesia, uma dificuldade: ao se tornar modelar, sua poética certamente ganharia seguidores, mas também, e justamente por isso, seria contestada. Uma poesia tecnicamente perfeita, intimista, atemporal. Uma poesia que não buscou discutir seu lugar de enunciação: é em oposição aos códigos desse lirismo puro, dessa poética da intimidade de Cecília Meireles, que Ana C. constrói a sua poética.
Compreensível que essa leitura fosse feita nos anos 1970 com o intuito de estabelecer uma nova postura na poesia escrita por mulheres no Brasil. Mas me parece imprudente, e até mesmo violento, exigir ao ler os escritos poéticos de Cecília Meireles hoje, que ali houvesse uma atuação feminista condizente com a visão atual. É preciso ler sua obra sob outro ponto de vista, mais generoso, sem cristalizar uma única posição possível da mulher diante da escrita, sem operar de forma violenta, oprimindo e excluindo as formas de representação historicamente possíveis. Sem exigir dela o apego pelo real, pelo cotidiano, pelo rés-do-chão; sem exigir a valorização da ruptura dos modernistas (que se estende até nossos tempos); sem exigir um feminismo anacrônico em sua escrita: o que nos resta nessa busca por uma Cecília Meireles que não seja tão luxuosa quanto desnecessária nos dias de hoje?
ESCUTA ATENTA
Talvez Ana Cristina César não tenha lido ou não tenha dado atenção aos poemas póstumos que foram inclusos na seção Dispersos já na edição da Poesia Completa organizada por Darcy Damasceno em 1973. Eis um poema que chama minha atenção:
Prisão
Nesta cidade
quatro mulheres estão no cárcere.
Apenas quatro.
Uma na cela que dá para o rio,
outra na cela que dá para o monte,
outra na cela que dá para a igreja
e a última na do cemitério
ali embaixo.
Apenas quatro.
Quarenta mulheres noutra cidade,
quarenta, ao menos,
estão no cárcere.
Dez voltadas para as espumas,
dez para a lua movediça,
dez para pedras sem resposta,
dez para espelhos enganosos.
Em celas de ar, de água, de vidro
estão presas quarenta mulheres,
quarenta ao menos, naquela cidade.
Quatrocentas mulheres,
quatrocentas, digo, estão presas:
cem por ódio, cem por amor,
cem por orgulho, cem por desprezo
em celas de ferro, em celas de fogo,
em celas sem ferro nem fogo, somente
de dor e silêncio,
quatrocentas mulheres, numa outra cidade,
quatrocentas, digo, estão presas.
Quatro mil mulheres, no cárcere,
e quatro milhões – e já nem sei a conta,
em cidades que não se dizem,
em lugares que ninguém sabe,
estão presas, estão pra sempre
– sem janela e sem esperança,
umas voltadas para o presente,
outras para o passado, e as outras
para o futuro, e o resto – o resto,
sem futuro, passado ou presente,
presas em prisão giratória,
presas em delírio, na sombra,
presas por outros e por si mesmas,
tão presas, que ninguém as solta,
e nem o rubro galo do sol
nem a andorinha azul da lua
podem levar qualquer recado
à prisão por onde as mulheres
se convertem em sal e muro.
O interessante zoom entre o que acontece “nesta cidade” e o que acontece em outras tantas cidades mais distantes, uma somatória já incalculável de mulheres aprisionadas vendo paisagens e sendo mobilizadas por elementos cada vez menos materiais, conforme as estrofes se justapõem. É justamente o que encontro neste poema escrito em 1956 (mesmo ano em que Cecília Meireles profere uma conferência intitulada Expressão feminina da poesia na América em que apresenta um panorama da produção lírica de autoria feminina na América hispânica).
Os últimos versos que evocam a “prisão por onde as mulheres | se convertem em sal e muro” me fez lembrar um poema – que eu adoro – da Wislawa Szymborska e que poderia ser considerado outra perspectiva (mais contemporânea?) dessa mesma história: não mais um grande plano, uma enumeração dessas tantas mulheres aprisionadas, mas a voz de uma dessas mulheres – essa mulher primordial aprisionada, que fala em nome de tantas outras mulheres, “A mulher de Lot” – explicando, com uma leve ironia, a lógica (ou falta de lógica: já que ambos no poema, homem e mulher, olharam pra trás, mas apenas ela é considerada a culpada) desse aprisionamento.
Nos poemas póstumos de Cecília, encontro uma nuance que não encontro nos poemas publicados em vida, algo que vai um pouco além de mar e rosa, vento, fogo e coração: há ali também, mesmo que de forma branda, questionamento em relação ao lugar que a mulher ocupa no mundo – que, em último grau, não deixa de ser o questionamento sobre o lugar que esta mulher, poeta, ocupa no mundo. “Penélopes obscuras | em suas casas de pedra | com fogões de pedra | nestes tempos de pedra”, como outro poema póstumo, Uma pequena Aldeia, diz.
O uso de figuras históricas, mas também um olhar nostálgico que se volta para aquilo que está distante geográfica e historicamente, aponta para um elo entre essas duas posturas da mulher: se uma inverte os valores do feminino quase demolindo a casa, a outra olha pela janela como quem rumina uma saída para seu aprisionamento.
Como negar a concomitante beleza e força de alguns poemas do Romanceiro da Inconfidência ou a sonoridade veloz e precisa na recriação da lírica lusitana de raiz medieval em Amor em Leonoreta? A perspectiva de Cecília é a história, o passado; sua perspectiva é o distante, o mediterrâneo ou o Oriente; sua perspectiva é uma pequena janela encontrada no artesanato do verso, na história literária: uma viagem possível e nova, o desbravar de um caminho que os homens trilharam (praticamente) sozinhos, enquanto nós, cansadas de esperar, “tecíamos em nossos teares antigos”.
TÃO FORTE E TÃO FRÁGIL
Na medida em que as leituras críticas de seus escritos poéticos cristalizaram a imagem de Cecília como a “pastora das nuvens”, uma poeta da intimidade, do sublime e do imaterial, sua atuação nos jornais de grande circulação colocavam-na diante do mundo. Como cronista na área da educação – um campo que poderia ser considerado secundário, “feminino” –, Cecília encontrou uma via para discorrer sobre aspectos políticos de grande impacto social, estabelecendo-se como articulista combativa. É o podemos ler nesses cinco volumes de Crônicas de Educação.
A crônica, talvez o gênero mais frágil que temos, de consumo imediato, caracterizada por seus traços referenciais, tão atrelada a seu contexto. É aqui, na fragilidade do gênero, que encontramos a força política de Cecília. Apesar da predominância de escritores do sexo masculino, como escreveu recentemente Alvaro Costa e Silva em sua coluna na Folha de S.Paulo, as escritoras e intelectuais brasileiras dominaram “a arte de conversar com o leitor, com leveza de tema e estilo” e tiveram uma ampla atuação na época de ouro da crônica brasileira. Assim como Clarice Lispector e Raquel de Queiroz, Cecília Meireles foi uma desenvolta cronista: entre 1930 e 1933, manteve uma página diária sobre educação no jornal carioca Diário de Notícias e quase 10 anos depois, entre 1941 e 1943, a coluna “Professores e estudantes” no jornal A Manhã.
Lendo esses textos, é impossível manter a imagem de Cecília Meireles como uma figura pública alienada. Enquanto professora do magistério e cronista, ela manifestou sua participação ativa do movimento de reformas do ensino público, conhecido genericamente como Escola Nova. Esteve entre os 26 intelectuais signatários do manifesto redigido por Fernando de Azevedo, que propunha renovações pedagógicas e o estabelecimento de diretrizes democráticas para o ensino durante a era Vargas. Na leitura desses volumes acompanhamos sua militância na defesa de valores de base humanística para a educação. Valores como a laicidade, a nacionalização de um ensino público e gratuito, a co-educação dos sexos, a manutenção de uma escola livre da vontade da família e da igreja, a valorização do professor como profissional que precisa de formação robusta e de remuneração adequada, além da recusa de uma reforma pseudoprofissionalizante: essas eram as principais causas defendidas pela cronista-educadora, um combate às medidas de um governo que já se mostrava fortemente autoritário.
Cecília Meireles, como lembra Valéria Lamengo em A musa contra o ditador, viu o estabelecimento de um governo rapidamente aliado a uma Igreja Católica que buscava, após 40 anos de república laica, a possibilidade de reaver seu poder. O decreto que estabelecia a inclusão do ensino religioso na rede pública em 1931 foi o sinal de que a revolução ocorrida em outubro do ano anterior precisava ser combatida.
A atualidade que nos permitimos enxergar em Cecília Meireles parece estar menos em sua poesia, gênero pelo qual a escritora ficou conhecida, e mais em sua prosa jornalística. Por razões políticas, essa faceta militante da autora permaneceu por muitos anos esquecida, censurada. E isso que tento articular aqui nem chega a ser novidade entre os especialistas: há mais de 20 anos (sobretudo a partir da tese de Valéria Lamego abordando a produção da autora durante a Revolução de 1930), assistimos uma reviravolta na recepção crítica de sua obra.
A maior parte das suas crônicas, dos seus ensaios, das conferências e sua correspondência continuam textos inéditos, e ainda há muito para ser publicado nos próximos anos. Só ganhamos com isso, porque o recém-lançado box Crônicas de Educação mostra quão assustadoramente vivo, urgente e atual é o pensamento de Cecília Meireles! Ainda que seu tom, talvez utópico demais para os tempos de desesperança que temos vivido, possa soar por vezes anacrônico, é difícil não enxergar algo ali que ressoe em nosso presente: o sucateamento do ensino e da pesquisa, o crescente conservadorismo moral e religioso, o governo ilegítimo a que fomos submetidos... quase 100 anos atrás já vislumbrávamos as bases dos mesmos problemas políticos, sociais e educacionais que hoje sofremos. Em suma: que a prosa de Cecília Meireles possa iluminar algo desse nosso exato instante.
NOTAS
[nota 1]. O corretor insiste em indicar com aquele tracejado verdinho uma incongruência no meu texto: é preciso escolher entre UM poeta e uma POETISA. Fico em dúvida se aplico a correção sugerida ou se digo pra ele que essa ideia de poetisa não combina muito com o que as mulheres em geral têm escrito pelo menos desde os anos 1970, que essa ideia de poetisa é muito sem risco, muito bela, recatada e... Daí noto que, talvez, grande parte desse texto seja realmente sobre isso: existe uma ideia de poesia que se encaixa perfeitamente com uma ideia do que é ser mulher. Admito o incômodo e vejo como um estímulo a provocação programada no tracejado verde a cada vez que escrevo poeta seguido do artigo feminino.
[nota 2]. “É curioso que nenhuma mulher tenha produzido poesia modernista – irreverente, mesclada, questionadora, imperfeita como não se deve ser... Cecília é virtuose, tem belos poemas, e é toujours bien élevée. As duas são figuras consagradas e que nunca in quietaram ninguém.”
[nota 3]. Matéria “Cecília Meireles pelos olhos da nova geração de poetas” publicada no blog da Livraria Saraiva https://blog.saraiva.com.br/cecilia-meireles-pelos-olhos-da-nova-geracao-de-poetas/.
[nota 4]. “When I love a thing I want it and I try to get it”: frase que abre uma secção do livro My Emily Dickinson de Susan Howe.