“Enfim, a sociedade, que não lhe pode conferir sossego e segurança, coloca-o numa posição que o projeta no âmago dos grandes processos históricos em efervescência.” O trecho citado, tomado a Sociologia numa era de revolução social (1963), se refere especialmente aos sociólogos e, também podemos dizer, ao seu próprio autor, Florestan Fernandes (1920-1995), cujo centenário de nascimento comemoramos. Sua obra tem ampla projeção nacional e latino-americana e, talvez, ainda mais significado e interesse internacionais hoje, quando a crítica ao eurocentrismo e as chamadas epistemologias pós-coloniais ou do Sul Global ganham mais visibilidade. À sociologia de Florestan coube, como a poucas entre nós, estabelecer uma gramática sobre o social, sobre a vida em sociedade, permitindo destacar da infinita realidade social dimensões de significados cruciais, como socialização, processo e ação sociais. Ainda, sua obra se tornou referência para a compreensão da mudança social, problema que se inscreve no coração da Sociologia.
O trecho citado nos remete, numa primeira aproximação, às exigências feitas pela sociedade brasileira à vocação científica do sociólogo em meio às mudanças por que então passava. “Não lhe pode conferir sossego” é sentença que parece expressar, a princípio, certo desacordo entre a sociedade e a Sociologia, bem como certo desconforto do cientista em relação ao exercício pleno de sua profissão. E a atuação profissional de Florestan é mesmo exemplar do universitário profissional ou scholar, cujo cotidiano metódico transcorrido entre atividades de pesquisa, salas de aula e orientações de estudantes (a vida acadêmica, enfim) sem dúvida pressupõe estabilidade institucional. Sua carreira na Universidade de São Paulo iniciou-se em 1945, um ano após nela formar-se em Ciências Sociais. Primeiro tornou-se assistente da cátedra de Sociologia II, posteriormente foi titular da cátedra de Sociologia I, entre 1964 e 1969.
Poderia imaginar Florestan, em 1962, ano da sentença em questão, até que ponto as mudanças em curso, logo envolvendo o golpe civil-militar de 1964, atingiriam a Sociologia? E diretamente a ele próprio, pouco adiante, em 1969, com sua cassação e aposentadoria compulsória da universidade e as dos seus principais assistentes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso?
Não nos apressemos, porém, a corroborar certa visão simplista como se a defesa do método científico rigoroso na explicação da sociedade implicasse distanciamento, frieza e desinteresse pelos seus problemas. Nada mais estranho a Florestan, cuja sociologia tomou, ao contrário, alguns dos temas mais candentes da sociedade brasileira para estudo. Sem que isso implicasse, é verdade, a aceitação de uma orientação política particular, ideológica ou partidária, digamos. Então, a referida falta de sossego e segurança tem a ver, sobretudo, no caso de Florestan, com a tensão e o desconforto com a sociedade envolvente que sempre alimentou sua sociologia.
Mudanças sociais e a reprodução de desigualdades sociais foram seus interesses obsessivos, confundindo-se, por isso, com o melhor da tradição intelectual da Sociologia. Ele estudou processos de mudança e desigualdade enraizados na sociedade brasileira a partir de várias questões: do preconceito racial operante nas relações sociais que desmistificava o mito da “democracia racial”; a partir da formação de uma sociedade competitiva de classes por dentro dos escombros daquela precedente, ordenada em estamentos fechados (senhores e escravos), sem mobilidade ou com mobilidade limitada, formalmente vigente até a Abolição; e ainda a partir dos alcances e limites dos princípios liberais meritocráticos adotados na República. Essas questões encontram formulação exemplar em A integração do negro na sociedade de classes (1964), a tese que ele escreveu para o concurso da cátedra.
Nesse livro impressionante, Florestan mostra as desvantagens da população negra face aos contingentes europeus recém-chegados na alocação nos postos de trabalho abertos no pós-Abolição em São Paulo. Desvantagem decorrente dos modos (“técnicas sociais e culturais”) como seus membros haviam sido levados a reagir às exigências do novo regime de trabalho e da nova sociedade que ele dá lugar, ambos baseados na competição, para os quais a população negra não havia sido socializada (preparada), e não a uma “apatia” ou a uma “incapacidade” inatas, como a ideologia racista dominante insistia — e, talvez, persista ainda hoje. Mas o modo como Florestan trata o tema, em si mesmo relevante, social e sociologicamente, inova imensamente em duas direções.
Primeiro, a pesquisa é construída mediante interlocução com ativistas de diferentes movimentos negros na cidade de São Paulo da época, contrariando a tendência tradicional de tratá-los como “objetos” ou “sujeitos” de estudo. Segundo, confere sentido bem mais amplo à análise na medida em que, além das relações raciais, discute a própria emergência do povo em meio à modernização da sociedade brasileira, representado por seu elo econômica e politicamente mais frágil, a população afrodescendente.
Por certo, para essa análise sobre, afinal, “como o Povo emerge na história” terão contado também as próprias experiências biográficas de Florestan. Proveniente do norte de Portugal, dona Maria Fernandes, sua mãe, trabalhou como doméstica em São Paulo. Era desconhecida a origem paterna de Florestan. Tendo contado com certa “proteção” de sua madrinha (e patroa de sua mãe) na infância para se alfabetizar, pode-se dizer que Florestan teve que compensar uma educação precária no que hoje chamamos de ensinos Fundamental e Médio com muita autodisciplina e dedicação, tendo frequentado cursos especiais noturnos voltados para jovens e adultos trabalhadores. E até ingressar como assistente na USP, Florestan desempenhou ofícios extremamente modestos, como engraxate, garçom e posteriormente representante de laboratório farmacêutico. Assim, era de certa forma, também, a trajetória de pessoas como ele próprio que Florestan estava pesquisando.
Seu percurso extraordinário até a consagração intelectual encontrava, porém, um sentido em parte convergente com o da própria Sociologia. Como disciplina intelectual, as experiências sociais dos seus praticantes sempre contam para a Sociologia, e muito. Particularmente para o alargamento de suas temáticas, mas também, nos melhores casos, para o questionamento e a inovação das formas de abordagens estabelecidas. É a isso que, em parte, se deve aquilo que Max Weber, um dos nossos clássicos, chamou de “eterna juventude” da Sociologia. Ao introduzir o “homem comum” no centro do seu interesse analítico (camponeses, pescadores, operários, indígenas ou negros, por exemplo), a sociologia acadêmica brasileira dos anos 1950 e 1960 operou verdadeiro movimento de rotação não apenas teórico-metodológico, mas também ético, em relação aos estudos sociais então vigentes. Ela deslocou o ponto de vista “mais ou menos senhorial” em que as interpretações do Brasil se encontravam “nas mãos de estudiosos como Oliveira Vianna e mesmo Gilberto Freyre”, como lembrou Antonio Candido na conferência “A Faculdade no centenário da Abolição” (1988).
Voltando ao nosso trecho de Sociologia numa era de revolução social, podemos perceber melhor agora outras dimensões daquela afirmação sobre a falta de “sossego e segurança” do sociólogo que é projetado “no âmago dos grandes processos históricos em efervescência”. No caso de Florestan, ela contraria também uma das visões mais assentadas sobre a Sociologia brasileira, a de que o sentido de urgência para a resolução de graves problemas sociais em que nos vemos premidos em nossa sociedade tão desigual e antidemocrática torna de alguma forma o nosso trabalho, na periferia do capitalismo, inadequado à formulação teórica. Melhor seria deixar a teorização para nossos colegas do centro, Europa e Estados Unidos. Florestan fez o contrário do que se esperava nessa geopolítica do conhecimento sociológico ainda hoje vigente. A sua intepretação sobre a constituição sociedade moderna no Brasil problematiza aquela posição, justamente ao qualificar a fragilidade do moderno em romper com a tradição não apenas de um ponto de vista histórico, mas propriamente teórico. Isto é, ao invés de se limitar a apresentar um caso que discrepava da tendência eurocêntrica, fez a particularidade da modernização brasileira interpelar a própria teoria sociológica adotada como ponto de partida da análise.
Uma modernização em que as mudanças sociais até se realizam, às vezes de modo incrivelmente dinâmico, a despeito de deixar praticamente intactos problemas seculares. Uma modernização conservadora, portanto. Mas conservadora, sobretudo, porque se efetivando dissociada da democracia, altera o sentido das mudanças sociais que, desse modo, dificilmente se traduziriam exatamente em “modernidade”. Ao menos quando a pensamos como um processo emancipatório, como vem insistindo Elide Rugai Bastos (Unicamp) sobre o sentido crítico da sociologia de Fernandes.
Mas no caso de Florestan, convenhamos, é preciso reconhecer, a sociedade brasileira não lhe deu sossego. Não mesmo. Em mais uma reviravolta na espiral da democracia, ele se afasta da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, aonde vinha ensinando desde 1978, e entra na vida político-partidária, elegendo-se deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores em 1986 e 1990, quando integrou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. Não creio que Florestan Fernandes pudesse sequer desconfiar quando escreveu aquela frase nos anos sessenta, o quanto ele seria, de fato, projetado ao “âmago dos grandes processos históricos em efervescência”.
Seja como for, essa reorientação da carreira, não se realizou, todavia, antes de um bom acerto de contas sociológico com a sociedade brasileira e sua história infeliz do ponto de vista da democracia. Refiro-me ao livro A revolução burguesa no Brasil, de 1975, mas que reúne textos escritos desde a década anterior, no qual Florestan faz uma distinção heurística crucial. Mostra que “democracia” não constituiria apenas uma forma de “exercício” do poder político (que se contraporia à ditadura), mas também diz respeito às formas sociais de “organização” do poder político. Por isso, Florestan forja a ideia de “autocracia” que persiste como princípio ordenador mais geral do Estado e da sociedade brasileira até mesmo em momentos democráticos. Sua relação com a democracia não é de oposição, mas, precisamente, parafraseando a imagem de Gabriel Cohn sobre a autocracia, “sua sombra sempre presente em segundo plano, para emergir, com maior ou menor virulência, em situações de crise do poder burguês”.
As reviravoltas na espiral da democracia não param — como bem sabemos hoje, no Brasil e no mundo. Mas elas parecem destinar a distinção fina de Florestan Fernandes entre ditadura e autocracia, bem como vários aspectos teóricos e substantivos da sua sociologia, como recursos muito importantes para a interpretação do presente. À sociedade impertinente à democracia dos dias que correm podemos contrapor esse importante legado intelectual. Não apenas entre sociólogos, mas compartilhados entre todos e todas a quem a sociedade contemporânea também não dá sossego, nem segurança. Saberemos nós, respondermos aos desafios fundamentais do nosso tempo? Projetarmo-nos não passivamente, mas como atores sociais ao “âmago dos grandes processos históricos em efervescência”?