Do ponto de vista da etimologia, a palavra pombagira certamente deriva dos cultos angolo-congoleses aos inquices. Uma das manifestações do poder das ruas nas culturas centro-africanas é o inquice Bombojiro, ou Bombojira, que para muitos estudiosos dos cultos bantos é o lado feminino de Mavambo, o dono das encruzilhadas, similar ao Exu iorubá e ao vodum Elegbara dos fons. Em quimbundo, pambu-a-njila é a expressão que designa o cruzamento dos caminhos, as encruzilhadas. Mbombo, no quicongo, é portão. Os portões são controlados por Exu. São a eles, as pombagiras e os exus, que devemos pedir licença para evocar a rua, as espiritualidades das encruzilhadas e a memória daqueles, como João do Rio, que se encantaram nas esquinas.
Em 2010, o Império Serrano, escola de samba tradicional do Carnaval, desfilou com o enredo “João das ruas do Rio”, em homenagem a Paulo Barreto, jornalista, escritor, dramaturgo e ensaísta. Barreto costumava escrever reportagens, crônicas e ensaios com diversos pseudônimos (há quem sustente que teve mais de trinta); João do Rio foi o mais famoso deles. O refrão do meio do samba imperiano sintetizou a cidade que João do Rio percorreu, como ator e público do drama das ruas:
Vem que o Império te leva
Vem recitar poesias em canções
E nos boulevares e vielas
Vem ouvir o canto das favelas
Em 1904, João do Rio publicou em livro uma série de reportagens intitulada As religiões do Rio. Na obra, que vendeu espantosos oito mil exemplares em cinco anos, apareceram os quatro textos pioneiros sobre as práticas religiosas afro-cariocas da região central da cidade; aquela que, posteriormente, Heitor dos Prazeres definiu como uma “África em miniatura”.
Os cultos aos antepassados, de linhagem banto, a prática oracular dos babalaôs, a influência do islamismo nas religiosidades negras, o uso dos patuás, a cura através das fumaças e folhas são descritos com uma boa dose de espanto e preconceito, mas constituem material sobre o tema até hoje indispensável aos pesquisadores.
Quatro anos depois de As religiões do Rio, João do Rio lançou em livro a coletânea de crônicas, reportagens e ensaios A alma encantadora das ruas, um fascinante conjunto de observações participativas a respeito das ruas e seus personagens. O livro não é exatamente uma novidade em relação ao tema — crônicas e ensaios sobre as ruas eram relativamente comuns entre os jornalistas que flanavam pelos boulevares de Paris — mas antecede em décadas os capítulos famosos de Gay Talese sobre a cidade de Nova York e suas ruas, publicados em Fama e anonimato (1970), vistos por muita gente como referências do New journalism sobre a vida nas cidades.
Mas que ruas são essas descritas por João do Rio e cantadas no enredo do Império Serrano? A versão oficial sobre o surgimento da cidade afirma que Estácio de Sá fundou o Rio de Janeiro, em 1565, no sopé do Morro Pão de Açúcar. O objetivo de Estácio, sobrinho do governador-geral, Mem de Sá, era garantir a soberania portuguesa em um território ameaçado pelos franceses, aliados aos tupinambás que ocupavam boa parte do recôncavo da Baía da Guanabara. Mais de três séculos depois da fundação, a cidade criada para não ser francesa buscava desesperadamente mergulhar na modernidade e se afrancesar, para negar que era profundamente africana.
Ninguém escreveu mais sobre este embate travado em terras da Guanabara, intenso nos primeiros anos do século XX, que João do Rio. Se a cidade parecia partida entre a afrancesada Rua do Ouvidor e os africanizados terreiros de samba, esquinas, encruzilhadas, morros e vielas ocupados pelos descendentes de escravizados, a caneta de João do Rio foi agulha de cerzir um tecido que parecia definitivamente rompido.
Os primeiros governos republicanos incriminaram as diversas manifestações de fundamento africano da cultura popular no Rio de Janeiro. Jogar capoeira passou a ser crime pelo Código Penal de 1890, os terreiros foram sistematicamente reprimidos e a posse de um pandeiro era suficiente para a polícia enquadrar o sambista na lei de repressão à vadiagem, conforme aconteceu com João da Baiana, um dos pioneiros da turma que frequentava a macumba e as festas na casa de Tia Ciata.
Quando a escravidão terminou, houve uma deliberada política de atrair imigrantes europeus para o Brasil. Não há qualquer registro de iniciativa pública que tenha pensado na integração do ex-escravizado ao exercício pleno da cidadania e ao mercado formal de trabalho.
Uma das primeiras leis de estímulo à imigração no período falava que o Brasil abria as portas, sem restrições, apenas para a chegada dos imigrantes da Europa. Os africanos e asiáticos só poderiam entrar mediante decisão do Congresso Nacional e em cotas pré-estabelecidas. Mais do que encontrar mão de obra, a imigração foi estimulada como meio de branquear a população e instituir hábitos ocidentais entre os brasileiros.
É exatamente dentro desse contexto racista e discriminatório do pós-abolição que começa a ser gerada a reação a essa política pública elitista, de recorte francamente eurocentrado: a cultura da fresta como meio de reinvenção da vida e construção de uma noção de pertencimento ao grupo e ao espaço urbano.
É também neste contexto emblemático que começa a ocupação mais sistemática dos morros do Rio de Janeiro, com a formação das favelas a partir da ocupação do Morro da Providência, estimulada, na década de 1890, pela derrubada do cortiço Cabeça de Porco e pela volta de soldados que lutaram na Guerra de Canudos.
O ato de civilizar busca moldar a cidade a padrões urbanos e comportamentais similares às capitais europeias, especialmente Paris. Essa perspectiva estimulou a reforma urbana de 1904, projetada pelo prefeito Francisco Pereira Passos ao lado de engenheiros como Paulo de Frontin. Pereira Passos não escondia a admiração pelo Barão Haussmann, o responsável pela reforma urbana da capital francesa nos tempos de Napoleão III.
Durante os dezessete anos em que cuidou da remodelação de Paris, Haussmann procurou erguer uma cidade com largas avenidas, capazes de conter as barricadas populares muito recorrentes nos protestos da época. Além disso, expulsou a classe trabalhadora da região central e cuidou da destruição das ruas e construções antigas, investindo em um traçado geométrico e na padronização das casas e comércios.
Seguindo a onda francesa, a reorganização do espaço urbano do Rio de Janeiro teve o objetivo de consolidar a inserção do Brasil no modelo capitalista internacional, facilitar a circulação de mercadorias, inviabilizada pelas características coloniais da região central (ruas estreitas que dificultavam a ligação com a zona portuária) e construir espaços simbólicos que afirmassem os valores de uma elite cosmopolita. Era o sonho da Belle Époque tropical.
Havia, porém, um obstáculo a ser removido para a concretização da Cidade Maravilhosa: as populações subalternizadas que habitavam as ruas centrais da cidade e moravam em habitações coletivas, como cortiços e casas de cômodos — sobretudo os descendentes de escravizados, mestiços e imigrantes portugueses. A solução encontrada pelo poder público foi simples e impactante: começou o “bota abaixo”, com o sugestivo mote de propaganda O Rio civiliza-se. Mais de setecentas habitações coletivas foram demolidas em curto espaço de tempo.
Toda essa tensão refletiu-se na configuração do espaço urbano carioca. A tentativa de construir formas de vida, afirmar culturas, criar redes de sociabilidade e proteção social das populações descendentes de negros escravizados e pobres em geral é das aventuras mais contundentes do processo de configuração do Rio de Janeiro e até hoje ressoa nas nossas ruas, como memória ou esquecimento.
Foi nesse contexto de tensionamentos, entre os modos distintos de pensar e praticar a cidade, que João do Rio produziu, trazendo para a boca de cena aqueles personagens que Michel de Certeau definiu como os “caminhantes inumeráveis”, mulheres, crianças e homens comuns desprovidos de qualquer heroísmo oficial e retumbantes vitórias; andarilhos das periferias dos estudos historiográficos, excluídos de políticas públicas, inventores de mundos nas artimanhas do cotidiano das cidades.
Após o capítulo de abertura — a transcrição de uma conferência intitulada A rua (1905) —, A alma encantadora das ruas deslancha ao longo de uma série de crônicas divididas em três blocos, com textos destinados ao público mais amplo dos jornais: “O que se vê nas ruas”, “Três aspectos da miséria” e “Onde às vezes termina a rua”. Na conclusão do livro, temos a transcrição de mais uma conferência proferida em 1905.
Entre margens, poros e frestas da cidade que se pretendia francesa, passeiam pelas crônicas de João do Rio os mendigos, as moças de vinte anos que flanam namorando as vitrines das lojas (as “mariposas de luxo”, conforme o autor), os presidiários com suas tatuagens e versos derramados, as presidiárias e seus modos de construir sociabilidades na cadeia, as mães que visitam filhos na detenção, os viciados em ópio, os brincantes de cordões carnavalescos, os ébrios pelo efeito do lança-perfume, as rezadeiras, os frequentadores da Missa do Galo, os cocheiros, os atores de presépios montados nas praças, os estivadores, os portugueses e espanhóis pobretões e um tanto ingênuos, os pequenos golpistas, os “urubus” (maneira como a população chamava os agentes funerários que viviam ávidos por defuntos, disputando cadáveres que poderiam gerar enterros lucrativos), os aderecistas de velórios etc.
Ao observar, e participar, de uma espécie de teatralização da vida da cidade e das recriações de modos de vida nas encruzilhadas da modernidade, João do Rio parece, por vezes, engolido pelas mudanças vertiginosas e dividido entre o fascínio pelas ruas (que vez por outra anda perto da romantização ingênua do precário) e o horror do dândi que percebe o fiasco do projeto civilizatório eurocêntrico; a Paris tropical, no fim das contas, é inviável.
Essa tendência de, vez por outra, flertar com uma visão ingênua da precariedade, não impede João do Rio de reconhecer o horror da desigualdade social e a miséria como face indissociável do processo de modernização da cidade. Em certo trecho, o autor afirma:
O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que conhece [sic!] nem a sua própria planta, nem a vida de toda sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma.
Nesse ponto, João do Rio foi dos mais argutos observadores da relação paradoxal entre as elites cariocas, o poder público e os pobres da cidade. Em certo momento crucial para o Rio, aquele da transição entre o trabalho dos escravizados e o trabalho livre e entre a Monarquia e a República, a cidade encarou os pobres como elementos das “classes perigosas” (a expressão foi largamente utilizada em documentos oficiais do período) que maculavam, do ponto de vista da ocupação e reordenação do espaço urbano, o sonho da cidade moderna e cosmopolita. Ao mesmo tempo, era dessas “classes perigosas” que saíam os trabalhadores urbanos que sustentavam — ao realizar o trabalho braçal que as elites não cogitavam fazer — a viabilidade desse mesmo sonho.
Mais de cem anos depois da publicação, A alma encantadora das ruas mantém a atualidade. Há pouco tempo, a cidade do Rio de Janeiro experimentou um impactante processo de gentrificação, embalado pelo ciclo de grandes eventos que incluiu os Jogos Pan-Americanos em 2007, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Uso gentrificação no sentido dado ao termo pelos estudos pioneiros de Ruth Glass e Neil Smith: aquele que, grosso modo, designa um processo de aburguesamento de espaços nas grandes metrópoles e gera o afastamento das camadas populares do local modificado. O espaço gentrificado passa a ser gerido prioritariamente pelos interesses do mercado financeiro, do grande capital e quejandos. Este processo de submissão ao capital é, em geral, acompanhado de discursos legitimadores que vão desde o “tratamento ecologicamente correto” até o da “gestão financeira responsável”.
O discurso do embelezamento urbano, do ecologicamente correto, da dignidade do morador, é acompanhado da especulação vigorosa e proposital do solo urbano e da ruptura criminosa de laços comunitários, com a saída de uma população que não consegue mais pagar o aluguel ou não tem como adquirir o imóvel na área embelezada. Há ainda um discurso hegemônico na mídia que glorifica o embelezamento e esconde as contradições sociais que ele traz. A limpeza social é silenciosa, enquanto a limpeza urbana, tocando seus tambores, se apropria de códigos do que ela mesma destrói, e domina, pela propaganda, os corações e mentes.
Tenho me referido a este processo como “perversidade do bem”, e é ele hoje uma das mais ardilosas estratégias de submissão do humano aos ditames dos grandes interesses corporativos. É bom ver o jogo de futebol confortavelmente; é bom ter um camarote climatizado; é bom um elevador que facilite a acessibilidade ao Morro do Cantagalo; é bom ter bicicletas disponibilizadas por bancos (uso, propositalmente, os cínicos jargões empresariais deste processo).
Mas é de uma perversidade castradora, higienista, desarticuladora de laços comunitários, fria como um museu virtual, adequada ao delírio dos corretores de imóveis, moldada ao gosto dos velhos reacionários. É bom, e não é para todos. É perverso quando se apropria dos ícones de um local e louva estes ícones para destruí-los ou submetê-los aos interesses do capital.
Retornar a João do Rio é entender como esses processos de disputa pela cidade permanecem vivos, ainda que marcados por conjunturas peculiares. Em 2020, o pequeno comércio de rua tem sucumbido, o controle dos corpos permanece na ordem do dia, as igrejas neopentecostais arrebanham multidões, os terreiros são incendiados. Em virtude da pandemia de Covid-19, a ocupação das ruas está em xeque e poucos são capazes de apostar a respeito do resultado disso nas maneiras de praticar a cidade.
De todo modo, nas brechas do controle, na porosidade típica das metrópoles, nas frestas do muro cinza, uma legião de mulheres e homens comuns continua praticando a vida, lidando com os perrengues, balançando corpos nos bailes, matando e morrendo, entre a chibata de bater nos corpos (quase todos pretos) e a baqueta de bater no couro do tambor para inventar o mundo como samba.
João do Rio morreu em 1921, perto de completar quarenta anos. Definido pelo escritor Gilberto Amado como uma “figura volumosa, beiçuda, muito morena, lisa de pelo”, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras e, ao mesmo tempo, publicamente ridicularizado por letrados do seu tempo em virtude da homossexualidade. Tentou entrar para o Itamaraty, mas foi recusado pelo Barão do Rio Branco por ser “gordo, amulatado e homossexual”. Viu, ao lado de Gilberto Amado, a bailarina Isadora Duncan dançar pelada na Cascatinha da Floresta da Tijuca. Traduziu Oscar Wilde, escreveu para crianças e teve tempo de fundar e dirigir a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais. Teve uma vida vertiginosa, como foi a das ruas da cidade em que nasceu e morreu.
O enterro de João do Rio parou o Rio de Janeiro. Jornais da época falam de cerca de 100 mil pessoas nas despedidas ao jornalista. Detratores, como o escritor Humberto de Campos, apostavam que a obra de Paulo Barreto, de caráter efêmero, sucumbiria ao peso do tempo. Erraram, como podemos perceber.
Ao falar sobre a alma da rua, João do Rio escreveu um trecho ainda hoje insuperável sobre o tema:
Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas.
Resistindo às idades e às épocas, colocado em xeque por aqueles que temem os caminhantes inumeráveis e os modos de existência que subvertem a normatividade domesticadora dos corpos, o amor pela rua desafia e incomoda. Ele é como a gargalhada das pombagiras e exus que, no meio da noite, arrepiam de alegria e amor pela vida tudo aquilo que, parecendo morto e destinado ao esquecimento, surpreendentemente permanece.
REFERÊNCIAS
João do Rio. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
João Carlos Rodrigues. João do Rio: uma biografia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
Luís Sérgio Dias. Quem tem medo da capoeira? Rio de Janeiro: Memória Carioca / Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
Luiz Antonio Simas. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
Nicolau Sevcenko. Literatura como missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Renato Cordeiro Gomes. João do Rio: Vielas do vício, ruas da graças. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.