Mat. Capa 1 Karina Freitas nov.2020

 

Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza
Murilo Mendes, Canção do exílio (1930)

Poucas vezes se encontrará na história cultural brasileira um momento como o Modernismo de 1920, quando projetos de identidades coletivas não pareciam necessariamente excluir, mas, antes, poder compor com sentidos cosmopolitas. Como se sabe, a valorização do primitivismo estético aprendida pelos brasileiros com as vanguardas artísticas europeias ao mesmo tempo em que lhes conferia certa contemporaneidade, digamos, “externamente”, também parecia começar a fazer um novo sentido “internamente”. Foi uma grande descoberta a de que, em nosso caso, aquilo que o europeu considerava ambiguamente positivo encontrava-se não em lugares distantes e exóticos, mas entranhado em nossa própria experiência social e sensibilidade. Também aqui sempre ambígua, essa valorização acabou favorecendo uma nova percepção sobre o “popular”. E é esta nova percepção que se coloca na base do projeto coletivo modernista de desrecalque da cultura brasileira e de reconhecimento da dignidade de formas culturais não eurocêntricas.

Um projeto não só localista ou nacionalista, como se tem repetido, mas com sentido potencialmente cosmopolita pelo tipo de relação um pouco mais descentrada de convivência com o mundial a partir da diferença local, e que trazia também aberturas potenciais em várias direções. Ainda, a descoberta modernista prometia se não a superação, uma problematização muito potente da imemorial dialética entre “interno” e “externo”, do balanceio caprichoso entre um “dentro” e um “fora” da cultura brasileira e da própria ideia de cópia que a tem perseguido obsessivamente.

Quase cem anos depois, próximos do centenário da Semana de Arte Moderna de São Paulo de 1922, seu marco simbólico maior, somos forçados a constatar não apenas um aparente fracasso da empreitada cosmopolita do Modernismo, como também o retorno de um nacionalismo programático autoritário em correntes de opinião, políticas governamentais e manifestações públicas no Brasil. Mais ainda, vivemos um momento global de recrudescimento dos nacionalismos e das fronteiras nacionais que deixa poucas ilusões sobre a chamada mundialização da cultura. Esta não parece estar, de fato, gerando relações exatamente multicêntricas ou mais equitativas, apesar da intensificação de trocas de todos os tipos garantidas pelos desenvolvimentos tecnológicos. Também na cultura persiste uma geopolítica com relações e trocas assimétricas que recria hierarquias de vários tipos. O que teria dado errado?

Que o Modernismo como um todo operou uma democratização da cultura parece claro, bastando verificar o que se considera “cultura” e “cultura brasileira” antes e depois dele. Mas como conviveu pouco com a democratização social por conta da persistência e recriação das desigualdades sociais (fenômenos diferentes, mas correlatos e implicados um no outro entre nós) e com a própria democracia enquanto forma de exercício do poder político e institucional, a força crítica que o movia parece ter perdido alcance e mesmo fôlego. No meio do caminho do Modernismo tinha uma ditadura, a do chamado Estado Novo (1937–1945). Na verdade, ao menos duas. Se considerarmos os últimos 100 anos, há ainda a ditadura civil-militar (1964–1985), para não falar de outros momentos autocráticos, como o que estamos de certa forma vivendo.

Mesmo considerando as realizações ambivalentes do Estado Novo em várias áreas, e o fato de que não foi uma instituição monolítica, mas um campo de forças complexo, ainda assim ele foi uma tragédia para o Modernismo. Tudo começou justamente ao dar vazão institucional aos anseios de mudança cultural, social e política presentes na sociedade. A seu modo autoritário, centralizado e populista, o Estado Novo trouxe para a esfera pública a questão da cultura brasileira pela qual os modernistas de diferentes orientações político-ideológicas vinham batalhando — pari passu a sua apropriação e transformação em clichês de brasilidade na então nascente indústria cultural. No contexto de exceção, de restrição às liberdades civis e políticas, de repressão policial da ditadura Vargas, porém, foram muitos os limites impostos tanto para a democratização dos bens culturais quanto para a afirmação da cultura como parte de um processo de democratização da sociedade e do Estado.

Do mesmo modo, foram muitos os modernistas e são muitos os modernismos. E isso, mesmo considerando apenas a sua matriz paulista, que, apesar de sua diversidade interna, acabou conseguindo impor, em grande medida, uma representação hegemônica unitária sobre o seu papel na renovação cultural. O que, porém, está longe de qualquer consenso, se lembramos da importância dos grupos modernistas do Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais, por exemplo. Houve convívio e colaboração, mas também disputas e conflitos entre diferentes grupos ou correntes modernistas; e algumas delas conseguiram mais êxito na representação de seus ideais junto ao conjunto da sociedade e no próprio Estado, quer por afinidades ideológicas, quer por senso de oportunidade. Sem dúvida, os nativistas do Movimento Verde-Amarelo, que já foram chamados de “falsa vanguarda”, e entre eles o integralista Plínio Salgado, são os vencedores, de certa forma, nesta história que corremos o risco de ver agora retomada, e já não nos falta o uso programático, agora farsesco, do auriverde pátrio.

DESRECALQUE COSMOPOLITA

Dando um salto para frente no tempo, e mesmo pulando a ditadura que se seguiu à de Vargas, paradoxalmente parecemos cair para trás, empurrados pelo nosso passado. Artimanhas da história, mais uma volta na espiral da democracia. Em 2020, voltamos a presenciar políticas governamentais da área da cultura e da cidadania pautadas pela consagração de tradições eurocêntricas inventadas, de símbolos e heróis nacionais grandiloquentes e por elogios às elites dirigentes. Em suma, aquele Brasil “impávido colosso” que o autoritarismo soube e sabe tão bem alimentar — e que torna a palavra “cosmopolita” tão perigosa.

O que teremos aprendido com a tragédia da busca da brasilidade modernista que, sem uma sociedade civil robusta para lhe dar sustentação política, acabou desembocando no autoritarismo do Estado Novo sem deixar de ser requentada pela ditadura civil-militar de 1964? O Brasil se vê novamente diante de um conflito agudo pelo controle político da mudança cultural, já que mudanças na sociedade e na política nunca se realizam desacompanhadas de processos culturais que lhes dão significados. O que fazer com o legado modernista de empatia pelo outro, de curiosidade pelo Brasil e de reflexão crítica e desabusada nesse novo contexto de luta pelo controle da mudança cultural que estamos novamente vivendo?

Para a comemoração do centenário do Modernismo, nossa aposta está na substituição de uma hermenêutica das origens, por meio da qual o Modernismo foi sendo domesticado como “identidade nacional”, por uma incitação cosmopolita à criação, à desestabilização de “identidades” como um todo em prol da abertura às alteridades. Cosmopolitizar o Modernismo significa tanto desrecalcar sua presença perene na história, quanto apostar no aperfeiçoamento do seu sentido crítico e democratizante.

Como lembra Silviano Santiago em Genealogia da ferocidade (2017), toda recepção é também uma domesticação ao conhecido, ao assentado, ao hegemônico. Com algumas vertentes do Modernismo também foi assim: as tensões e ambiguidades constitutivas de suas ideias e seu sentido crítico em relação aos temas dominantes de seu tempo foram, em grande medida, perdidos nos últimos 100 anos. Diferenças apagadas, ele pôde, então, ser monumentalizado como praticamente matriz oficial da modernidade cultural brasileira, com todas as violências simbólicas aí implicadas. Convenhamos, a consagração de um movimento cultural nem sempre significa exatamente a realização dos seus ideais. Em alguns casos, muito pelo contrário.

Felizmente, há muitas formas de viver um mesmo tempo, de estar presente num mesmo contexto. Se isso vale para a gente, por que não valeria para os nossos antepassados? Embora “identidade”, “nacional”, “brasilidade”, “cosmopolita” sejam categorias comuns nos anos 1920–1930, não significam a mesma coisa, de autor para autor. Longe de apenas corroborar o senso comum, há sentidos próprios atribuídos a essas e outras categorias cruciais da gramática modernista que não se deixaram disciplinar inteiramente pelos valores hegemônicos de sua época, existindo nela mais a contrapelo; e por isso pulsam ainda hoje como todo um mundo-Brasil que poderia ter sido e ainda não foi.

MÁRIO, MARCO ZERO

A discussão proposta já encontra lastro em pesquisas importantes que compõem o repertório interpretativo do Modernismo e do moderno na sociedade brasileira. Nós mesmos temos nos dedicado nos últimos anos à rearticulação sociológica entre cosmopolitismo e Modernismo em nossas pesquisas sobre Mário de Andrade. Assim, temos procurado deslocar a ênfase reiterativa sobre um Mário ideólogo da “identidade nacional”, argumentando que, em vez de formulador de uma visão sintética, unívoca e estável de identidade, ele se mostrou crítico às ideias de autocentramento e de autenticidade da cultura brasileira. Além de ter se posicionado contra um sentido eurocêntrico da cultura brasileira e mantido uma escuta atenta à sua diversidade regional.

Para nós, a identidade em Mário de Andrade assume um caráter inacabado e um sentido de busca permanentemente em aberto, que temos relacionado às suas visões estéticas, intelectuais e políticas potencialmente democráticas. Nesse sentido, a própria valorização da cultura popular, tão emblemática em sua obra e trajetória, pode ser revista menos nas chaves usuais de um colecionismo romântico ou de uma experiência precursora da etnografia brasileira, presentes no movimento folclórico dos anos 1930–1960, e mais como política cultural de reconhecimento. Se Mário valorizou a cultura popular ou buscou problematizar as fronteiras entre erudito e popular, seu interesse não se extingue nas manifestações que colheu, mas antes no reconhecimento social e político que provocou delas e na dignidade e visibilidade que procurou conferir a seus portadores sociais.

Identidades (no plural) e diferença, abertura ao conflito e à contingência. Substrato democrático do pensamento crítico de Mário de Andrade que desconfia das sínteses apressadas, porque sabe que os elementos díspares podem estar em condição de escandalosa assimetria social. E sem deixar de colocar criticamente as relações coloniais, atenta para o localismo do universal e o alcance universalista do próprio local. Isto é, sem reificar nem localismos em seu particularismo nem o universalismo em sua abstração, coloca pelo avesso a perspectiva colonial num esforço notável de pôr local e universal não apenas em relação (o que já traz uma nota crítica), mas efetivamente em diálogo. Mesmo sabendo que o processo social pode continuar reiteradamente repondo divisões estanques entre classes, nações, cultura erudita e popular, não há por que ter medo da utopia.

Como o provam as suas obras capitais, ambas de 1928, o Ensaio sobre música brasileira e Macunaíma, sem incorrer numa noção unilinear de “progresso”, Mário de Andrade traz, nas ambiguidades do seu “pensamentear”, uma forma capaz de trabalhar a matéria “brasileira” na chave da diferença e da igualdade, o que abre espaço para a difícil combinação de pensamento crítico e a crença utópica de que, a despeito das evidências em contrário, há espaço para a democratização das relações sociais. Ao elaborar uma perspectiva brasileira relacional e descentrada sobre o Brasil e o mundo, sob “ruínas de linhas puras” e retas (isto é, de essências e teleologias históricas), Mário abre uma via fecunda de interpelação ao presente, na qual está em jogo a possibilidade de (re)elaborar-se na relação com o outro. Mário “desgeograficado” (como nos ensina Telê Ancona Lopez); cosmopolita, como desejamos provocar. Brasil trezentos, trezentos e cinquenta: não como identidade, mas como multiplicidade.

Mat. Capa 2 Karina Freitas nov.2020

 

COMO LER A DIFERENÇA CULTURAL?

As interpretações modernistas do Brasil e as linhagens intelectuais que elas criaram se organizam centralmente em torno da polêmica sobre a originalidade e a cópia da cultura brasileira que vem sendo formalizada, na fortuna crítica, sobretudo pela ideia de síntese — dialética ou não — entre nacional e mundial ou local e cosmopolita.

Certamente, o campo problemático formado por esses pares é bem mais amplo do que o Modernismo, pois diz respeito à experiência social brasileira como um todo. Mais ainda, diz respeito a qualquer sociedade, embora seja particularmente sensível naquelas que décadas atrás ainda chamávamos de “sociedades dependentes”. Não importa agora se “dependência cultural” ainda é a melhor categoria ou não para dar conta do problema, mesmo que os fenômenos envolvidos não sejam, hoje, exatamente os mesmos do passado recente. Mas continua, sim, a existir uma geopolítica mundial da cultura com relações e trocas assimétricas e recriação de hierarquias de vários tipos. O importante aqui é reconhecer que o Modernismo e as teorias sobre o Modernismo estão justamente disputando o sentido desse processo de dependência cultural mais amplo. Em jogo, não apenas o passado, mas também, no presente, as possibilidades de futuro da cultura brasileira.

Nossa proposta de uma incitação cosmopolita à diferença cultural pretende, então, provocar e colaborar para que se chegue a uma nova interpretação do sentido do Modernismo na cultura brasileira que seja capaz de fugir das disjuntivas que dividem a sua imensa, prolixa e rotinizada fortuna. O problema não comporta resposta unívoca. Enfrentá-lo requer muitas cabeças diferentes e um gesto não disjuntivo de pensamento, que, ao invés de repor polaridades e binarismos, favoreça uma perspectiva mais complexa, capaz de não apenas nuançar, mas colocar em xeque dualismos assentados. Quem sabe permita, assim, surpreender uma nova rearticulação tensionada entre “localismo” e “cosmopolitismo” em processo.

São três, nesse sentido, as principais vertentes contemporâneas sobre o problema da originalidade e dependência da cultura brasileira que acionam, e atualizam com sentidos variados, o repertório e o legado do Modernismo. A saber:

(1) a vertente que se poderia chamar de “funcional-dialética”, que enfatiza certo “balanceio” entre localismo e cosmopolitismo na cultura brasileira, e pode ser representada pela obra de Antonio Candido — ainda que com variações relevantes, de Formação da literatura brasileira, de 1959, a Dialética da malandragem, de 1970;

(2) a vertente que poderíamos chamar de “dialética negativa”, que enfatiza a cópia e o uso provinciano dos modelos europeus/das sociedades centrais, representada por Roberto Schwarz, sobretudo, por seus estudos sobre Machado de Assis, dos quais é mais do que emblemático o ensaio As ideias fora do lugar (1973), recolhido posteriormente em Ao vencedor as batatas, de 1977;

(3) e, por fim, a vertente que enfatiza o “entre-lugar” da cultura brasileira e a repetição com diferença como dinâmica cultural das sociedades dependentes, representada pela obra de Silviano Santiago, desde o ensaio seminal O entre-lugar do discurso latino-americano, publicado originalmente em 1971, e recolhido em Uma literatura nos trópicos: Ensaios sobre dependência cultural, de 1978, até O cosmopolitismo do pobre, de 2008. Neste percurso podemos surpreender a formulação de outras categorias cruciais como “inserção” — em contraposição a “formação” — e “cosmopolitismo”.

A tendência até aqui tem sido a de tratar essas vertentes quase como unidades fechadas em si mesmas. E muitas vezes como se não constituíssem perspectivas diferentes sobre um mesmo fenômeno, justamente o da dependência cultural brasileira. Não à toa a reflexão sobre a cópia vem se mostrando a um só tempo indispensável e inadequada, dada a domesticação que vem ensejando, para nos ajudar a entender o Brasil. Ao confrontar essas três perspectivas, esperamos provocar uma espécie de irritação mútua entre elas e, desse modo, colaborar para a renovação da compreensão do Modernismo.

Livremente inspirado em ideias sobre a dinâmica da diferenciação funcional da sociologia de Niklas Luhmann, o recurso à irritação mútua permitirá, ainda, pensar a complexidade e a autodiferenciação no âmbito da crescente fortuna crítica do Modernismo. Quase parafraseando o autor alemão, poderíamos dizer que as três vertentes teóricas apontadas permitem-nos assinalar o movimento simultâneo de diferenciação que o Modernismo assume em relação ao seu “ambiente” (a questão da diferença cultural na sociedade brasileira), como uma especialidade entre outras, e de modificação que acarreta aos ambientes como um todo, já que o Modernismo tem gerado ressonâncias em outras especialidades sobre a cultura brasileira. Aliás, a perspectiva luhmanniana parece ser heuristicamente inspiradora e apropriada em mais um sentido: nela a teoria só existe em referência a uma ontologia da diferença e da relação, que se contrapõe a uma ontologia mais tradicional, de caráter substancialista.

Temos aprendido muito, como dissemos antes, com o pensamento de Mário de Andrade, e também com o de Silviano Santiago. Neste, especialmente, o cosmopolitismo deixa de ser um tema para se constituir em uma abordagem teórica. E assim o é porque o escritor e o intelectual em contextos pós-coloniais — tema candente na obra de Silviano — situam-se nesse espaço complexo, entre a assimilação a um modelo original e a necessidade constante e incansável (e talvez inalcançável) de reescritura. A posição quase marginal leva a uma percepção desde as fronteiras — entre popular e erudito, local e mundial, etc. — e, por isso mesmo, conscientemente contingente e refratária a essencialismos.

MINASMUNDO: ELO PERDIDO

Mas o que vem a ser exatamente “cosmopolitismo” ou ao menos “o” cosmopolitismo que se quer desrecalcar do Modernismo e de seu legado intelectual e político para uma nova compreensão da diferença cultural brasileira?

Na verdade, para responder essa pergunta e viabilizar uma pesquisa tão abrangente foi preciso chegar a uma espécie de estudo de caso heurístico o suficiente não para meramente ilustrar, mas para permitir a revisão em toda a latitude, profundidade e complexidade que o problema do cosmopolitismo na cultura brasileira envolve e implica. Assim, ao lado da revisão teórica sobre diferentes modos de ler a diferença cultural acima esboçada, uma segunda frente de pesquisa será empírica, e dependerá mesmo de novo corpo a corpo com o legado do Modernismo.

Para tanto, está se constituindo uma rede em expansão, hoje com mais de 50 pesquisadoras e pesquisadores, no projeto coordenado por Eneida Maria de Souza (UFMG), Pedro Meira Monteiro (Universidade Princeton, EUA) e Mariana Chaguri (Unicamp), além dos autores deste texto, e que chamamos de “MinasMundo: o cosmopolitismo na cultura brasileira”. Nela, estamos compreendendo cosmopolitismo, provisoriamente, como o tipo de relação descentrada de convivência com o mundial a partir da diferença local, que implica movimentos e aberturas em várias direções. Nosso manifesto pode ser conhecido na íntegra em projetominasmundo.com.br e em suplementopernambuco.com.br.

Mas por que Minas Gerais? Há vários indícios empíricos de que o cosmopolitismo não apenas se faz presente, como é crucial na definição de sentido nas culturas mineiras. Desde o gesto de Cláudio Manuel da Costa de fazer as musas árcades banharem-se no ribeirão do Carmo, que não precisa ser lido como protótipo de uma “comédia ideológica”, mas de uma experiência cosmopolita da “repetição com diferença”; passando pela poesia de Carlos Drummond de Andrade, a prosa de Guimarães Rosa, a poesia e as traduções de Henriqueta Lisboa, ou mesmo pela prosa adolescente de Helena Morley; até a música popular de Milton Nascimento, que cantou “sou do mundo, sou Minas Gerais”. E sem esquecer a importante experiência migratória dos mineiros pelo Brasil e pelo mundo, de suas ciências sociais tão marcadas pela linguagem universalista matemática; de sua impressionante inovação museológica, de que Inhotim é apenas um dos melhores exemplos mais recentes; da racionalidade política de state-makers como Francisco Campos; do cosmopolitismo de suas rebeliões, como a Inconfidência Mineira e a linguagem republicana que nela ganha corpo; da problemática inserção negra no quadro da cultura visual nas fotos de Chichico Alkmin; do planejamento urbano de sua atual capital e do próprio Barroco com seus ícones notáveis, como Aleijadinho etc.

O cosmopolitismo é, em suma, antes uma perspectiva a partir da qual se vocalizam e se escutam pontos de vista outros, e não apenas um tema sobre o qual se pode dizer algo, como na sua versão iluminista/globalista cara às elites. É sobretudo um modo de relação com as multiplicidades. É essa ideia mestra que define as (maquin)ações coletivas da rede MinasMundo que consistirão, principalmente, na realização de pesquisa acadêmica e comunicação pública, como seminários, exposições e publicações, bem como em ações artísticas, de memória e documentação. Até 2024, o ano-chave do Modernismo visto desde as Minas Gerais, esperamos colocar o cosmopolitismo nas, a partir das, com as e até mesmo contra as Minas em debate acadêmico e público.