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LITERATURA E DOENÇA

“A doença nasce em silêncio”, afirma Moacyr Scliar no seu livro A paixão transformada: História da medicina na literatura. Os sintomas e consequências físicas, em algum momento, podem se revelar em nosso corpo, afetando nosso cotidiano e nossa saúde. Mas, de fato, há no desenvolvimento de toda doença algo de secreto. Outra interessantíssima ideia do escritor gaúcho que, é bom lembrar, foi também médico, é a perspectiva de que a literatura e a prática médica possuem dois pontos em comum. O primeiro deles é que ambas nascem da interpretação. A literatura interpreta a experiência humana mediante representações ficcionais e poéticas; a medicina tipifica, reconstrói, intervém e elabora diagnósticos pela prática clínica, que analisa tanto o testemunho do paciente quanto os rastros da ação da doença em seu corpo. Literatura e medicina, além disso, convergem na criação de textos, defende Scliar, pois os médicos transformam a enfermidade em diagnóstico oral, prescrição, laudo. Assim, a partir de Scliar, é possível dizer que sem palavras, não há doença.

É o que nos dizem as pesquisadoras Dina Czeresnia, Elvira Maciel e o pesquisador Rafael Oviedo no livro Os sentidos da saúde e da doença, publicado pela Fiocruz: “Os sentidos da saúde e da doença são, ainda, configurados social, histórica e culturalmente. Eles não estão isentos de crenças, hierarquias, juízos e valor, conhecimentos e atitudes compartilhados em um grupo”. Os mesmos autores nos lembram que o adoecer é uma experiência cujos sentidos são construídos não somente pelo contexto social e pelas teorias científicas, mas também pela especificidade de cada indivíduo, pelo modo como cada corpo e sua subjetividade respondem à enfermidade. A linguagem humana é fundamental para esse processo. É a partir dela que construímos significações para tudo que vivemos, incluindo, aí, as noções de saúde e doença. Susan Sontag, nos seus ensaios A doença como metáfora e Aids e suas metáforas, analisa os sentidos metafóricos atribuídos, ao longo do tempo, ao câncer, à aids e a diferentes pandemias. Além de demonstrar o quanto a visão sobre essas enfermidades muda historicamente, influenciando, inclusive, práticas médicas, Sontag identifica um papel fundamental desempenhado pela literatura na criação das metáforas para elas. Scliar, em seu livro, aponta, por outro lado, o movimento inverso, o da influência da medicina na escrita literária, nos lembrando da importância da representação das moléstias em Montaigne, Tolstói, ou Thomas Mann.

Geração após geração, a doença foi narrada e poetizada. Dentro de uma tradição escrita, um ponto inicial possível da sua tematização literária se localiza nos textos homéricos e bíblicos, nos quais ela geralmente assume uma dimensão teológica. Em literaturas de língua portuguesa, a doença mental se revela importante no Auto da barca do inferno, de Gil Vicente; Camões, n’Os Lusíadas, não esquece de registrar os efeitos assustadores do escorbuto no cotidiano dos marinheiros portugueses. Duas das melhores obras de Machado de Assis e Guimarães Rosa, a novela O alienista e o conto Sarapalha, tratam de transtornos mentais e da malária, respectivamente. A loucura é tema de A obscena senhora D., a perturbadora novela de Hilda Hilst; Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, pode ser todo lido à luz de uma reflexão sobre o tema da saúde pública brasileira. Vulnerabilidade social, violência racial e seus efeitos na saúde dos corpos e das mentes da população negra africana perpassam alguns dos poemas da moçambicana Noémia de Sousa, ao passo que as mesmas articulações podem ser encontradas no tocante romance Luanda, Lisboa, Paraíso, da escritora portuguesa, de origem angolana, Djaimilia Pereira de Almeida.

METÁFORAS + COVID-19 = LITERATURA

Não é exagero dizer que esta é a primeira pandemia vivida em um mundo hiperglobalizado e hiperconectado. É o maior desafio, de tantos outros que existem, ao nosso tempo e à nossa geração. Tivemos a gripe espanhola? Tivemos o H1N1? Tivemos as crises do ebola e o auge da aids? Sim. Mas poucas vezes, em décadas recentes, uma mesma moléstia nos impactou de maneira tão rápida e tão global. A covid-19 é a pandemia para um tempo de engarrafamento de narrativas — é uma doença a circular não somente em nossas veias, mas também por nossos celulares, pela nossa fome de informação, pela multiplicação vertiginosa de imagens e vídeos ao alcance de um toque ou de um comando de voz.

É uma doença da velocidade e da paranoia. Susan Sontag aponta para o quanto a percepção das enfermidades passa por uma atribuição metafórica de qualidades a cada uma delas. Há doenças úmidas. Há doenças aquosas. Há doenças da terra, da escatologia e do nojo. Há doenças sólidas. A covid-19 é uma doença da transparência do ar. Ela não produz, de modo geral, pústulas, ou odores, ou feridas visíveis, e sim o sufocamento, a elevação da temperatura, a tosse. Não é palpável. Possui parentesco espiritual com as radiações, com o silêncio das radiações, com a transparência do desamparo e do esvaziamento. Está diante de nós como uma realidade inescapável.

Os poucos que ainda negam sua existência, que a acusam de ser uma conspiração comunista, precisam dar conta dela para se iludirem. Ou seja: os terraplanistas do vírus estão no mesmo barco que todos nós. Por ser inescapável, a covid-19 produz um efeito colateral importante, o espetáculo da pandemia, cuja faceta sombria é o apagamento. A moléstia é soterrada pelos números em queda ou crescimento, pelas porcentagens, pelas estatísticas, pelos textões e áudios do “zap”, pelas gravatas dos repórteres e pelas lives demagógicas, em alguns casos assassinas, dos políticos. Será lembrada como a enfermidade de uma era cuja pergunta mais cotidiana foi tomada de empréstimo da literatura fantástica e da ficção científica: “Alguém pode dizer se isso é mesmo real?”.

Nesse sentido, a literatura pode ser bastante relevante. Porque é a arte da palavra. E em direção à palavra convergem nossa humanidade, nossa percepção dos sentidos da enfermidade e da saúde, nossa estupefação diante tanto do nascimento da vida quanto das sombras da morte. É a partir daqui que pergunto: de março a julho, como a ficção brasileira contemporânea tem narrado a pandemia? É possível identificarmos algumas tendências narrativas? Preferências por algum tipo de cena, situação ou personagem? Há um “estilo” da literatura da pandemia? Qual o gênero literário de preferência dos nossos narradores? Onde o leitor pode encontrar algumas dessas histórias? Antes de continuarmos, porém, precisamos fazer uma pausa metodológica (o leitor pode pular tranquilamente, caso deseje).

 

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A PAUSA METODOLÓGICA

As reflexões que compartilho nesse ensaio são os primeiros passos de um projeto de pesquisa que tenho desenvolvido como professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. A pesquisa é feita em parceria com dois professores, ambos médicos, do curso de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco, Iris Campos Lucas e Saulo Feitosa. Além das autoras e autores citados até o momento, minha pesquisa tem dialogado com Foucault, Barthes, Annie Le Brun, Roberto Bolaño, Virginia Woolf e com as pesquisas sobre as relações entre medicina e narrativa feitas pela professora da USP Fabiana Carelli. Há anos também pesquiso sobre ficção brasileira contemporânea e nesse sentido penso essa produção a partir das excelentes contribuições de Tânia Pellegrini, Helena Bonito Pereira, Leyla Perrone-Moisés e Regina Dalcastagnè.

O que foi lido? Entre a prosa e o verso, minha análise se focará na prosa de ficção. Ficam de fora, por enquanto, os relatos testemunhais, os diários e as crônicas. Nessa seara não ficcional, há muita coisa publicada. Tanto a imprensa quanto diferentes sites têm dado espaço para que dezenas de autores e autoras possam relatar o passo a passo da vida com o vírus no ar. Além disso, há incontáveis blogs, coletivos, perfis de redes sociais com textos, vídeos e imagens retratando a pandemia. Um experimento interessante, por exemplo, são os “Diários do Isolamento”, seção do blog da editora Companhia das Letras. Indico em especial os textos de Jarid Arraes e Jessé Andarilho. As crônicas de Juliana Borges no site da revista Claudia (sua coluna se chama “Diário de uma quarentener”) também valem uma visita. Além disso, a seção “Cartas de um outro tempo”, publicada pela revista Pessoa, contém várias reflexões interessantes de portugueses, brasileiros e moçambicanos sobre nossos tempos. No campo de uma prosa mais confessional, é possível apontar a iniciativa da editora Todavia que, em formato e-book, publicou um diário da jornalista Anna Virginia Balloussier. Na obra, a autora aborda a vivência da pandemia a relacionando com sua experiência recente de maternidade.

No caso da ficção, por enquanto a maior parte da produção literária relacionada à covid-19 tem sido publicada em formas literárias mais curtas, como o conto e a crônica. Mas temos já os primeiros romances brasileiros da pandemia. Um dos primeiros romances, se não o primeiro, foi escrito pela mineira Gisele Mirabai: Ana de Corona, obra autopublicada em e-book. A editora Planeta também foi rápida, lançando a coleção de e-books “Pela Janela”, composta por livros que transitam entre a crônica, a novela e o romance, numa linha editorial bastante comercial e com ecos da autoajuda.

Tudo isso ficará para os próximos passos da uma pesquisa que, espero, se desenvolverá por um bom tempo. Para este Pernambuco, minha leitura enfatiza contos e uma crônica. Selecionei antologias publicadas na imprensa e por editoras. Chama atenção o quanto já no meio de março nossas escritoras e escritores começam a marcar presença. Folha de S.Paulo, Época, O Estado de S. Paulo e a revista Gama (ligada ao portal de notícias Nexo): minha análise contempla todos os contos publicados pelos quatro veículos de imprensa.

Consegui encontrar, até agora, as seguintes antologias de contos focadas na temática da pandemia: Contos de quarentena (Edição de Mauro Paz, publicada no final de março), Amores em quarentena (Monomito Editorial, publicada em abril), Quatro contos de quarentena (Editora Ipêamarelo, publicada em abril), Histórias da pandemia (Editora Alameda, publicada em maio), Quarentenas: Textos de uma quarentena criativa (Editora Palavra Bordada, publicada em junho), Pandemônio: Nove narrativas entre São Paulo e Berlim (Pandemônio Edições, publicada em julho). Destas antologias, analisei Amores em quarentena, Histórias da pandemia e Pandemônio. Por fim, está incluída na análise que se segue a novela Entre amar e morrer, eu escolho sofrer: Um conto de pandemia, escrita por Sacolinha e publicada pela editora Todavia em julho.

Foram analisados, no total, uma novela, uma crônica de Cidinha da Silva publicada pelo Pernambuco e 48 contos.

Nas seções que se seguem, tento delinear uma visão de conjunto de toda essa produção, com a ressalva de que o meu panorama sempre acaba dizendo menos do que a complexidade de cada obra literária analisada. As sínteses esboçadas são um convite para que os eventuais leitores possam se interessar em ler esses textos e tirar suas próprias conclusões. Outro ponto importante a destacar: o fato de um conto ter sido citado em determinada tendência não significa que ele não possa se encaixar em alguma outra. A minha proposta é a de descrever, comentar e desenhar panoramas. Não farei julgamentos sobre a qualidade — variável — de tudo que li.

UM ROSTO LITERÁRIO NA PANDEMIA

É difícil falar de mais de 50 experiências literárias e definir, de maneira unívoca, um “estilo” único. As autorias que as produziram são múltiplas, como logo mais ficará evidente. É sempre interessante percorrer, em um curto espaço de tempo (esse é um prazer secreto das antologias!), uma sequência de textos escritos por diferentes pessoas, porque da mesma matéria-prima (a língua portuguesa) e da mesma proposição temática (a pandemia) surgem dezenas de perspectivas e elaborações ficcionais diferentes entre si.

No entanto, é possível apontar tendências. Há, nas obras analisadas, uma escolha predominante pelo registro do realismo. Mas a qual realismo me refiro? A uma escola marcada por um registro linguístico padrão, urbano e que se calca fortemente, em termos de modos de representação, nas diretrizes estabelecidas pelos grandes realistas do Romantismo, do Realismo e do Naturalismo. Há uma tendência de fixação de cenas do cotidiano, assim como uma aproximação das narrativas com a crônica, o comentário político e o jornalismo. Como consequência, identifiquei uma influência menor dos realismos experimentais modernistas. Há, ainda, poucas experiências com o registro do fantástico, embora a ficção científica apareça de modo surpreendente em alguns casos, e da prosa poética. Também identifiquei poucos traços dos jogos linguísticos e lúdicos que foram marcas de certo tipo de ficção das últimas décadas, marcas estas às vezes classificadas como “pós-modernas”. É perceptível uma camada confessional e até autoficcional em parte considerável dessa produção, com narrativas-relatos que criam a ilusão de espelhamento entre a voz que narra e a pessoa biográfica que escreve. Poucos são os contos contrapondo momentos históricos diferentes, em especial o contraste de quadros pandêmicos em perspectiva comparada. Três exemplos do diálogo com a historiografia são, porém, os contos A implausibilidade das árvores, de Karin Hueck, As mortes de Antonio Valle, de Marcelo Godoy e Antieuclidiana, de Noemi Jaffe.

Outra ênfase importante consiste no registro de marcas identitárias vinculadas à condição social, ao espaço urbano das periferias, ao gênero, à identidade sexual e à questão étnico-racial. Nesse sentido, um texto exemplar é a crônica de Cidinha da Silva, Becos, vielas, afoxé e congado, na qual todas as temáticas citadas contribuem para uma visão crítica das implicações políticas da pandemia. As narrativas da pandemia têm uma postura, de modo geral, bastante crítica a respeito das atuais políticas públicas sanitárias, ou da ausência delas, como no caso das denúncias encontráveis na novela escrita por Sacolinha. Críticas, veladas ou diretas, à atuação errática, negacionista e negligente do presidente Jair Bolsonaro abundam nas narrativas.

Voltando à questão da linguagem, deixo dois exemplos do que quero dizer quando penso no realismo predominante e com um forte pé na crônica, a ponto de muitas vezes a distinção entre conto e crônica ser de difícil estabelecimento. É o caso de E o coronavírus vos declara marido e mulher, de Giovana Madalosso, no qual a escritora curitibana narra as agruras de um casal de classe média obrigado a uma intensa convivência devido ao isolamento social. Já a escritora paulista Amara Moira, no conto Confinadas, aborda o tesão e a tensão vividos por duas mulheres trans obrigadas a conviver juntas pelo mesmo isolamento social. As duas autoras escrevem sobre uma experiência cuja moldura é a vida nas cidades, mas enquanto a primeira lança mão de um registro urbano padrão, a segunda também nos faz escutar a voz das cidades, porém numa linguagem permeada por expressões do dialeto LGBTQIA+, o pajubá. Em comum, porém, o olhar agudo de cronistas.

Por outro lado, contos como o de Santiago Nazarian, Corpo estranho, como Aurora, de Veronica Stigger, ou Brasil caramelo, de Evanilton Gonçalves, tomam o caminho do fantástico, do absurdo e do insólito. No caso de Stigger, o experimentalismo do monólogo interior cria uma visão delirante da realidade do isolamento. A narradora e nós, leitores, não conseguimos definir com absoluta certeza as fronteiras da realidade. Gonçalves narra os impactos cotidianos da covid nas cidades brasileiras numa linguagem e abordagem que lembram a da tendência geral realista, mas o faz através da voz de um animal, o que acrescenta dimensão satírica ao seu relato. Nazarian se propõe a pensar sexo e fetichismo em tempos de isolamento, mas subverte as expectativas do leitor com o insólito das linhas finais do seu conto.

Apesar das exceções apontadas, o realismo, nos termos postulados parágrafos atrás, é a tônica predominante. É possível explicar essa recorrência? Proponho duas hipóteses. A primeira é que há um retorno significativo a formas mais tradicionais de narrar em tempos recentes na nossa ficção, tendência essa cujas motivações precisarão ser discutidas em outra ocasião. Penso, porém, em uma segunda hipótese, a de que, inclusive nas obras mais experimentais e/ou insólitas, há uma urgência de realidade por parte das autorias contemporâneas analisadas. Não poderia ser diferente, suponho: escrever no “calor da hora” implica em compartilhar a experiência da pandemia, em esboçá-la, ao menos nessa primeira etapa da sua elaboração ficcional, nos seus aspectos mais reconhecíveis. Movidos pelo senso do imediato, é como se os contos agarrassem pedaços da realidade num gesto brusco e urgente, lapidando-os contra um pano de fundo social acelerado, no qual tudo pode mudar de uma hora para a outra.

 

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Tal proposta, como tudo, tem qualidades e limitações. A urgência de realidade, de registrar o impacto imediato da pandemia, de desenhar, em tons comunicáveis, cenas cotidianas e problemáticas imediatas, tem o potencial de criar uma conexão direta com nossas angústias — nós que, enquanto leitores, vivemos sob a mesma condição pandêmica. É uma literatura que toma para si a difícil missão de dar conta do agora com todas as suas asperezas, nos presenteando com uma ficção literalmente colada ao presente. No entanto, a ausência de certo distanciamento pode prejudicar a inventividade de muitos desses textos, ou mesmo a sua profundidade. Na balança, cada leitor pode escolher o que pesa mais.

Quem são essas autorias? Qual o rosto dos escritores e escritoras que tiveram coragem de dar conta dos primeiros meses da pandemia? A questão da diversidade na literatura brasileira e em nosso mercado editorial tem sido tema de acalorados debates. Embora haja uma concentração de escritoras e escritores vivendo e publicando no Sudeste, em especial homens, o panorama geral se revela muito mais diverso do que se antologias semelhantes fossem publicadas há alguns anos. Em termos de diversidade regional, por exemplo, me agradou conhecer algumas vozes interessantes do Pará.

As antologias publicadas pela imprensa tendem a escolher autores mais consagrados por editoras tradicionais, ao passo que as antologias publicadas pelas editoras menores trazem à tona também vozes mais vinculadas ao cenário independente. O espaço de intervenção literária tem a internet e os meios digitais como suporte prioritário. Portanto, para compor corretamente o mosaico dessa produção, é preciso pesquisar tanto as iniciativas não hegemônicas quanto as realizadas pelas grandes empresas editoriais e de mídia.

O TEMPO LITERÁRIO DA PANDEMIA

As narrativas analisadas são obcecadas pela ideia de tempo. Trata-se de um tempo fraturado. Um tempo da clivagem.

De maneira explícita, ou implícita, é feito um contraponto entre o antes e o depois da emergência da covid-19 no Brasil e no mundo. A vida seguia seu rumo — então, de repente, tudo mudou. O passado não é, porém, idealizado, mas há uma percepção de que os problemas, tanto sociais quanto existenciais, se revelam, em toda sua dor e contradições, ainda mais agudos com a fratura criada pela pandemia. As doenças crônicas se tornam mais ameaçadoras; as condições de trabalho, precarizadas, desmancham no ar; pactos familiares explodem em violência doméstica. Se não há idealizações, existem saudades, nostalgias e sensações de perda. As personagens, contudo, não buscam o retorno ao mundo “anterior”; seguem em frente numa luta pela superação e sobrevivência, apostando, ansiosas, resignadas, indignadas, na possibilidade do futuro.

Em relação ao “depois”, os textos se dividem em três categorias. Existe um grupo, composto pela maior quantidade de narrativas, que não se preocupa com o amanhã, abrindo mão de qualquer forma de especulação futura, preferindo concentrar seu olhar no presente absoluto. Existe o grupo da esperança, da aposta de que vamos melhorar e aprender. São contos que resgatam uma dimensão utópica que há muito tempo eu não encontrava em nossa literatura. Contos como Profetas da mentira (Chico Mattoso), a novela Entre amar e morrer, eu escolho sofrer (Sacolinha), Antieuclidiana (Noemi Jaffe), A espera (Veronica Stigger) ou De novo pela primeira vez (Leonardo Villa-Forte) são exemplos da tentativa, em maior ou menor grau, de abrir a janela — ou uma fresta — do futuro para tentar enxergá-lo com algum otimismo. Em Sacolinha e Mattoso, novos pactos sociais e até institucionais são anunciados, pactos esses nascidos da solidariedade e de uma renovada consciência crítica que surgiria no pós-pandemia.

O terceiro grupo, no entanto, é fortemente pessimista, vislumbrando cenários de destruição, caos, violência e autoritarismo. Aqui ocorre a aproximação com a ficção científica em sua vertente distópica. São distopias de um presente próximo, mais vinculadas a um seriado como Black mirror do que aos filmes da série Matrix. Ou seja, o distópico estaria logo ali, no “depois de amanhã”. São imaginadas sociedades militarizadas, controladas pelas tecnologias que já existem em nosso presente, opressoras em especial de minorias e das camadas mais pobres da população. É o futuro vislumbrado por Simone Campos, Jorge Filholini, Fred di Giacomo e Caco Ishak.

Então, entre o passado perdido e o futuro incerto, o que sobra? O hoje, o tempo presente.

Como disse antes, no sentimento de urgência de realidade, os segundos da experiência pandêmica tentam ser fixados a todo custo. No entanto, tal fixação, sempre problemática, está fadada a ser esmagada pelas ansiedades temporais do passado-futuro. Compromissados com o presente, boa parte dos contos nos lega a tentativa de um “print” do agora, cujo resultado ficcional é um “hoje” sobrecarregado de tempo, saturação e movimento.

ISOLAMENTO X MOVIMENTO

Para além do viés temporal, as narrativas da covid-19 podem ser lidas através dos espaços narrativos. Nesse sentido, podemos dividi-las em dois grupos relevantes. Temos as narrativas cuja ênfase recai no que chamo de espaços do isolamento, em contraponto com um outro conjunto de narrativas, de menor quantidade, que classifico como marcadas por espaços do movimento. Cada tipo de espaço se associa a classes sociais específicas. Os espaços do isolamento tendem a aparecer com maior relevância naquelas narrativas dedicadas aos dramas vividos por personagens da classe média ou abastada.

Quais são os espaços do isolamento? Os espaços domésticos das casas e dos apartamentos. São razoavelmente seguros, nos quais as personagens se refugiam para cumprir as recomendações de isolamento social. É a partir do confinamento que as dimensões temporais e os dramas das personagens se desenrolam. Uma variação interessante é a do refúgio em uma propriedade vinculada ao mundo rural e/ou da natureza: casas de campo, sítios, fazendas, barcos. Nos espaços do isolamento, explodem os conflitos familiares e/ou com parceiros, mas igualmente a representação do sentimento da solidão. Esses conflitos não são exclusivamente de ordem interior, mas a dimensão subjetiva acaba se posicionando na linha de frente. Além dos muros, das portarias e dos condomínios, há o Outro Lado — a rua, cuja separação com o espaço doméstico, nessas narrativas, tende a acontecer de maneira bastante dicotômica.

Volto ao alerta antes dado: isso é um modelo geral de uma tendência dos contos. Cada um deles vai configurar o espaço do isolamento ao seu modo. Mas textos como Desmemórias do vírus, de Márcia Denser, Ciúmes, de Luiz Kignel e Boas-novas, de Nara Vidal, são exemplos que se enquadram bem. Em outros contos, como é o caso de Fel, de Javier Arancibia Contreras — retrato de uma parcela, brutalizada e hipócrita, da elite brasileira —, há uma transição entre o espaço doméstico e o espaço público, porém o ponto de referência narrativo continua a ser o espaço do isolamento. O mesmo ocorre no conto A febre vai lhe cobrir os ossos, de Paloma Franca Amorim.

Pode parecer estranho que, para definir a segunda categoria, eu use a palavra “movimento” em tempos de pandemia, época marcada em nosso imaginário social como momento da “interrupção”, do “isolar-se”, do “confinamento”, da “diminuição do ritmo das coisas”. Sem dúvidas, os contos que enfatizam os espaços do movimento fazem um consciente contraste com essa percepção. Ao contrário da claustrofobia, da sensação de sufocamento e emparedamento do primeiro grupo, nos espaços do movimento as personagens estão em constante movimentação pelos espaços urbanos onde vivem. Os dois conjuntos de narrativas, portanto, se complementam. Os espaços do movimento são percorridos em sua maioria não pela classe média ou rica, mas sim pelos moradores de bairros periféricos, pelas pessoas em situação de rua, por criminosos, por trabalhadores uberizados, por desempregados, por pequenos empreendedores cujos negócios se encontram à beira da falência. Sem condições financeiras e sociais de implementar de maneira adequada um isolamento social, abandonadas pelo poder público, essas personagens vagam pela cidade em uma jornada de dupla sobrevivência: é preciso resistir ao vírus e à ruína econômica. Um bom exemplo é o conto As ruínas mais belas, de Carol Bensimon, protagonizado por um homem que limpa de piscinas de hotéis.

Nas narrativas que enfatizam os espaços do movimento, os ambientes domésticos ficam em segundo plano e os espaços públicos se tornam onipresentes. Dois exemplos vêm de escritores paraenses. No conto O corre, de Edyr Augusto, o isolamento social é visto como uma oportunidade para que um grupo de criminosos realize um assalto que, no fim, os envolve numa trama de traição e violência, tudo isso escrito numa linguagem com tons experimentais, marcada pela oralidade das ruas e do submundo de Belém. Em um registro mais otimista, o também paraense Toni Moraes conta em Love eggs uma bem-humorada e calorosa história de reinvenção de uma família de classe média baixa. Ao ter seu principal meio de sustento, o da venda itinerante de ovos, imobilizado pela pandemia, um conservador pai de família, auxiliado por seu filho gay, encontra uma inusitada saída para driblar a crise econômica. Ao longo do conto, a denúncia social, com toques de comédia de costumes, se transforma em uma fábula da plena aceitação da sexualidade do filho pela figura paterna. Outros contos trabalham os espaços do movimento com a fragilidade da condição do imigrante brasileiro que, por conta das ações de isolamento social e fechamento de fronteiras, se encontra ilhado em uma terra estrangeira, como pode ser visto em Møns Klint, de Alexandre Ribeiro.

A MORTE, O DUPLO, A INTERNET

Tivemos os espaços do isolamento versus os espaços do movimento, o sopro utópico versus a desesperança das distopias e a clivagem temporal, com uma cicatriz traumática formada entre o passado pré-pandemia e o esmagador tempo presente. A duplicidade ecoa igualmente nas relações dos personagens entre si, servindo como combustível aos conflitos de cada texto. Para cada protagonista das obras analisadas, há um Outro perfeitamente definido. Esse Outro é objeto de desejo, saudades, indignação, violência, cobiça. Isso faz parte da própria lógica de construção do gênero conto. Por ser um gênero literário da concisão e da concentração de energias narrativas, é natural que haja com maior frequência o foco em um único conflito, seja o de um protagonista contra um antagonista único ou contra as ideologias sociais que o envolvem. No entanto, a dimensão básica da construção tradicional de um conto se acentua e reverbera no contexto temático da covid-19. É como se as personagens, bem como as relações que as envolvem, fossem um eco poético das fraturas fundamentais de espaço e tempo desta era pandêmica.

Outra possível dicotomia se revela nas relações entre o real e o virtual. Milhões de brasileiros tiveram que se digitalizar à força. Vale uma analogia com nossa literatura. A literatura brasileira contemporânea, ao menos no caso das obras aqui analisadas, se digitalizou. Com isso quero dizer que a internet e os desdobramentos da vida online são uma característica temática recorrente. Nelas, o virtual não estabelece a relação de oposição do espaço doméstico em contraponto ao espaço público. Pelo contrário, encontramos mais porosidade, mais zonas fronteiriças, com o virtual e a vida presencial se alimentando mutuamente. As autorias contemporâneas têm demonstrado estar atentas a uma relação dialógica cujos efeitos são muitas vezes imprevisíveis. A retroalimentação, entretanto, não se reflete muito na linguagem. A possibilidade de uma experimentação linguística influenciada pela internet — com seus ícones, hipertextos, emojis, ou formas próprias de estruturação da informação — é deixada de lado. Os contos de Paloma Franca Amorim, Socorro Acioli, Luana Chnaiderman e Bianca Gonçalves são ótimos exemplos de como a literatura pandêmica está tratando a internet.

Onde está o corpo adoecido? Ele aparece sempre nas margens narrativas. O corpo doente dificilmente é o do narrador ou protagonista. A doença está sempre no Outro, sem que sejam explorados em detalhes os efeitos físicos dela. E esse corpo é colocado à distância, não recebendo os holofotes das cenas ficcionais. Da mesma forma, há muitos corpos doentes, mas poucas imagens e metáforas diretamente vinculadas à enfermidade. Ocorrem mortes pela covid-19, porém elas são narradas, em geral, com comedimento e distanciamento. Não há detalhamento dos efeitos dela nos corpos. Nos contos analisados, a pandemia está isolada em quartos fechados ou em UTIs, por exemplo. O vírus é tratado como uma sombra ameaçadora, à espreita nas ruas, porém dificilmente como uma presença que, de maneira trágica, ou visceral, abala a integridade física dos protagonistas dessas histórias.

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Contaminação. Incubação. Cura. Ciclos: as doenças vivem, morrem e renascem dentro de nosso corpo, nos fazendo lembrar dos laços de temporalidade e mortalidade aos quais todos nós estamos sujeitos. O balanço dos impactos da pandemia — e as batalhas narrativas que a cercam — não esperará o fim da doença para surgir. Pelo contrário, contamos histórias sobre o que vivemos desde o primeiro dia. A literatura brasileira contemporânea é um dos primeiros registros artísticos visíveis desse processo.

Contra o silêncio, não mais da doença, e sim da política e dos apagamentos, a literatura se fez e se fará ouvir. Nossos enredos e desenredos estão apenas começando.