Capa Adilia 2 Maria Julia Moreira
 
 
Conheces o nome que te deram, não conheces o nome que tens 
Epígrafe de Todos os Nomes, de José Saramago 
 
 
Adília Lopes aconteceu em um impreciso dia de 1983, quando Maria José da Silva Viana Fidalgo (Lisboa, 1960) andava à procura de um nome para participar de certo concurso literário.[nota 1] Foi um amigo quem sugeriu o pseudônimo que passou a fazer parte da vida da escritora a ponto dela declarar, décadas depois do acontecido, que Adília e Maria José são “uma e a mesma pessoa”. 

“Eu dava-me mal com o meu nome. Tinha problemas com os meus pais e o meu verdadeiro nome, o do bilhete de identidade, era o dos meus pais […] precisava de um nome escolhido por mim e queria que tudo na capa do meu livro fosse escolha minha”, contou em 2005. Quando ainda era Maria José, Adília Lopes estudou Física. Frequentou três anos do curso que acabou por abandonar, aconselhada por um médico, após ser diagnosticada com psicose esquizo-afectiva. “Em 1981, enlouqueci pela primeira vez”, resumiu numa das suas Crónicas da vaca fria, publicadas no jornal Público. Dois anos depois, Maria José voltou à faculdade, desta vez para estudar Letras. Foi nessa altura que Adília lhe apareceu — e, com ela, a poesia. 

O seu livro de estreia, Um jogo bastante perigoso, foi publicado em 1985 numa edição de autora. Nos anos seguintes, em editoras independentes e com prestígio, os seus poemas começaram a circular. Hoje, a obra da poetisa (como prefere ser chamada) é publicada por uma das mais tradicionais casas editoriais de Portugal, a Assírio & Alvim, que em 2014 reuniu a sua obra no volume de mais de 700 páginas intitulado Dobra. Seus poemas estão traduzidos a outros idiomas, publicados em vários países. A sua produção é estudada no meio acadêmico e celebrada em publicações literárias. Ou seja, há muito Adília deixou de ser uma escritora underground

Querida e admirada por poetas da nova geração, a poetisa tem uma (pequena, porém fiel) legião de leitores sempre atenta aos seus novos livros. A jornalista e poeta portuguesa Filipa Leal (Porto, 1979) encaixa-se nessa dupla categoria. Começou como leitora e hoje é, também, uma escritora que conversa com Adília através de seus poemas. “Fiz a minha tese de mestrado sem entender a Adília Lopes, da mesma maneira que os pais têm filhos que não conhecem. E aprendi a amá-la com o tempo, como parente que estivesse para morrer”, conta Filipa no prefácio de uma antologia de poemas de Adília editada na Colômbia. Em 2014, Filipa publicou Adília Lopes Lopes, uma brincadeira com o título Florbela Espanca espanca (1999) — livro que Adília, posteriormente, rebatizou de Versos verdes. Nestes versos, a poeta explica a demora em apaixonar-se pela poetisa: 
 
É preciso ter sofrido/ é preciso ter engordado/ muito/ para entender a Adília Lopes

“Os poemas de Adília são como os eucaliptos — sugam toda água à volta, ardem com facilidade, cheiram à infância (com tudo o que a infância tem de encantador e de perverso)”, escreve Filipa no prólogo da antologia já citada. Encantadores e perversos talvez seja uma boa maneira de definir os versos da autora de A bela acordada. O escritor Valter Hugo Mãe fala numa “candura perversa de Adília Lopes”. Em 2001, no papel de editor da extinta Quasi Edições, ele organizou a antologia Quem quer casar com a poetisa?, título que parte de um poema de Adília que diz: “Sou uma personagem/ de ficção científica/ escrevo para me casar”. Sobre ela, o autor de Filho de mil homens escreveu, anos depois, a propósito da publicação de Manhã (2015): “O que desarma em Adília Lopes é a impressão de que a mulher-a-dias desatou a escrever poesia. A estranheza que nos causa é a da erudição inesperada de uma doméstica, com todas as suas questões práticas e filosóficas passadas pela estética crua de versos sem um propósito de beleza, apenas a pragmática anotação dos tópicos”. 
 
a poetisa é a mulher-a-dias 
arruma o poema 
como arruma a casa 
(Adília Lopes, no poema Louvor do lixo, de A mulher-a-dias
 
A mulher-a-dias, ou seja, a diarista, a empregada doméstica, escreve versos, e isso é uma transgressão que nem todos estão dispostos a aceitar. “Em geral, a sua poesia é politicamente incorreta, esteticamente subversiva e pressupõe uma revolucionária pincelada de cores na retórica e no discurso conservador que ainda domina as letras portuguesas”, decreta o linguista Burghard Baltrusch em estudo sobre a obra da escritora portuguesa. Para o professor da Universidade de Vigo, a poesia de Adília flerta “de uma forma intencional e subversiva” com a arte pop e com o kitsch, ao mesmo tempo em que joga com as ciências e com uma intertextualidade muito “erudita e burguesa”. Em outras palavras, a criação de Adília é mais complexa e cheia de camadas do que uma primeira leitura pode transparecer. Por trás da ironia (e da autoironia), do humor e da aparente simplicidade dos seus versos, está a subversão contra as convenções (sociais e literárias), aponta Baltrusch, que enxerga na obra da poetisa uma constante denúncia da violência — colonial, simbólica e discursiva — que oprime as mulheres. 
 
Eu quero foder foder 
Achadamente [nota 2] 
se esta revolução 
não me deixa 
foder até morrer 
é porque 
não é revolução 
nenhuma 
a revolução 
não se faz 
nas praças 
nem nos palácios 
(essa é a revolução 
dos fariseus) 
a revolução 
faz-se na casa de banho 
da casa 
da escola 
do trabalho 
a relação entre 
as pessoas 
deve ser uma troca 
hoje é uma relação 
de poder 
(mesmo no foder) 
(In Versos verdes ou Florbela Espanca espanca)
 
A obra de Adília é como uma casa que pode ser adentrada por diferentes portas e a partir de vários cômodos. Em um deles está a vertente antissistema ou subversiva que tem como alvos principais o patriarcado, o consumismo e a glorificação do sucesso. 
 
Sou um poeta-macho 
tenho um gabinete 
sou uma poetisa-fêmea 
escrevo na retrete 
(A mulher-a-dias, 2002) 
 
No espaço de Adília há espaço para o kitsch, mas não para o luxo. Há estantes e paredes de sobra para a inocência, a delicadeza e a beleza das coisas simples e banais (“No gato no cão no periquito acredito/ em pessoas não acredito”), mas está vedada a entrada da arrogância e da falta de humanidade. 
 
Só gosto das pessoas boas 
quero lá saber que sejam inteligentes artistas sexy 
sei lá o quê 
se não são boas pessoas 
não prestam 
(Estar em casa, 2016) 
 
Nesse universo em que bichos e até objetos são mais confiáveis e merecem mais atenção do que os seres humanos, a sua poesia por vezes convida-nos a regressar ao espaço puro e desarmado da infância. 
 
Tenho 60 anos. A arrumar a casa encontrei a cómoda das bonecas com os fatinhos de bonecas dentro das gavetas. Uma boneca estava despida da cintura para cima, vesti-lhe uma capa de feltro. A boneca podia constipar-se. 
[…] 
Há tanto tempo que não vejo uma borboleta, uma joaninha na minha varanda lisboeta! Antigamente via tantas! 
(Dias a dias, 2020) 
 
“Um psicanalista disse-me: 'A vida é luta. Perca a vergonha.' Eu não quero perder a delicadeza” 
(Café e caracol, 2011) 
 
A poetisa que escreve sobre gatos também faz versos sobre a falta de um amor: “Deus não me deu/ um namorado/ deu-me/ o martírio branco/ de não o ter”. E em livros como Versos verdes (1999) e Irmã barata, irmã batata (2000) faz do desejo sexual, bem distante do amor romântico, o seu leitmotiv
 
Para foder, nestes tempos que correm, parece que é preciso um escafandro. As pessoas pensam muito em foder. E sofrem muito quando não fodem. Quem não pensar em foder está fodido. Mas as pessoas fodem e não são felizes. 
 
[…] Nunca fui a Nova York e gostava de ir, mas não me importo de morrer sem ter ido. Também nunca tive um orgasmo, mas posso morrer sem nunca ter tido um orgasmo. Não me arrependo de nada. É claro que Nova York não se compara com um orgasmo. Um orgasmo é muito mais importante. 
 
Numa crônica, Adília descreve um casal que, durante visita a uma exposição de pintura, acaba por lhe chamar atenção. Ela faz-se de tonta para que ele brilhe no papel do erudito. A poetisa, então, conclui: “Não é por acaso que ainda nenhuma mulher pôs o pé na Lua. Mas talvez seja uma mulher o primeiro ser humano a pôr o pé em Marte. Já agora que seja uma preta lésbica e deficiente. O século XX foi politicamente incorrecto, mas este século promete. Não estou a brincar, sou de facto optimista. Por isso a minha prosa é rosa, amorosa, pirosa, laranja e verde-alface.” Além de tudo isso, a prosa de Adília, por vezes, também é dura, impiedosa, e escancara as mazelas da nossa sociedade. 
 
A LOUCURA QUE SE NOMEIA 
 
Em textos e entrevistas, Adília Lopes costuma abordar o assunto da sua saúde mental. “Tenho uma doença mental, tenho uma doença de pele. A pele é exterior, o cérebro é interior”, disse num de seus livros. Tornar pública essa condição é coerente com a proposta literária de Adília, cuja crítica à “normalidade” é uma das marcas. “Assumir-se como alguém que tem uma doença mental é de imediato assumir-se como fora do padrão”, escreve Sofia de Souza no prólogo da antologia Aqui estão as minhas contas, publicada no Brasil em 2019, pela Bazar do Tempo. Ao organizar o volume, a poeta e professora de Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) deparou-se com o enorme desafio de fazer caber num só livro as muitas Adílias: a (anti) poetisa pop, a reclusa solteirona amante dos gatos, a despudorada, a que critica o sistema e também a católica inveterada; a erudita que dialoga com — e também desafia — a tradição, a naif e, enfim, a poetisa tida como “louca” diante de uma sociedade patriarcal. “A Norma não é normal”, lê-se na epígrafe de César a César, livro que Adília escolheu abrir com essa frase emprestada de Agatha Christie. “Admite-se uma poetisa louca, isso pode até funcionar como chamariz, aumentar o valor dos seus textos (aos meus olhos, não aumenta nada). Mas uma professora do ensino secundário louca? Uma bibliotecária louca? Uma animadora cultural louca?”, pergunta-se a poetisa numa crônica. “Mas ser poetisa não me dá dinheiro para viver e é aí que ser poetisa e ter uma doença mental põe problemas. Por isso não é assim tão fácil, para mim, assumir publicamente que tenho uma doença mental.” 
 
Sofia de Souza sugere dois pontos de vista para o aprofundamento deste tema na obra de Adília. Um deles é entendê-la como voz contrária ao discurso mitificador da figura do artista que sofre (inclusive mentalmente) para produzir a sua obra genial. “[…] já fiz muitos disparates em público, mas, segundo o psiquiatra que me trata agora, tenho uma doença mental compensada. Isto, para mim, é como ter o salto de um sapato mais alto do que o outro por se ter uma perna mais curta do que a outra. Não há exibicionismo nem confessionalismo impudico neste texto”, escreve a poetisa. Outro ponto que Sofia destaca é o entendimento da doença mental como possibilidade e oportunidade de se dizer aquilo que ninguém mais ousa pois, assim, estabelece-se contra as convenções e contra o cânone. A obra de Adília está cheia de citações e referências, muitas vezes num tom de dessacralização dos grandes nomes. Através da paródia, da colagem ou do pastiche, a poetisa revisita a tradição para fazer a sua (anti) poesia pós-moderna. 
 
Com o fogo não se brinca 
porque o fogo queima 
com o fogo que arde sem se ver 
ainda se deve brincar menos 
do que com o fogo com fumo 
porque o fogo que arde sem se ver 
é um fogo que queima 
muito 
e como queima muito 
custa mais 
a apagar 
do que o fogo com fumo 
 
Nesse poema do livro Um jogo bastante perigoso, Adília parte de um ditado popular para, em seguida, recu-perar o célebre verso de Camões “amor é fogo que arde sem se ver”. Em A árvore cortada, de 2006, há um verso que diz: “A poetisa /não é /uma fingidora”. Contrariando assim a máxima de Fernando Pessoa (“O poeta é um fingidor”).[nota 3]
 
Para a antologia da poetisa publicada no Brasil, Sofia de Souza escreveu um posfácio que serve como guia para o leitor navegar pela criação adiliana. “Como disse uma colega, a professora e artista Laura Erber, Adília é um pouco como uma DJ de citações. E explicitar isso, sobretudo para o público brasileiro, que em geral não tem tão presente, no espírito, a literatura portuguesa, a meu ver, faz muita diferença na fruição de alguns dos poemas”, explica a professora. 
 
 
Capa Adilia 1 Maria Julia Moreira
 
 
ISOLAMENTO E CRIAÇÃO 
 
Outro assunto importante a ser tratado quando tentamos decifrar Adília Lopes é a reclusão. No final dos anos 1990, a poetisa foi descoberta em Portugal. Frequentou programas de televisão (alguns de gostos muito duvidosos), apareceu lendo poemas seus e de outros, deu várias entrevistas. Depois, entrou no modo recluso. Hoje, não aceita convites, não tem telefone celular nem internet, não vai aos festivais literários nem participa de lançamentos de livros. Nunca viaja. “Sou a verdade que prefere não sair do bairro”[nota 4], escreveu o cardeal e poeta português José Tolentino Mendonça num poema dedicado à amiga, intitulado Adília Lopes.
 
Hoje, o mundo da poetisa cabe em um círculo imaginário que tem raio de 200 metros e centro na casa onde sempre morou, no tranquilo e sem muitos atrativos bairro de Arroios. Sobre esse fechamento, o professor e crítico literário João Dionísio diz: “Não consigo precisar um ponto exato em que Adília Lopes ganha a imagem de reclusa, embora a reclusão seja assunto explorado na sua poesia sob várias formas. Em vez de reclusão prefiro pensar que a casa e o bairro sempre foram um centro de irradiação e que, à medida que o tempo foi passando, ganharam um papel ainda mais notável”. Se durante anos (e livros) o universo da poetisa foi o seu bairro, as ruas próximas, o café que costuma frequentar e onde escreve, nos últimos tempos, o seu cosmos reduziu-se à casa, ou mesmo ao quarto, de onde nos escreve. 
 
Chego à janela porque preciso de ar e de árvores. Ah, se não fosse esta velhinha janela onde me vou debruçar para ouvir a voz das cousas, eu não era a que sou. 
(Manhã, 2015) 
 
De manhã, no quarto virado a Leste, conto pelos dedos da mão direita as sílabas dos versos e as badaladas do sino de Arroios a dar as horas. 
(Bandolim, 2016) 
 
HOTEL EM CASA 
Uma amiga minha deu-me sabonetinhos, frasquinhos com champôs e loções que dão de brinde nos hotéis. Uso-os em casa, na casa de banho, como se estivesse na casa de banho de um quarto de hotel. Assim, com estes sabonetinhos e frasquinhos, parece que estou num hotel sem sair de minha casa. Não viajo, não tenho dinheiro para viajar e já não gosto de viagens. 
(Estar em casa, 2018) 
 
E com a pandemia, o que era uma escolha tornou-se uma necessidade. Dias a dias, o mais recente livro da escritora, publicado em outubro de 2020 em Portugal, foi escrito durante o confinamento. 
 
É a quarentena do coronavírus. Não devo sair de casa. Tenho 60 anos, hipertensão e diabetes. Vivo sozinha. Não tenho net, não tenho televisão. Nem um candeeiro tenho para ler e escrever.[nota 5] Os trocos são poucos. Mas sou feliz. Tenho uma telefonia de pilhas que me deu uma amiga. Pelas quatro da tarde oiço na Antena 2 os programas Pausa para dançar e Há cem anos. Gosto muito destes programas. Aprendo muito, oiço músicas bonitas.
 
Para ela, não ter um candeeiro pode ser um problema tão (ou mais) grave do que a falta de um amor, o desterro ou a queda de um império. “Horroriza-me fazer prosa que não seja rente ao viver, ao ser. Escrevo como ando. Não escrevo o que me vem à cabeça, escrevo o que me vem à mão. Escrevo à mão, com uma Bic Soft Feel Roller preta, sobre uma folha A4 de papel reciclado cor-de-rosa”, anota Adília numa das Crônicas da vaca fria. Essa poesia ao rés do chão, com o olhar voltado para o que parece desinteressante, menor, banal, é também um sinal da sua antipoesia.[nota 6]
 
Em um poema do livro Bandolim (2016), ela conta sobre o acontecimento que foi ler, aos dez anos de idade, um conto de Erico Veríssimo que descreve uma menina contemplando uma fileira de formigas. “Devo a literatura a Erico Verissimo e à Professora Maria Inácia e às formigas”. Aparentemente, esse olhar para (e da perspectiva de) as formigas, as baratas, as osgas (lagartixas) acompanham Maria José/Adília desde então. A escritora rebate a “acusação” de gastar tempo e papel com ninharias: “Falo de ovos estrelados, coisa caricata, suja, sublunar, como as maminhas e o cão animal que ladra. Não falo de Anjos, de Rilke, da Constelação do Cão. Ora, desde que há Física (desde Galileu), que acabou a distinção entre mundo celeste e mundo sublunar. Ou seja: os marcianos e os ovos estrelados são feitos do mesmo barro, são governados por leis matemáticas”. Tudo, seja algo minúsculo ou gigantesco, esteja ao alcance da mão ou imaginável somente depois de complexos cálculos, está no mesmo patamar para o processo de criação da poetisa. 
 
MAS AFINAL, ADÍLIA EXISTE? 
 
Fui ontem operada à garganta no fim/ a enfermeira mostrou-me as amígdalas/ estavam numa bandeja de inox 
(A operação, in O decote da dama de espadas, 1988)
 
Adília é uma personagem de ficção científica? Adília existe? O que interessa ao leitor saber sobre a vida da pessoa que escreve aqueles poemas e se aquela vida é real ou inventada? “Quanto ao que é interessante saber da vida privada para perceber a sua criação? Nada, porque os textos de Adília são autossuficientes, em particular os da última fase; tudo, se para cada referência contingente neles patente o leitor quiser contar com uma nota de rodapé. E o que houver entre estes dois extremos”, responde João Dionísio, crítico literário e professor da Universidade de Lisboa. 
 
Para Valter Hugo Mãe, Adília vem escrevendo, há décadas, a história da vida de alguém (real ou ficcionada) através da sua obra. “A poesia mais convencional tende a esconder biografias. Já com Adília Lopes a questão da biografia é central. Não se entende nada do que escreve se não nos ativermos à furiosa necessidade que revela em ter um passado, uma família, animais domésticos, habitar, amar, ler. A poesia de Adília Lopes é a invenção da vida. Importa menos se a autora coincide ou não com a personagem. Importa o efeito quase despudorado e a coerência, a sempre frontal expressão e a reincidência nos assuntos, como recordações que se vão adensando de livro para livro.” Por isso, concluiu o escritor, a obra de Adília poderia se chamar Biografia. “A poesia de Adília […] nos obriga a lidar com as definições incómodas da solidão, da rejeição, da espera, da utilidade cruel da leitura, da obsessiva necessidade de se pensar no amor que se não tem.” 
 
Sobre o assunto, Filipa Leal resolve assim a questão: “É preciso dizer que Adília Lopes não existe. Adília Lopes é o pseudónimo de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira. Ou talvez Adília Lopes exista como Deus: para os que, como eu, acreditam n’Ela”. E a própria Adília já observou esse falso enigma há tempos, quando abriu um de seus livros, Florbela Espanca espanca ou Versos verdes, com o seguinte poema: 
 
Este livro 
foi escrito 
por mim 
 
 
NOTAS 
 
[nota 1]. Adília não ganhou aquele concurso, como não ganhou nenhum prêmio literário. Ou melhor, ganhou, aos 12 anos, uma bicicleta graças a um poema que escrevera. Anos depois, recordou, em forma de verso, essa história. Está no livro Clube da Poetisa Morta (1997): 
 
Em 72 recebi 
o prémio literário 
dos pensos rápidos Band-Aid 
o prémio foi uma bicicleta 
às vezes penso 
que me deram uma bicicleta 
para eu cair 
e ter de comprar pensos 
rápidos 
Band-Aid 
é o que penso dos prémios literários 
em geral 
 
[nota 2]. “Eu quero amar, amar perdidamente!”, diz um verso de Florbela Espanca ao qual Adília faz referência. 
 
[nota 3]. Nos anos 1990, Adília/Maria José estudou Ciências Documentais e trabalhou no espólio de autores fundamentais da língua portuguesa, entre eles Fernando Pessoa. Também trabalhou como tradutora literária. 
 
[nota 4]. Em 2019, a Universidade dos Andes, na Colômbia, organizou um colóquio internacional sobre a poetisa com o título “Pelo bairro de Adília Lopes”. No texto de apresentação do encontro, lê-se: “Adília habita a sua casa com intensidade e a partir desse ‘estar’ criou um bairro poético com quadras políticas, éticas, pessoais e criativas. Este colóquio propõe visitar esse bairro poético de Adília, ou seja, não o espaço ‘real’ de curtos passos, mas aquele imaginário da sua obra, cruzamento de incontáveis mundos. 
 
[nota 5]. Duas fiéis leitoras da poetisa, ao lerem os versos que acusam a falta de um candeeiro, entraram em contato com a casa editorial de Adília dizendo que gostariam de lhe oferecer uma luminária. Cientes da fama de ermitã da autora, quiseram primeiro saber se aquela era uma boa ideia. Não queriam que soasse como uma caridade senão um carinho. Com o aval e a ajuda do editor, procederam à entrega do presente, que foi deixado numa livraria próxima à casa da escritora. Com medo de arriscar muito ao tentar adivinhar o gosto da presenteada, a dupla optou por um modelo básico, moderno, mas “um bom candeeiro”, como me fez questão de frisar uma delas. “Não temos expectativa de que a história tenha algum desenvolvimento, que ela nos responda. O que esperamos é que seja bem recebido e, sobretudo, útil. Que resolva esse problema concreto dela querer escrever e não ter um candeeiro”, contou-me. Adília gostou muito do presente, disse-me o editor. 
 
[nota 6]. Em 1963, o chileno Nicanor Parra, em um poema em forma de manifesto — ou talvez o contrário —, havia anunciado: “Os poetas desceram do Olimpo”. O “antipoeta”, morto em 2018, aos 103 anos, desafiou o cânone e renovou a poesia ao alimentá-la com humor, ironia e insolência. Entre aqueles que, atendendo ao chamado de Parra, optaram pela poesia distante dos Deuses, próxima da vida real e com a voz das pessoas comuns, está Adília Lopes.
 
 
 
***
 
Candura perversa: entrevista com Filipa Leal
 
Filipa Leal nasceu no Porto em 1979. É poeta, jornalista, roteirista e apresentadora na televisão pública portuguesa. A sua relação com Adília Lopes passou por várias fases e resultou no livro Adília Lopes Lopes, uma homenagem à poeta que se confunde com exercício de libertação. 
 
Você conta que, longe de amor à primeira vista, a sua relação com Adília foi como um amor por insistência. É capaz de dizer em que momento percebeu (e por qual motivo) que estava apaixonada por ela? 
 
Eu estava a planear a minha tese de mestrado sobre o humor na poesia portuguesa e o meu orientador, professor Arnaldo Saraiva, docente na Faculdade de Letras do Porto (FLUP), sugeriu-me que procurasse a obra de Adília Lopes. Quando li a poesia completa pela primeira vez, tive vontade de atirá-la pela janela. Parecia-me que Adília era má com as outras mulheres e consigo mesma de uma forma tão brutal que eu, muito jovem, recusava. Parecia-me menos irónico do que destrutivo e auto-destrutivo. Lembro-me, por exemplo, de me chocar que Adília usasse o nome verdadeiro de uma psiquiatra (o poema em que refere uma “doutora Manuela Brazette”) e que, nesse mesmo texto, escrevesse: “um homem nunca consegue ser mau para uma mulher como outra mulher”, dessas “ideias feitas” que eu também recusava. 
 
Depois, reli Dobra várias vezes e fui ficando viciada naquele tom: o da aparente ausência de metáfora, descritivo e cru, mas também jogando com a tradição literária mais erudita ou com a cultura pop menos previsível. E o humor, sobretudo o humor com que se desmonta, como se estivesse sempre a cair de uma escada, o humor valia mesmo a pena. 
 
O Valter Hugo Mãe fala numa “candura perversa” da Adília. E para você, o que caracteriza a poesia dela? O que destacaria? 
 
“Candura perversa” parece-me a descrição perfeita. Eu destacaria também, do ponto de vista do trabalho da linguagem, a forma aparentemente literal como escreve – no seu último livro, Dias e Dias (2020), este artifício parece ter sido levado até às últimas consequências. Parece estar a fazer, cada vez mais, antipoesia. E é essa a sua graça. 
 
Você conta que tentou encontrar com a Adília, chegou a telefonar para ela. Eu também tentei, há uns anos, entrevistá-la. Deixei um bilhete no café onde ela escreve. Hoje me questiono se não fui invasivo e penso que talvez tenha sido bom ela não ter respondido. Como é para você, também poeta, também uma pessoa de carne e osso por trás de um nome literário, essas duas dimensões: obra e autora, poemas e poeta? Ter conhecido a Adília mudou alguma coisa na sua percepção da obra dela? 
 
Conhecer o poeta não muda absolutamente nada em relação à obra. Pelo menos espero que seja sempre assim. É indiferente, para mim, que os poetas sejam tímidos ou bichos sociais, que sejam comunicadores natos ou incapazes de convívio humano, que se fechem numa cave escura ou passem as noites a dançar e a beber, que venham de famílias com recursos ou tenham nascido num ambiente mais pobre. Nada do que é o percurso biográfico, ou do que são as características pessoais de quem a escreve, deve importar à poesia ou aos leitores de poesia. 
 
A produção da Adília permite, talvez até convoque, a um diálogo literário, assim como ela dialoga com outras autoras e autores. O seu Adília Lopes Lopes é prova disso. Como define esse livro? É uma homenagem? Acha que já é possível falar em uma geração influenciada pela Adília? O que ela mostra, ensina, deixa a quem escreve poesia em língua portuguesa hoje? 
 
O meu livro é uma homenagem, de certa forma, mas também um exercício de libertação da Adília Lopes, com cuja obra convivi uns anos, por causa do mestrado. Depois de entregar a tese, foi muito tentador ensaiar aquele tom mais literal e escrever, ao menos algumas linhas, para Adília. Foi um exercício divertido de substituição de tese. As teses são coisas chatas, no geral, porque depois de já termos lido tudo, ainda vamos ter de provar que lemos. Eu preferia ter feito um livro de poemas do que uma tese. Aliás, há um poema no fim desse livro que diz isso mesmo: “Ainda pensei em fazer um Doutoramento/ sobre Adília Lopes e Paula Rego/ mas optei por um livro de poemas/ porque me cansam as bibliografias/ passivas”. 
 
Quando olho para a tradição poética portuguesa, Adília me parece quase uma extraterrestre. Vejo mais parentesco dela com poetas brasileiros, como Manuel Bandeira e Manoel de Barros, do que com a Sophia de Mello Breyner, por exemplo, embora ela se assuma muito devedora à ela. Como você localizaria a Adília dentro desse panorama? O que a une à Sophia? 
 
É difícil dizer. Para mim, enquanto leitora de ambas, o que as une é um poema: As Pessoas Sensíveis, de Sophia. Esse enorme poema que começa assim: “As pessoas sensíveis não são capazes/ de matar galinhas/ Porém são capazes/ de comer galinhas/…” 
 
Adília responde, anos mais tarde, desta forma: “Uma tarde Maria Cristina/ obrigou-me a comer osgas/ e a repetir/ com a boca cheia de osgas/ as pessoas sensíveis gostam de comer osgas/ mas não gostam/ de ver matar osgas/ por isso têm de comer/ as osgas vivas/ se querem fazer na vida/ aquilo de que gostam”.