Histórias em quadrinhos autobiográficas ajudam o gênero a ganhar definitivo status literário

É um exercício prosaico de desembaçar espelhos, de passar a mão sobre a fina camada de umidade que desfoca não apenas os olhos, mas o olhar. O atrito estridente do dedo riscando o vidro abre a imagem, revelando ora aqueles que querem apenas limpar o espelho, ora os que desejam se passar a limpo. A escritora inglesa Daphne Du Maurier costumava dizer que todas as autobiografias ti-nham propensão à autoindulgência, mas existe algo muito além da redenção no sucesso de vários quadrinistas (quase) anônimos que, com histórias que não temem a autoexposição, conquistam não apenas público, como de uma maneira muito pon-tual, a crítica literária. Existe a predisposição para uma reflexão mais profunda não apenas sobre a imagem do espelho, mas sobre os motivos que a fizeram passar algum tempo turva em memórias vaporizadas.

Em retrospectiva: o americano Art Spiegelman foi o primeiro quadrinista a ganhar o mais res-peitado prêmio literário das Américas, o Pulitzer, com Maus, uma história semibiográfica sobre sua família no contexto da Segunda Guerra Mundial.

O também americano Harvey Pekar, sem saber desenhar um boneco de palito, ganhou reconhe-cimento internacional (e um filme com elenco hollywoodiano) contando em American splendor, em quadrinhos, a esgotante trivialidade de seu dia-a-dia.

A iraniana Marjane Satrapi foi traduzida pelos quatro cantos do mundo com Persépolis e deu origem a um filme candidato ao Oscar, com uma história em quadrinhos autobiográfica sobre sua infância e adolescência no Irã da Revolução Islâmica.

O chinês Gene Luen Yang foi indicado ao National Book Awards, um dos mais prestigiados prêmios literários do mundo, por sua história em quadrinhos publicada no Brasil sob o título de O chinês americano, um roteiro sobre a própria adaptação do autor ao território norte-americano quando ele ainda era uma criança.

De uma maneira geral, a lista de quadrinistas que receberam honrarias literárias está quase sempre ligada a narrativas em que a perspectiva da primeira pessoa fica no ponto de reflexão da história. A rela-ção entre o tom um tanto confessional e a revisão literária que esses autores ganham, a despeito de tudo que é pré-concebido quando se fala em his-tórias em quadrinhos, não é casual e certamente está longe de ser nova. Mas sua ascensão no status do mercado literário está em sincronia, ainda que não seja resultado disso, com uma crescente cultura do umbigo exposto, seja em blogs, vídeos ou nos 140 caracteres do twitter.

Para ligar os pontos entre essas autobiografias e a abordagem literária, três livros podem elucidar melhor de que forma o tom confidente toma uma dimensão de obra-prima e transforma HQs em enobrecidas novelas gráficas, expressão bem mais atraente para editoras que ainda sentem um certo receio, ou precaução editorial, em sublinhar o nome quadrinhos na hora de vender esses enredos fic-cionalizados de indivíduos reais: Fun home (Conrad), Epiléptico (Conrad) e, recentemente publicado no Brasil, Retalhos (Companhia das Letras).

 

A LITERATURA DÓRICA

Quando Alison Bechdel começou a desenhar suas primeiras tiras em quadrinhos, havia o muro de Berlim, as ombreiras, o The Cure e a Perestroika.

Não havia internet, o papel ainda era o meio de transporte para as melhores ideias e os guetos não eram artigo de consumo, eles de fato desem-penhavam uma função orgânica no acolhimento das minorias. Dykes to watch out for, título de suas tiras, podem ser traduzidos em bom português como Sapatões para se ficar de olho. Com humor e um título que dava um certo senso do ridícu-lo para a situação, Alison começou a criar vários personagens dela mesma, usando sempre o tom da pressuposta piada das tiras de quadrinhos para estabelecer uma saudável e precavida distância entre ela e sua representação.

A primeira pessoa se diluía na comicidade da personagem central e, entre o papel de parede das lésbicas de gueto e a imagem de uma autora cuja seriedade estava em não levar nada muito a sério, Alison seguia confortável em um mundo de pouco para poucos. Mas já no amadurecimento de sua narrativa, a quadrinista da subcultura gay decidiu limpar seus óculos e, em uma faxina que durou sete anos de idas e vindas ao papel e a memórias cujas fronteiras sentimentais eram difíceis de se entrar (mais duras ainda de se sair), ela expôs uma intimidade familiar que poucas terapias conseguem exteriorizar. Com isso, saiu pela primeira vez do gueto para se transformar na autora do “livro do ano” de 2006 segundo a revista Time. Ficou na frente de vários romances de estreladas revisões críticas.

Fun home, o livro do ano em questão, é um álbum que conta a história dos laços mal amarrados entre Alison e a figura onipotente e onipresente de seu pai, Bruce Bechdel. Confrontados e unidos por suas diferenças, pai e filha têm sua relação emoldurada e disposta sob a luz do olhar alheio. E Alison se desamarra do medo de pular na piscina sem a certeza de que seu pai vai segurá-la.

Entendemos, com essa mesma história, que Ali-son herdou, ainda que a contragosto, o elemento literato de seu pai. Muito mais do que vários cartu-nistas de sua geração e de gerações posteriores, ela tem uma leitura distinta, refinada, estimulada por valas emocionais e sua escrita reflete isso. O texto, por si só, é subsídio suficiente para perceber que se está diante de alguém com o completo domínio das palavras e que, no entanto, não abre mão de sustentá-las sob fortes colunas dóricas do dese-nho. Seu traço, um tanto cartunizado, simétrico e arquitetônico, é aquilo que projeta o texto e é o que, de fato, expõe.

 

A LITERATURA DO DRAGÃO

Pierre-François Beauchard, assim como vários me-ninos, começou a desenhar porque queria ser senhor de seu próprio reino e, também a exemplo de várias crianças, cresceu para entender que o mundo inven-tado do grafite transparecia um incômodo qualquer com a realidade da mesa de jantar. Beauchard, que nunca parou de desenhar, logo entendeu o que lhe incomodava e, na mesma proporção, o comovia: dor. Em lugar de fechar a ferida com costuras mal remendadas da estabilidade emocional, ele decidiu tomar o bisturi para si próprio e reabrir seu corpo para os demônios que, por tanto tempo, ele havia guardado nas vísceras de seu mundo imaginado. Construído sob um contexto dos anos 1960, quando os homens começavam a romper o espaço sideral e sua própria ideia de humanidade.

Foi então que David B., o nome inventado de Beauchard, fez pública uma série de histórias ba-tizadas de Epiléptico – no Brasil publicada em dois volumes. No centro da narrativa, dois personagens: uma doença e uma família que fermentou seus vínculos dentro dela. A obra se constrói então como um pedido de desculpa, confissão de pequenos crimes e, por que não, uma tentativa de se redimir de pecados infantis, amadores e, nem por isso, menos cruéis. Jean-Christophe, irmão de Pierre-François, sofre de epilepsia e é da doença que surge a saga da família em busca da cura do primogênito, numa história de abdicação de valores, egoísmo e autoestima.

Em movimento avesso àquele de Alison Bechdel, David B. abre a imagem antes do texto. No desenho dos dragões, samurais e das batalhas épicas dos primeiros rascunhos, ele poetiza a pedra, aqui representada pela solidez do chão para onde se desabava sempre que seu irmão sofria uma crise. Por poetizar, engana-se quem imagina que o artista tenta amortizar esse impacto com a imagem. David B. quer acentuar a queda com uma história em que há uma necessidade vital de expurgar tumores criados no apagar das luzes.

Pela formação família-burguesa-francesa-de-espírito-livre, o autor carrega um vasto repertório de referências textuais e, com sua habilidade para o traço curvilíneo, hábil do preto e branco, David B. cria uma coreografia perfeita entre os dois su-portes, sem temer subir o volume das imagens ou das palavras em tempos diferentes.

 

A LITERATURA DO DESBATISMO

Os objetos em cena são semelhantes àqueles do artista francês David B.: menino encontra no dese-nho o escapismo para uma família que sufoca suas asas. O contexto de Craig Thompson, no entanto, é bastante distinto. Mais jovem que Alison Bechdel e Pierre-François Beauchard, ele cresceu em um microcosmo do puritanismo americano. Filho de pais religiosos, Craig passou boa parte da infância e adolescência temendo a punição divina.

Para conseguir carregar o peso da culpa cristã sem se afundar na fina camada de neve, ele desenhava. Mais tarde, isso se transformou não apenas na sua melhor forma de comunicação com o mundo externo, como na maneira menos dolorosa dele entender que podia abdicar de tudo, até mesmo de sua fé, para conquistar o céu do “mundo per-feito, onde não existe dor e todos ficam bem”. Essa transição herege que o transformou em uma pessoa adulta era algo que Craig guardava em uma caixa de fundo de armário. No dia que resolveu abrir esse pacote, passou quase quatro anos revendo a liturgia de suas escolhas.

O resultado foi a publicação de Retalhos, livro que, no Brasil, ganhou uma contracapa cheia de depoimentos exaltando as qualidades romancistas do autor: “É o que chamo de literatura”, diz o tes-temunho do cartunista Jules Feiffer. Curiosamente, ao contrário de Alison Bechdel e David B., Craig Thompson não teve uma leitura, nem brechas burguesas, para acumular uma experiência literária que fosse além dos versos bíblicos.O resultado disso se constitui em uma obra de espontânea confissão, onde imagem e texto fluem um desenho único, intuitivo e um tanto ingênuo.

Não há na obra de Craig Thompson um rebusca-mento das ideias, todas elas são despejadas sobre a mesa ainda um tanto cruas. O que existe é sim uma consciência bastante amadurecida de como o ato de não temperar pode refletir um intenso pensamento crítico e de uma latente consciência do homem diante dele mesmo. Essa reflexão vem sob a forma de muitas páginas em que nem uma só palavra é dita. Craig tem o fluxo de desenho de uma criança que precisa se ocupar de seus sonhos, mas escreve esses desenhos como poucos adultos conseguem encarar seus pesadelos.

 

RÓTULOS NO LIXO

Família, frustrações, segredos guardados entre quatro paredes. Elementos comuns não apenas às três obras acima citadas, como à vida de boa parte dos seres humanos cujo ciclo de maturação pressupõe um desprendimento da infância e de tudo que a cerca. Fun home, Epiléptico e Retalhos não são mundos novos, épicos ou nobres. E por isso mesmo fascinam, pois que são familiares e, de uma forma muito tocante, chegam a ser íntimas para vários leitores.

A ligação entre essas obras e seus méritos lite-rários é tão simples quanto desenhar uma linha apoiada sobre a régua: todas essas histórias são brilhantemente contadas e o que seria a literatura senão uma história muito bem contada? O que nos leva a entender que a literatura pode estar em um filme, música ou histórias em quadrinhos, autobio-gráficas ou não. Casos então em que a mensagem independe do meio. Existe, porém, algo tanto na dinâmica dos quadrinhos quanto no conteúdo autobiográfico das pessoas comuns que chamam atenção da crítica literária.

A primeira distinção se deve em função ao raro e precioso conhecimento de espaço/tempo que todos os autores aqui citados possuem, e isso é algo próprio dos quadrinhos e de mais nenhuma outra forma de comunicação. O controle que esses autores têm das fissuras entre um quadro e outro e o domínio da experiência do virar de páginas é intenso, profundo e complexo. Isso é o que se chama arte.

A segunda diferença, que diz respeito ao teor confessional das obras, se explica pelo medo. O ponto em comum que faz de qualquer história uma obra-prima é perceber que ela é despida do maior inimigo literário, o medo. Bruxa como era, Clarice Lispector certa vez analisou contos do jornalista José Castello e afirmou, para decepção dele, que seu texto estava cheio de medo e que, para escrever, nenhum autor poderia estender a mão a qualquer tipo de receio. Alison Bechdel, David B. e Craig Thompson, assim como vários quadrinistas que expuseram suas vidas, foram impulsionados pelo monstro debaixo da cama e pela a luz na fresta da porta. Se conseguiram ou não superar esses pequenos grandes traumas familiares é uma questão interna, que não diz respeito ao público. Mas o fato é que todos encararam esses medos e fizeram dos quadrinhos apenas um meio para transmitir a mensagem de uma vital exposição emocional.  E isso é o que se chama literatura.

E se a literatura é definida pelo verbete do Hou-aiss como “uso estético da linguagem escrita”, então esses três artistas, assim como vários outros, não fazem literatura, não fazem arte, fazem tudo ao mesmo tempo e, ainda que para benefício do produto editorial, não podem ser categorizados em nenhuma prateleira de livraria.

A arte ou literatura, ou ambos, dos quadrinhos autobiográficos seduz quando a narrativa é bem moldada e quando a proximidade entre o cotidiano de quem lê se espelha nas páginas de quem escreve. O comum aproxima e une. Assim como o medo. E o medo nunca, nunca mesmo, é autoindulgente.