Respiração artificial (Cia. das letras, R$ 19) é um romance de um leitor- escritor com a assinatura de um escritor-leitor. Descartes: cartesiano. Porque lê, logo escreve. E escreve o que leu. Relata, imagina, transubstancia. Cria um texto polifônico. História e metaficção, ensaio, paródia, citação e digressão. Gêneros e formas embaralhadas. Ricardo Piglia constrói seu romance utópico e cultua a tradição literária argentina para reescrevê-la, refundá-la nas fronteiras da pós-modernidade, liames do século 21.

A reconstrução do passado ou seu desvendamento através de cartas e jornais, da literatura e da filosofia. Um livro, nos ensina Jorge Luis Borges, é a memória de outros livros. Piglia sabe e vai além: o escritor trai o que lê, desvia e ficcionaliza. Trabalha com a verdade para construir um discurso que não é verdadeiro nem falso. “A crítica tenta apagar a incerteza que define a ficção”, ensina. Em Respiração artificial, transita entre a ficção e o ensaio, refaz a história da formação literária argentina e a própria história política da nação. “A literatura constrói a história de um mundo perdido”, diz. “O romance não expressa nenhuma sociedade a não ser como negação e contrarrealidade.”

“Dá uma história? Se dá começa há três anos. Em abril de 1976...”. Respiração artificial começa assim, falso romance epistolar. A data coincide com o Processo (1976-1983), como os ditadores militares chamaram o ciclo de abertura democrática argentina. O romance se refere a feitos vergonhosos e fraticidas durante a colônia, a guerra da independência e o período de Rosas, estabelecendo relação com o momento presente de então.

Alter ego de Piglia, Emílio Renzi costura a trama a partir do desejo de escrever La prolijidad de lo real como um relato que revele os segredos familiares proibidos e que seja ao mesmo tempo um relato nacional, a partir das cartas deixadas por Enrique Ossorio, “o desterrado”, traidor, espião e amigo desleal de Rosas. Ossorio tem como desejo “escrever uma utopia”: “escrever sobre o futuro”, que se passaria em 1979. Cabe ao professor e historiador Marcelo Maggi, tio de Renzi, tentar reconstruir o itinerário de Ossório e para isso procura o sogro, senador Dom Luciano, neto “daquele que lutou incansavelmente pela liberdade”. “Todos os romances acontecem no futuro”. É Piglia quem diz, anos depois. “A literatura é a arte do implícito”. É no não dito que constrói, aproveitando-se “de certo silêncio que deve estar no texto e sustentar a tensão da intriga”.

Em Descartes, segunda parte de Respiração artificial, o foco se desloca principalmente para o legado de Jorge Luís Borges, representante do europeísmo, da elegância e da erudição, e de Roberto Arlt, a voz subalterna, marginal, original. Renzi se encontra com o polonês Tardewski no Clube Social, onde irão esperar por Maggi, que não aparece. Conversam durante toda uma noite sobre história, literatura, crítica e filosofia, evitando tocar no assunto angustiante do desaparecimento do professor (pela ditadura?). Renzi-Piglia discorre sobre a formação literária do país. Ao contrário de correntes vigentes até então, coloca Borges e Arlt no mesmo patamar. Tardewski fala de Kant, Decartes, Wittgenstein e de uma descoberta extraordinária, a partir de leituras de cartas de Kafka: uma passagem obscura na juventude de Hitler: ele tentara ser pintor e se exilara em Praga e teria se encontrado com Kakfa no Café Arcos.

A literatura argentina se funda a partir de uma citação em francês, falsa, equivocada, que abre Fecundo, de Sarmiento. Borges, diz Renzi, deve ser lido como o escritor que tenta concluir a literatura argentina do século 19. É o guardião dessa tradição bilíngue: escreve textos que são cadeias de citações forjadas, apócrifas, falsas, desviadas; exibição exasperada e paródica de uma cultura de segunda-mão, invadida por toda ela por uma pedanteria patética: é disso que Borges ri, exaspera e leva ao limite. Arlt inaugura o modernismo. Nele, a língua nacional é o lugar onde convivem e se enfrentam diferentes linguagens, com seus registros e tons, o lixo, a tradução de segunda-mão. Escreve contra a ideia de estilo literário e o bom gosto. É o grande indigno. “Com a morte de Arlt, em 1942, a literatura moderna argentina chegou ao fim, o que resta é um páramo sombrio”. Coube a Ricardo Piglia fundar a sua pós-modernidade em Respiração artificial.


Marcelo Pereira é jornalista e autor de Tatuagem

 

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