Xico Sá é um homem cheio de palavras. Se Xico fosse objeto de apreciação dos personagens das sitcoms norte-americanas (pelas quais eu nutro um vício incapacitante), alguém, a certa altura, se referiria a ele como “full of shit”. O diálogo seria mais ou menos assim: “Esbarrei com X.S. ontem, tá lembrado dele?”. “Uau, man, claro, esse cara é cheio de merda”. E ainda bem que é assim, porque com sua prolixidade obsessiva em torno de um único tema: homem e mulher, ou melhor, a (des) união entre eles, Xico nos absolve, eu digo, a nós, fêmeas, de uma meia-verdade que tem transformado qualquer evolução neste terreno em algo impossível.

Convencionou-se achar que discutir relacionamento (a já banalizada DR) é coisa de mulher. De mulher, não, pior, de mulherzinha, no diminutivo mesmo, que é para deixar bem demarcada a necessidade de inferiorizar. Literatura mulherzinha, jornalismo mulherzinha, coluna mulherzinha, editoria mulherzinha, música mulherzinha, mulher mulherzinha.

Faz tempo, comecei a desconfiar que isso acontece porque essas pessoas, na verdade, temem qualquer discurso que se estenda por mais páginas, laudas, minutos, dias, meses ou anos do que a limitada capacidade individual é capaz de receber. Quanto mais quantidade, quanto mais repetição, quanto mais recorrência, mais hostilidade. Daí colocar no mesmo balaio, como sinônimos, “palavras” e “merda”. Inevitavelmente, quando alguém está repleto do que dizer, cheio de palavras, ele está, no senso comum, cheio de merda.

Desconhecedora que sou da etiqueta dos sites de relacionamento, mídia que conta cada vez mais com minha mórbida curiosidade, respondi a um pretendente com uma singela cartinha de quatro parágrafos. Perguntem a Xico Sá, que tem os mesmos 47 anos que eu, com quantas páginas se fazia uma carta decente “antigamente”? A resposta que recebi foi esclarecedora e só confirmava minha desconfiança inicial. Como “assunto-título” de sua resposta, o pretendente virtual resolveu me categorizar como “Full Mind”. Traduzindo do inglês, “Mente Cheia”. Se eu desse mais ousadia, tenho certeza que, na próxima correspondência, ele completaria: “de merda”.

Fico imaginando se o pobre Aristóteles tivesse nascido nos dias de hoje. Ele, que vai pra frente e vai pra trás tentando compreender conceitos como amizade, amor, virtudes, coragem, o prazer, a moderação e muito mais, teria sua obra fundamental Ética a Nicômaco sem dúvida colocada ao lado dos livros de auto-ajuda, bem rente à literatura mulherzinha que discute as relações.

O fato é que os argumentos contra a discussão de relação, qualificando-a como algo inerente à psique feminina, servem a um propósito. O propósito daqueles que não falam muito sobre nada simplesmente porque não lhes ocorre nada de interessante a dizer. O mesmo pretendente mencionado no parágrafo acima ainda teve o desplante de dizer que leu a minha cartinha do coração pela metade, afinal, era muito comprida. Damn him.

Xico Sá vai contra a corrente porque ele toma das mãos das mulheres o cetro de rainhas da falação desembestada sobre o amor (ou algo parecido). Mas, justiça seja feita, ele faz isso travestido de macho. Usa palavras que nós, mulheres, não usaríamos; rejeita figuras icônicas das quais nenhuma mulher ou bicha ousaria desdenhar, como o quarteto de Sex and the City. Lança mão da alta e da baixa literatura para disfarçar, mas o fato é que Xico é tão mulherzinha quanto eu ou você. E foi aí que ele descobriu a chave secreta para o coração feminino. Xico é a colega que a gente ama ter do lado, mas com uma vantagem: se transforma em homem quando a situação (ou desejo) assim exige. Embora negue ser um conquistador, ele devia era fazer workshop para os caras que estão por aí e morrem de medo de palavras, especialmente daquelas que endeusam ou demonizam o amor.


Flávia de Gusmão é jornalista e assina a coluna sexo@cidade no Jornal do Commercio.