Autores e editores comentam o uso indiscriminado do “eu” nos quadrinhos

Dos impulsos e das repercussões internas (para os autores) e externas (para o mercado) de uma história em quadrinhos autobiográ-fica, quem pode melhor falar são as partes envolvidas no caso. Conversamos com três autores (dois autobiográficos e um não) e dois editores de quadrinhos no Brasil para entender o que eles percebem como autobiografia, ex-posição, literatura, meio, mensagem e outros assuntos triviais.

Entre os autores, os entrevistados foram Alison Bechdel, de Fun home (e cujo próximo trabalho, como ela anuncia aqui, também será autobiográfico), Craig Thompson, que assina Retalhos, e Dash Shaw, cuja obra foi recentemente publicada no Brasil no livro Umbigo sem fundo.

Shaw não é um quadrinista autobiográfico, mas curiosamente sua narrativa em Umbigo sem fundo já foi comparada algumas vezes a roteiros pessoais pelo ambiente de traumas familiares e por aquilo que o editor André Conti chama de “acerto de contas”, característica presente em praticamente toda a história em quadrinhos autobiográfica.

Já entre os editores, conversamos com o citado André Conti, que assumiu o jovem selo de qua-drinhos da editora Companhia das Letras, e com Rogério de Campos, editor da Conrad, que acumula mais de 10 anos de experiência com os chamados quadrinhos independentes.

Não deu para reunir todos em uma mesma sala, mas em uma tentativa de dialogar algumas ideias entre editores e artistas, vamos cruzar alguns des-ses depoimentos como uma longa e ininterrupta conversa:

Alison Bechdel: Acho que existe algo a respeito dos quadrinhos que é peculiarmente condutivo de uma escrita autobiográfica. Alguns dos melhores quadrinhos são autobiográficos, parece haver uma relação disso à forma.

Craig Thompson: Acho que, nos quadrinhos, tudo parece mais íntimo e voyeurístico, porque é algo desenhado a mão, feito a mão.

André Conti: Penso que essa geração de quadri-nistas que publica agora autobiografias tem uma leitura que as induziu a esse tipo de narrativa. Isso talvez tenha a ver com os livros que essas pessoas leram. A geração beat, por exemplo, tinha uma literatura essencialmente autobiográfica e vários desses autores terminaram sendo inspirados por isso.

Alison Bechdel: Escrever é mais mediado, quando você escreve um romance, você não vê a pessoa escrevendo. Há algo mais nesse processo de se desenhar. As pessoas sentem vontade de ler uma autobiografia cartunizada mesmo que ela seja so-bre alguém que não se conhece, porque elas estão interessadas no próprio formato.

 

Dash Shaw: A natureza do desenho é um pouco confessional e biográfica.

Craig Thompson: Não planejava escrever esse tipo de livro, meio que aconteceu a despeito de mim mesmo. Porque em nenhum momento me tolhi em pensar “não, não vou colocar esse tipo de coisa aí” e a questão da religião realmente emergiu enquanto eu ia escrevendo. Achava que ia ser apenas uma história sobre meu irmão e depois a coisa romance colegial. E aí me dei conta que precisava encarar esses assuntos, especialmente no que diz respeito a meu relacionamento com meus pais. Sobre sair do armário quanto à minha própria espiritualidade.

Alison Bechdel: É fácil se esconder por trás de um personagem fictício. Naturalmente, meus per-sonagens fictícios em Dykes to watch out for eram to-dos versões de mim mesma e eu estava ciente disso. Acho que a diferença entre Dykes to watch out for e Fun home é o grau de autorrevelação. Toda a história de autobiografias é se revelar. É isso que eu acho tão revigorante. Na minha tira de quadrinhos, não me envolvo num mesmo nível de introspecção. Na tira existe mais uma versão superficial de mim mesma. São os assuntos mais profundos que me excitam.

Dash Shaw: Tenho amigos que fazem quadrinhos autobiográficos e que não saberiam como escrever uma outra história. Nunca fiz isso porque quero estar em um lugar distinto. Outro ambiente, cer-cado pelos mais diferentes personagens. Nunca desenharia algo que fosse minha realidade.

Alison Bechdel: É quase como se eu estivesse crian-do uma ficção de minha própria vida. Acho que trabalho de forma semelhante a um escritor ficcional, tentando construir uma narrativa. Sinto apenas que eles (escritores de ficção) têm mais liberdade de mexer na cronologia das coisas, por exemplo. Mas sinto que não há uma linha que distingue ficção de não-ficção, como eu achava que havia.Dash Shaw: Meus personagens desenharam a eles mesmos. Agora, claro, existe aqui e ali um ou outro elemento seu nos personagens, porque isso acontece com qualquer história. Mas de uma maneira geral, Umbigo sem fundo não tem nada a ver com minha vida.

André Conti: Com algumas exceções, poucos qua-drinhos autobiográficos são sobre o dia-a-dia des-ses quadrinistas, como é o caso de Harvey Pekar. Na maior parte dos casos dos livros autobiográficos, existe uma questão de acerto de contas com o passado. Art Spigelman precisava acertar a conta com seus pais, Marnaje Satrapi precisava acertar as contas com aquele Irã da Revolução Islâmica.

Rogério de Campos: Uma das características da Marjane Satrapi é que, apesar de haver um con-texto histórico especial que é dramático, existem elementos cotidianos ali com que qualquer pes-soa se identifica. O elemento da proximidade é a constante nessas autobiografias.

Alison Bechdel: Foi duro ter que emular todo aque-le material. Todas as minhas respostas emocionais a fatos reais, a coisas que aconteceram ,e colocar tudo aquilo em ordem num formato visual que fizesse sentido... Foi um processo bem lento que durou sete anos. Tive que aprender minha própria técnica enquanto eu ia criando o livro.

Craig Thompson: Passei três anos e meio fazendo Retalhos.Alison Bechdel: Estou escrevendo outro livro de memórias e o processo está bem lento também. Espero que não leve sete anos novamente. Bem, pelo menos agora eu tenho um deadline. Esse pró-ximo trabalho será uma autobiografia sobre o de-safio das autobiografias. Acho que é um pouco cerebral. Na superfície, é sobre relacionamentos. Falo de relacionamentos românticos que tive e do relacionamento com minha mãe, na infância e na vida adulta.

Rogério de Campos: Acredito que há um choque de realidade em alguns desses quadrinhos. De repente, você vê um ônibus e aquilo lhe é familiar. Tem um quê de pré-blog. Digamos que seria um blog com virtuosismo total.

Craig Thompson: Acho que a popularidade desses quadrinhos e novelas gráficas é sincronizada com a era da internet. Há uma nova geração de pessoas que sentem o impulso de expor a mundanidade de suas vidas. Sim, acho que existe um novo interesse e fome por esse tipo de material.

Rogério de Campos: Surge uma geração em que as pessoas querem se comunicar, os quadrinhos autobiográficos têm uma coisa que funciona muito bem, porque ao mesmo tempo em que eles têm uma linguagem e uma apreensão de massa, ele tem uma feitura de literatura, porque você faz sozinho, cria um espaço de uma liberdade e de uma intimidade. E o melhor lugar pra se expressar essa memória é nos quadrinhos.

André Conti: Mas já se fazia quadrinhos autobio-gráficos muito antes de redes sociais online ou da própria internet existir. Existe uma longa tradição dos quadrinhos independentes em produzir his-tórias autobiográficas. Robert Crumb é um bom exemplo disso. Acho que a discussão de se quadri-nhos é literatura ou não é meio envelhecida. Creio que essa situação se resolveu ali em 1992 quando Spiegelman ganhou o Pulitzer. O que existe são os quadrinhos de linha de montagem, feitos por várias pessoas, e os quadrinhos autorais. Alguns têm características literárias, mas aí podemos dizer que vários outros meios também podem possuir essas características, como o cinema, por exemplo.

Alison Bechdel: Mostrei à minha família rascu-nhos do livro enquanto eu escrevia, de forma que não foi uma grande surpresa para eles, não houve objeção. Mas sei que foi duro pra minha mãe, não exatamente o livro em si, mas o impacto que ele teve. Acho que se o livro não tivesse recebido tanta atenção, ela não se importaria. Mas de uma hora pra outra, todo mundo estava lendo. Ela se sentiu exposta de uma maneira que não havia antecipado.

Craig Thompson: Meu irmão adorou o livro, mas meus pais ficaram realmente chateados por um tempo. Definitivamente eles não conseguiram lidar muito bem com o livro no começo. Para o meu pai foi algo mais pessoal, minha mãe entendeu tudo em um plano mais espiritual. Ambos acharam que meu livro era satânico, que eu iria pro inferno, de forma que tivemos algumas brigas nos anos que se seguiram a Retalhos, mas recentemente as coisas melhoraram bastante. É um tanto estranho, mas eles passaram a ter um certo sentimento de orgulho em torno do livro. Pelo menos parece assim.