Há livros que parecem feitos sob medida para momentos históricos. As meninas alcança-nos hoje com exatidão. Diante de mais um momento tenso na história do Brasil, quando direitos assegurados há décadas podem se alterar a qualquer momento, o romance de Lygia Fagundes Telles é preciso. Ler As meninas é receber, por um túnel do tempo, uma correspondência íntima do outrora ao agora. Com o carimbo estampado: “urgência”.
O livro passou por alguns milagres até chegar a nossas mãos. O primeiro é ter escapado da censura imposta pelo AI-5. Depois, resistiu ao esquecimento, destino de tantas obras escritas por mulheres. Deslizo os dedos sobre a tela baça do e-reader, destaco trechos no leitor digital. Passar pela sua leitura é escutar histórias de como mulheres se tornam amigas, mesmo com muitas divergências. Histórias de como conseguem se ajudar, mesmo que discordem veementemente entre si.
O livro dialoga com o presente, quando movimentos de mulheres tomaram redes e ruas no grito #EleNão. Recebo um artigo escrito pela estadunidense Nancy Fraser com a brasileira Mayra Cotta: “a resistência à escalada autoritária por meio da organização de lutas feministas é uma realidade global” (Folha S.Paulo, 01/10/2018). Segundo as duas teóricas, “da África do Sul à Polônia, da Espanha à Argentina, do Irã aos Estados Unidos”, são mulheres que conseguem se unir para irem às ruas por democracias. A urgência de um acordo frágil e transitório para se tentar assegurar vidas. Indo adiante, o romance As meninas expõe um grau extra de complexidade histórica sobre relações entre mulheres: como é ter a vida atravessada por um regime autoritário.
APARENTE DOCILIDADE: UMA POTÊNCIA
Há uma docilidade sugerida no título As meninas que esconde as características típicas da contracultura que invadem as páginas do romance. Prepare-se para sexo, drogas e rock and roll. Com direito a cenas gráficas de violência, tão à moda das distopias feministas. Não falta Jimi Hendrix nem o clichê da militante que esconde O capital em papel de pão. No ano de publicação, 1973, assistiu-se ao início da ditadura no Uruguai e à ascensão de Pinochet no Chile, com o dramático bombardeio aéreo do Palácio de La Moneda.
Ao deslizar os dedos pela tela de plástico do e-reader, penso se não é esta aparente docilidade que fez com que o livro escapasse incólume das mãos do censor. Lygia nos pisca um olho e faz piada com o feito: “o censor chegou até a página 72 e não foi adiante porque achou o livro chato” (Conspiração de nuvens, 2007, p. 65). Afinal, o que teria demais um livro com esse título água com açúcar?
Não nos enganemos, Lygia tinha experiência suficiente para saber do impacto de suas palavras à época do lançamento. As meninas foi publicado justo no ano em que a autora completava 50 anos, então dona de uma carreira literária de três décadas.
Mulher branca com boa educação e vida confortável, Lygia assegurou o teto todo seu e a possibilidade de investir na escrita sendo procuradora no Instituto de Previdência do Estado de S. Paulo. Cursou Educação Física e foi uma das poucas alunas mulheres na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Foi objeto de escândalo ao se separar do primeiro marido (no Brasil, a lei do divórcio é somente de 1977) — nascida Lygia de Azevedo Fagundes, a mulher separada carrega o sobrenome do primeiro marido, Telles.
Com tais adereços, Lygia soube circular pelo meio literário evitando ser reduzida a musa silenciada ou posar de intelectual inacessível. Foi amiga de Drummond, Veríssimo, Hilst e teve obras analisadas por Candido e Carpeaux. Vestindo temas populares da literatura destinada a mulheres com roupagem erudita, sua receita dialoga com uma geração de mulheres da classe média urbana, majoritariamente brancas, com educação formal e ávidas por desafios intelectuais.
Lygia Fagundes Telles soube fazer o que poucos escritores brasileiros fizeram: vender livros e ser uma escritora querida pelo público. A aparente docilidade esconde uma potência, a da literatura que chega a quem precisa.
A TRANÇA NARRATIVA: TRÊS NARRADORAS NÃO CONFIÁVEIS
O romance apresenta uma lição sobre foco narrativo. Machado de Assis tinha prazer em nos enganar com um narrador pouco confiável (Bentinho definitivamente não é a melhor testemunha de certos fatos, embora ainda hoje se insista em organizar o malfadado “julgamento de Capitu” sem escutá-la). Lygia Fagundes Telles tece uma armadilha mais complexa: temos não uma, mas três narradoras não confiáveis, as garotas do título.
A começar por não serem exatamente “meninas”, termo ambíguo que sugere um traço infantil ou inocente. Trata-se de três mulheres jovens com uma preocupação comum: assegurar a própria independência diante de pressões culturais, sexuais e políticas de um Brasil na ditadura. Não há nada pueril nessa pretensão. Assim, as três estudantes, Ana Clara Conceição, Lia de Melo Schultz e Lorena Vaz Leme, narram acontecimentos sobre os quais se recordam ou divagam.
A autora faz uso do fluxo de consciência e de monólogos interiores, procedimentos consolidados em livros escritos por mulheres, como Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf (1925) e A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector (1964). Em As meninas, há uma camada extra de embaralhamento das três vozes, cuja tessitura somente a leitura pode traduzir. A cereja do bolo: nunca sabemos se o que dizem umas das outras é verdade.
Ana Clara, inclusive, é retratada como mentirosa contumaz por Lorena. Qual das duas estaria com a verdade? Indo mais longe em hipóteses delirantes sobre foco narrativo, se Lorena possui inegável protagonismo, seria todo o romance uma narração em que ela emula falar pelas outras duas amigas? Não interessa muito descobrir. A aparente falta de lógica faz com que o fundamental suba à tona: examinar as possibilidades sociais para as mulheres de classe média no período.
AS TRÊS MORADORAS DO PENSIONATO NOSSA SENHORA DE FÁTIMA
“Lião, uma comunista fabricante de bombas. Ana Turva, uma viciada em rápido processo de prostituição. Eu (Lorena), uma amoral, indolente e parasita da mãe devassa.”
A trama intrincada narra passagens da vida de três moradoras do pensionato de freiras Nossa Senhora de Fátima durante uma greve estudantil: Ana Clara, Lia e Lorena. O romance faz alusão a notícias da época, embora a indeterminação ao narrar esfumace quaisquer confirmações. Exemplo é o “sequestro de diplomata”, provável menção ao sequestro do embaixador alemão Von Holleben, cuja liberdade foi negociada em troca da soltura de presos políticos que depois rumaram à Argélia (para detalhes, ver Os romances de Lygia Fagundes Telles, de Dina Teresa Chora).
As três estão longe de serem as melhores amigas do mundo. Desabafos deixam claro irritações mútuas e desentendimentos. O aprendizado da amizade dá-se pelo convívio e partilha de perigos reais, diante dos quais precisam se aliar.
Lorena é magra, com seios pequenos e voz fina, estuda Direito. Encastela-se num quarto com dourados e rosas, “pérola na ostra”. Aguarda telefone improvável de Marcus Nemesius, M. N., ginecologista casado, peludo, mais velho e com cinco filhos. Será que ela inventa essa paixão platônica para se sentir segura, distante do desejo? Vangloria-se de sua virgindade; ao imaginar-se mais velha, faz piada, “virgem acaba surda, aquela história de Lião, fecham-se os orifícios”.
Lia, estudante de Ciências Sociais, é apelidada de “comunista”. Corajosa, é filha de mãe baiana negra com pai alemão berlinense; segundo Lorena, “as proporções gloriosas herdou da mãe, proporções e cabeleira de sol negro desferindo raios por todos os lados”. É apaixonada por Miguel e, na adolescência, teve relação com uma garota. Lê milhares de jornais, faz recortes, participa ativamente da resistência política contra a ditadura. Suas atividades ilegais são fruto de fantasia para Lorena, que declara: “Bank of Boston. Acho demais roubar um banco com esse nome.”
O trio completa-se com Ana Clara, fonte inesgotável de histórias de sexo e drogas para Lorena. A estudante de Psicologia, Ana Clara, Ana Turva, deprimida de infância miserável, vive em estado lisérgico com seus olhos verdes, transando com caras em noitadas. Com 1,77m de altura, gaba-se ser do tipo capa de revista. Planeja casar-se com um cara rico e detestável, o Escamoso. Sua sina é ser, ao mesmo tempo, uma mulher muito desejável e não conseguir sentir desejo.
Justamente a virgem Lorena é quem retira excitação das cenas mais cotidianas, o que termina por conferir direções moralizantes à narrativa. Afinal, Ana Clara é quem vivencia cenas de sexo, mas não goza. Há ainda sugestões sobre a bissexualidade de Lorena, quem prepara banhos longos de banheiras às amigas. Ainda tece insinuações sobre a orientação sexual de Lia (usa o aumentativo “Lião” e depois se refere muitas vezes a seus pés, “deve calçar quarenta”), embora seja difícil afirmar se em uma chave de preconceito ou de intimidade. Com o avançar da trama, tais insinuações permanecem confusas dentro do jogo de três narradoras em período histórico no qual nem divórcio existia. Em As meninas, a vivência da sexualidade e mesmo a do amor para as mulheres passa muito perto do caminho que as coloca em perigo.
A AMIZADE EM TEMPOS DE CRISE
Durante os poucos dias que dura a narrativa, as vidas das três se mesclam. Lia rói unhas em boa parte do tempo, hábito que ecoa o roque-roque das ratazanas dos pesadelos de Ana Clara. Embora Lorena narre por mais tempo, ações perigosas são protagonizadas por Ana Clara e Lia. Lorena faz de tudo para que as outras compartilhem sua companhia e histórias íntimas, oferece dinheiro cúmplice para Ana Clara comprar drogas e empresta seu carro para Lia fazer operações clandestinas.
No pensionato de freiras, as três criam laços fortes de uma amizade pouco provável em outro momento. A grande convicção de As meninas para os tempos atuais é refletirmos a respeito da importância da força mútua entre mulheres distintas, entre pessoas de trajetórias diferentes.
Diante de um Brasil de caminhos incertos, As meninas discute os pactos frágeis e transitórios entre pessoas diferentes. Sejam mulheres que vão às ruas por democracia ou pessoas que procuram respirar em momentos mínimos de liberdade. A leitura de As meninas nos devolve, por um túnel do tempo, um aviso sobre o valor de pensar em conjunto, mesmo nas diferenças. Na capacidade de compartilharmos afetos e histórias. O aviso de Lygia carrega o selo da urgência.
* Agradeço a Drielle Alarcon, Hugo Maciel e Márcia Fráguas pela leitura inicial deste texto.
>> Ana Rüsche, escritora, poeta e pesquisadora, é autora de Furiosa