Só o que restou do amor não inteiramente gasto me assusta. Tais partículas rondam o mundo e nunca descansam, reencarnando em outros seres, coitados. Nem me lembro mais o dia em que partiste. Para o meu coração brega, amoroso e sentido, ontem continua sendo sempre hoje. Como o pára-choque de um caminhão que vai e volta na rodovia da Saudade com a mesma frase triste. (Na vitrola, tocam Siboney, claro, play again, viver é bolero) – De Xico Sá no blog www.donttouchmymoleskine.com.

O homem só precisa de três coisas para ser feliz: amor, Visa Electron e coragem para tentar de novo depois de cada decepção. O ensinamento é de Xico Sá, verdadeira autoridade quando o assunto é relacionamento, essa coisa tão complicada que a gente passa a vida vivendo e tentando entender.

Para chegar a tamanha concisão, Francisco Reginaldo de Sá Menezes, 47, vive como um anti-herói de filme que faz sucesso no cinema - e não como coadjuvante daquele tipo de história que vai direto para a locadora, tamanho o tédio que causa nos espectadores. A sua vida é cheia de romance, tem um bocado de aventura e a porção de drama necessária para construir narrativas amorosas que servem de mote para seus textos, que são publicados em blog, Twitter, jornais e livros.

Na Mercearia São Pedro, em São Paulo, mais barulhenta do que sempre por conta do amistoso Brasil x Estados Unidos, o primeiro com Neymar e Ganso, os meninos da Vila que ele tanto adora, Xico fala sobre quem é e quem já foi.

“Há 20 anos, eu era mais fraudulento, mas era mais verdadeiro, por incrível que pareça. Era mais preocupado com a sobrevivência, e um homem preocupado assim é passível de qualquer merda. Ele é meio bandido, mais errado, mais frágil, mais passível de crime. Hoje eu tenho segurança, tenho o aval burguês safado de ter a vida mais ou menos garantida por algum tempo.” Entre um e outro tipo de homem, ele prefere o de antigamente pelo risco e o de hoje, pelo conforto. E se declara um anti-herói desde sempre: aquele cabra feio, mas cheio de carisma, que conquista amores, amigos e leitores com suas palavras sobre gente, esse bicho que precisa tanto de autorreferência.

Jornalista e escritor, Xico saiu de Santana do Cariri, no Ceará, ainda adolescente. Mudou-se para o Recife, onde conheceu coisas boas da vida: mulher, amor, mesa de bar, trabalho. Há mais de 20 anos, migrou para São Paulo, onde vive até hoje, trabalhando durante o dia e flanando durante a noite. “É muita militância noturna, baby. Isso já me custou um fígado.” Também compôs letras de músicas, participou de filmes, fez um blog, O Carapuceiro (www.ocarapuceiro.zip.net). Neste ano, lançou seu décimo livro, Chabadabadá – Aventuras e desventuras do macho perdido e da fêmea que se acha.

Como jornalista, ficou famoso pela cobertura do caso PC Farias. Enquanto alguns jornalistas do Brasil gastavam o borderô de suas empresas em viagens pelo mundo, atrás do famoso tesoureiro do ex-presidente Fernando Collor, Xico foi para Maceió, “onde estavam família, advogado, capangas, os homens fortes dele. Foi uma aposta da Folha de S.Paulo. Fiquei lá esperando, indo atrás dos caras, nos arredores, procurando quem não era objeto de investigação. Polícia, Interpol era onde todo mundo estava colado. Eu estava procurando Wally permanentemente. Até que um dia ouvi, no bar, que o cara estava em Londres. Fui atrás do irmão dele, confirmei, combinei uma ligação, gravei e publiquei.”

O que todo mundo queria, Xico conseguiu. O resultado veio na forma de prestígio e de melhores condições de trabalho. Virou repórter especial. “Mas eu nunca quis isso. Não era minha vontade ser um jornalista fodão. Era um desgosto, porque quanto mais coisa eu conseguia no jornalismo, mais eu me afastava de ser um escritor. Tinha menos tempo para ler, para escrever as coisas que eu queria. A vantagem era financeira, de status dentro do jornal, de viver melhor. Mas nunca quis nenhum segundo disso, nem para o meu filho, nem para o meu sobrinho, nem para você.”

Ainda como jornalista investigativo, foi ver quais eram os efeitos da desnutrição no crescimento de crianças, homens e mulheres do Nordeste brasileiro, mostrando aos leitores o Homem-gabiru. Quando foi desvendar a Anatomia de uma licitação, em 1993, conquistou um Prêmio Esso, o mais alto degrau da fama no jornalismo brasileiro.

Mas antes de ser jornalista, escritor, farrista de primeira, apaixonado por mulher e por futebol, Xico é um entusiasta do amor, esse tema que a gente passa a vida buscando entender em filmes, livros, músicas e conversas de mesa de bar.

Então sintonize o rádio do seu coração, e vamos a ele, o amor.

Xico está sempre em busca do amor, mas sem esperanças óbvias de contos de fada, de histórias que duram para sempre. Está mais para Vinícius de Moraes, quando ele diz “que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure”. Isso porque, depois de anos de experiência, Xico se deu conta de que o amor é pura encenação combinada por duas partes.

“Relacionamento é uma mentira da porra, é um mostrando o melhor lado, o outro achando lindo. Só quando o negócio fica ruim e o pau come é que fica verdadeiro e você conhece a pessoa”, diz. Ele sabe que o embate é permanente e está fadado ao fracasso. “Homem e mulher, sabiá e bem-te-vi, tatu e tamanduá. Nada vai dar certo. Graças a Deus! Eu tenho a finitude dentro de mim, acho lindo que você não queira morrer junto com a pessoa amada”, diz. Mas e o “viveram felizes para sempre” de todas as histórias que lemos na vida? “A dor mesmo quem sofreu foram nossos pais, que tinham o infinito como objetivo. A gente não tem essa ilusão, o que é um grande conforto. A gente sabe que uma relação dura um tempo, um discurso.” Palavras de quem já se casou e se juntou algumas vezes e criou dois enteados. “Mas quando eu começo a me iludir por uma moça, fico querendo ter uma história da porra, dessas que você se engalfinha e não tem jeito, quer estar junto, ligar o tempo todo. Para mim, isso é a eternidade.”

O amor surgiu como tema de vida e de trabalho na vida de Xico ainda no Cariri, quando o rapaz começou a ajudar a um vizinho a fazer um programa de rádio chamado Temas de amor. “Ele sabia que eu escrevia uns poemas e me chamou para ler histórias, aconselhamentos, poemas sobre casais famosos de Juazeiro. Eu vi que tinha sensibilidade para escrever sobre isso, mas era porque eu lia muito. Poema pra caralho. Era uma safadeza minha. Era um populismo amoroso da porra. Apliquei uns golpes poéticos benfeitos para o rádio. Na época num tinha nada bom. Acho que são golpes bem resolvidos por conta do meu repertório”, lembra. O sucesso foi instantâneo, mas Xico tira seu mérito. “O amor é tema mais velho que marxismo, que luta de classes. Fulano que ama fulano, que pode ou não pode casar ou não casar... Todo mundo se interessa por isso.” No Recife, anunciou nos classificados de um jornal o serviço “poemas de amor sob encomenda”, outro êxito de sua carreira.

Depois de deitar no divã, Xico descobriu: o apreço pelo tema vem da sua mãe, Maria do Socorro, que desde que ele se entende por gente abre a porta de casa para dar conselhos amorosos. “Depois que comecei a escrever, fui investigar por que escolhi esse tema. Psicanaliticamente, foi minha mãe. Toda mulher que entrava lá em casa era para minha mãe dar conselho. Ela tem uma vocação para conselhos, dá uns fodidos. Eu via a minha mãe o tempo inteiro se fodendo com o meu pai, aquele canalha clássico, bebedor, que gosta de farra, mas é provedor, que achava que se não faltasse nada em casa estava tudo lindo... E eu via minha mãe assim, igual a mim, se fodendo com as histórias e dando conselho para os outros.”

PROFISSÃO JORNALISTA

Xico Sá nunca quis ser jornalista. Mas foi no ofício diário que ele viu a possibilidade de ganhar algum dinheiro. “Eu queria ser escritor, ser Graciliano Ramos, Ernest Hemingway, Rimbaud, Dostoiévski. Tinha inveja de toda e qualquer pessoa que conseguia escrever um livro. Morria de vontade. Mas o que era mais próximo disso e é uma tradição secular no Brasil é jornalista que queria ser escritor, escritor que queria ser jornalista... Eu não queria fazer carreira em jornalismo, mas quando percebi já era tarde, eu estava fodido e tinha que trabalhar. Então acabei fazendo isso. Fiz e faço com gosto, apesar de não ter sido a vontade principal. Porque eu queria mesmo era ser poeta, escritor, Rimbaud, comprar escravo na África”, conta. Enquanto não conseguia, vivia um conflito. “Teve uma época em que cheguei a largar completamente qualquer pendor literário.”

Mas foi no mesmo jornalismo que Xico conseguiu dar uma guinada e chegar à literatura. Em 1997, ele propôs fazer uma coluna na Folha com crônicas sobre relacionamentos. “Estava de saco cheio de PC, Collorgate, de jornalismo investigativo. Na Revista da Folha tinha colunas black, gay, e propus uma de macho. Na primeira coluna que escrevi, ainda não existia e-mail, então recebi cartas. O efeito foi um milhão de vezes maior do que achar PC, do que qualquer coisa de jornalismo investigativo. Aí me animou pra caralho. Era menos prestígio, menos dinheiro, mas era mais animador, era o que eu queria. Se era para fazer jornalismo, que fosse um meio de campo entre jornalismo e literatura.”

Pausa para um resumo da trajetória: Xico tinha 15, 16 anos quando deixou Santana do Cariri, no Ceará, e foi para o Recife. Morou em pensão, trabalhou na Mesbla - “datilografando ficha de crediário”-, entrou no curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco. Morou na Casa do Estudante, no Derby, virou rato de biblioteca. Trabalhou em uma empresa que fazia jornais para outras empresas - era revisor e se arriscava em uns textos. Depois, foi para o Tablóide esportivo, onde começou como repórter, cobrindo Náutico, Santa Cruz e Sport. Uma alegria para um grande torcedor do futebol – é rubro-negro em Pernambuco, santista em São Paulo e torce pelo Icasa no Ceará.

Foi cobrir polícia no Jornal do Commercio, voltou para esporte, foi para a sucursal da Agência Estado -“aí já era luxo e riqueza, dinheiro que só a porra”. Em seguida, parou na sucursal da Veja. “Era um horror, mas era bom, pelo dinheiro e pelo fato de a Veja não ser tão horrorosa como é hoje. Você não escrevia nada, fazia relatórios, ainda bem que não assinava. A Veja é tradição, desde 1415 é uma revista de teses. Alguém de São Paulo faz uma tese, os repórteres vão buscar informações. Beirava a mentira a cada dez minutos de apuração.” Nos anos 1990, passou nove meses no Estadão. Mudou-se para São Paulo, ficou na Folha por dez anos, foi para o Diário Popular e voltou para a Folha, onde é colunista. Em paralelo, atua como comentarista do programa Cartão verde, da TV Cultura.

Mas voltemos ao amor.

Uma única vez Xico fez um livro completamente passional, Um cão vadio aos pés de uma mulher abismo. “Aproveitei uma dor amorosa e coloquei todas as outras ali. Juntei todas as mulheres da minha vida, porque me interessava narrar a dor amorosa, numa espécie de antologia de pés na bunda, dos que eu tinha levado e dos que eu tinha dado. Queria falar do enrosco que é sofrer por amor.” Juntou nas páginas as dores dos amigos, em relatos vindos de conversas, em e-mails transcritos. Até material do lixo ele recolheu. “Em caçamba de mudança sempre tem muita coisa boa. Fiz um lixão de dores amorosas, de resíduos.”

O livro, editado pelo próprio Xico, com projeto gráfico de Pinky Wainer, saiu pela editora Fina Flor. De início foram disponibilizados apenas 85 exemplares. Pouco, mas suficiente para deixar furiosas todas as mulheres com quem Xico tinha vivido mais intensamente. “Não coloquei nome de ninguém, mas todo mundo entendeu. A que era a motivadora inicial do livro ficou puta porque não dei sequência à narrativa, a outra não gostou de ver só um pedaço da história... Entre o comentário informal e a queixa de verdade, ouvi muita coisa.”

Não foi o que o fez deitar no divã, mas bem que ajudou. “Fiz análise quando surtei e para ver que eu não era doido”, diz. E saiu do consultório freudiano pensando ainda mais no objeto do seu desejo permanente. “As mulheres no geral anistiam muito homem que faz análise. É santo pra mulher de classe média rapidamente ilustrada. Está na mão de são Freud, está salvo. Você vira um canalha liberado pela ciência para errar de verdade.”

NA PRATELEIRA

Desses tantos erros e dos ocasionais acertos, Xico extrai o material para sua literatura. Muitas vezes, ouve que o que escreve é banal. “Na maioria das vezes, passo pelo embate de nêgo não acreditar que o que eu estou escrevendo é literatura, por causa do assunto, que é boceta e pau. Do mesmo jeito que escreviam Flaubert, Dostoiévski, Raimundo Carrero, Sá Carneiro”. Mas também fica solene quando você diz que faz literatura, e não que fala sobre uma coisa banal. “Até hoje estou nesta sinuca e nunca vou sair dela, então acabo deixando o leitor decidir o que é.”

Quando não é o leitor quem decide, as prateleiras das livrarias se dão ao trabalho. “Sempre colocam meus livros na seção de humor, de coisa de homem e mulher. Eu acho o erro maior quando colocam no mesmo lugar desses diários e manuais, como Bridget Jones. Esse mundo é que me incomoda. Quando você escreve crônica sobre isso está à beira de ser tachado de literatura de manual, e isso é uma merda. Eu aprendi com Madame Bovary e não com merda de Sex and the city, quero que essas mulheres se fodam.”

Que assim seja, para que ele continue na sua busca pela literatura mais real que puder escrever. “Se eu não me preocupasse, eu ganhava mais dinheiro, vendia mais livro e era mais feliz. Mas eu me preocupo porque eu quero ‘complexizar’ a minha historia. Eu quero discutir isso comigo mesmo de uma maneira mais forte, não quero fazer um manual só para ganhar dinheiro. Quero colocar isso de uma forma russa de viver. Me interessa a literatura russa. É uma dor muito de verdade? Então me interessa. Às vezes eu minto dizendo que não me interessa. Dói não ter feito um romance russo ainda. Escrevi uma novelinha agora semirrussa. Serra das Russas! Que não seja uma literatura de São Petersburgo, mas que seja da Serra das Russas (elevação no Agreste de Pernambuco).Quero ser o Tchecov da Serra das Russas”, diverte-se.

E esse Tchecov é apegado a um romance. “Eu não pegava ninguém. Fui pegar mulher muito tarde. Por isso que eu gosto tanto. Tinha a juventude contra mim. Imaturidade, ansiedade. No Cariri eu tive uns ensaios, mas sempre foi com rapariga, no máximo com prima, mas dentro do contrato social que não autorizava dizer que eu estava conquistando alguém. Conquista mínima foi no Recife”, lembra. Da primeira vez que amou, recorda a sensação de não acreditar que o objeto de sua adoração pudesse responder na mesma moeda. “Eu era tão desarrumado para ter mulher. Valorizava tanto a mulher que não acreditava que ela pudesse querer ficar comigo. Acho que elas ficavam comigo pelo exotismo do menino do interior que não sabia lidar por completo com esse código do relacionamento. O que era desconcerto virava exotismo.”

Até hoje é assim. Xico veste o figurino do anti-herói, pratica o flânerie, tem sempre a palavra certa para as dúvidas do coração e engata amizades e romances pelos bares da vida. É um autêntico conquistador? “Tem doida pra tudo! Eu não tenho culpa, baby. Juro por Deus, Nossa Senhora, que não sou conquistador. Tu vai levar em conta mulher, é? Eu sou conquistador tanto quanto um mendigo. Passa debaixo de um viaduto agora. Tem um bocado de homem com mulher também. Não tem nada de homem maior que outro. É que mulher é generosa, fica com qualquer um. Homem não é assim”, analisa. “Tudo pode dar certo por conta da generosidade extremada da mulher. Acredito hoje na tragicomédia do homem e da mulher, de ver uma queda na rua, dar uma risada, pegar a mulher no muro pra comer ali no cantinho.”

Nas aventuras e desventuras de sua extensa narrativa amorosa, Xico busca sempre a paixão que tira o fôlego e faz o tempo parar, por mais que no fim fique despedaçado. “Você sempre retoma o discurso. Você quer de novo. Ou por frustração ou por querer mesmo, para provar que você continua existindo, é capaz e é amável. Todas as razões fazem você voltar pro mesmo canto.” E é assim que ele quer continuar até o fim. “Meu projeto de vida é morrer com uma barba gigante no Janga, depois dos 70 anos, com uma boyzinha de 18 do lado e uma conta daquelas da TV a cabo para ver o jogo de futebol no domingo, vendo as garotas tomando banho de bica, vendo o tempo passar.” Se tiver uma vitrola por perto, na certa ele pedirá um Waldick Soriano, um Fernando Mendes, ou Siboney, a música carregada de drama que bem poderia ser o tema da sua vida: Siboney, yo te quiero, yo me muero por tu amor...


Daniela Arrais é jornalista.


Leia mais:
Uma falação desembestada sobre o amor, por Flávia da Gusmão