“Depois de segunda-feira vem a terça, e a quarta se segue.” Essa frase saída da boca do personagem Bernard, perto do final de As ondas, de Virginia Woolf, é uma das mais sonoras encadeações de palavras que parece tão banal, mas que diz muito sobre a suspensão de tempo coletivo e individual que vivemos no último ano. Se tem algo que foi constatado nesses 12 meses é que um dia vem depois do outro, lentamente, e que também os dias se desfazem e se enrolam novamente em emaranhados de meses. Nessas percepções de tempo que surgem em períodos de urgência e suspensão de rotinas, as noções de espaço também entram em jogo, pois não apenas as relações interpessoais são afetadas pelo isolamento e distanciamento, mas também a percepção dos lugares habitados individualmente ou em grupo.
A distância entre afetos que dividem histórias, sentimentos e sensações, mediada pela existência perene da natureza – que é atravessada pela força de um tempo alheio ao humano, mesmo que esse último insista em dizer que se baseia nela – é um dos pontos que instiga a leitura de As ondas. O livro, publicado pela primeira vez em 1931, ganha uma nova tradução em português brasileiro por Tomaz Tadeu que, na última década, tem traduzido e colaborado na edição da escritora pela Editora Autêntica. Encarar o livro é um exercício não apenas de dar possibilidades de leituras ainda mais profundas às incansáveis práticas estéticas de tempo-lugar de Virginia Woolf, mas também de habitar espaços narrativos que nos suspendam entre o passado e o futuro, dando uma sobrevida a esse presente denso e debilitado que se arrasta diante de nós.
Susan, Jinny, Rhoda, Bernard, Louis e Neville são as vozes atuantes em As ondas, um romance que merece ser encarado mais pelo nome que Woolf dava em seu diário: uma peça-poema. Nesse sentido, é o tipo de livro para ser lido em voz alta, sentindo o ritmo das frases que percorrem a língua, provando a beleza que é a construção das sintaxes woolfianas. Isso no plural, levando em conta que ela não fazia repetição de fórmulas na sua escrita, apesar dos fantasmas parecidos que habitam os seus textos.
Os seis amigos proferem solilóquios intercalados por interlúdios: os primeiros seguem uma possível ordem de tempo e oferecem uma espécie de narrativa que vai da infância até a velhice dos personagens. Se o solilóquio parte da ideia de “falar sozinha”, seja em Shakespeare (ser ou não ser?) ou dentro de um apartamento de 39 m² em meio a uma pandemia, ele se torna uma comunicação eficaz em que uma pessoa – narradora fictícia ou em processo de narrar-se – se direciona a alguém que permanece em silêncio. A sensação é parecida com áudios longos de aplicativos de trocas de mensagens, cada pessoa ouve e responde no seu tempo, naquele que aprendeu a lidar nesses meses todos. Por isso que aqui os personagens nem sempre conversam entre si, porque não se ouvem de forma simultânea, pois não se estabelece diálogo. Muitas vezes descobrimos mais sobre Susan ouvindo Bernard ou sabemos de um acontecimento importante na vida de Rhoda na boca de Neville, através de uma lembrança ou evocação simbólica. E, mesmo assim, confiamos neles.
Há também as imagens recorrentes nessas falas, memórias que circundam a vida inteira de uma pessoa e acabam se tornando pontos de partida ou marcos importantes. Há um trecho belíssimo, narrado por Bernard, em que uma memória vívida de um banho quando criança – dado por uma cuidadora, a srta. Constable – emerge munida de imagens metamórficas: a espinha do menino se torna um córrego, a água envolve como uma enguia, a pele é uma carne morna e o sangue ronrona como um gato. Esse banho vai aparecer outras vezes ao longo da obra, sempre como uma espécie de ato inaugural, reverberando durante toda a vida. Os personagens são munidos dessas idiossincrasias, porém elas podem deslizar de uma boca pra outra sem perder a origem. Explico, em alguns momentos, por exemplo, imagens proferidas por Susan podem ser reencenadas por Jinny, funcionando como uma lembrança compartilhada descrita da mesma maneira.
Os nove interlúdios executam a contenção no tempo em relação à verborragia dos personagens, uma vez que narram desde o momento que o sol se prepara para se levantar até quando ele declina, fazendo o céu e o mar serem um breu único. A voz narradora é potente porque é um olho que tudo vê, como uma pintora em posição privilegiada. Enxerga o horizonte, mas também as grutas e os seres pequeninos que se movimentam; os pássaros da estação, assim como todas as cores e transições de cena. Não ficam de fora também os objetos, como a solidez de uma casa e de alguns móveis. Mesmo com a variedade e rotina da natureza, os espaços ocupados por pessoas se apresentam sem os corpos, porém são afetados pela paisagem. É interessante perceber que a presença das ondas – dependentes da gravidade exercida por sol e lua – é também a marcação da existência dos seis amigos. Tão importantes e fundamentais quanto os humanos são as borboletas, as sebes, os carvalhos e a ordem do dia.
Os personagens vêm como ondas, uns de forma mais forte e mais altos que outros. A chave composta por frase + ela/e disse, que marca o início dos solilóquios, sinaliza a presença de uma pessoa que narra, porém sem afetar a fluidez de cada voz e isso permite que falem por si mesmos. São dramáticos, expostos e, acima de tudo, poéticos. O que é feito em As ondas vai além de terminologias como fluxo de consciência: Virginia Woolf se preocupava como essa torrente de imagens, sensações e palavras operavam no seu texto, portanto seria desmerecedor um nome que não refletisse a totalidade dos seus próprios questionamentos de escrita. Em As ondas há uma preocupação sonora e de ritmo nas frases que saem da boca dos personagens, e nem sempre a consciência tem esse manejo estético característico da prática escrita. Um bom exercício é ler em voz alta e perceber o som de palavras e construções que incitam a sensação de despertar em Stonehenge, como diz Bernard.
As ondas é um livro para estar lendo em processo contínuo, assim como muito da escrita de Virginia Woolf. Ler sem pressa, sem querer abarcar alguma espécie de totalidade. Pode ser encarada como uma experiência de leitura para pensar a orquestração de uma narrativa que não depende da presença exclusiva de uma pessoa que narra outras vidas. É como uma colagem criada a partir de dias que se seguem de forma muito parecida, porém captando as pequenas transformações do corpo, da paisagem para além da janela, das memórias que se tem das pessoas e de encontros.
Considerado um dos romances, esteticamente, mais complexos da autora, ao longo das décadas As ondas ganhou uma infinidade de leituras e interpretações pelas mais variadas escolas, do formalismo à psicanálise. Justamente pela complexidade da narrativa – que ao mesmo tempo não fornece resistências reais para quem lê – é que o livro permanece em processo de descoberta pelo que suscita, daquilo que escapa da ordem que se considera natural e hegemônica. O interesse de Virginia Woolf por narrativas que não pactuassem com a lógica ocidental não era novidade já na década de 1920. Quando leu a tradução do japonês para o inglês de O conto de Genji, de Murasaki Shikibu, escreveu uma resenha entusiasmada na revista Vogue: “Não; a senhora Murasaki não vai se provar como par de Tolstói e Cervantes ou aqueles outros grandes contadores de histórias do Ocidente, cujos ancestrais estavam lutando ou fazendo ocupações em cabanas, enquanto ela olhava de sua janela de treliça para flores que desdobravam-se ‘como lábios sorrindo aos próprios pensamentos.”[nota 1]
DESFAZER-SE DO CORPO E HABITAR O ESPAÇO
Virginia Woolf, em sua última foto colorida que se tem notícia – clicada em 1939 pela fotógrafa francesa Gisèle Freund, pioneira nas cores e nos retratos de modernistas –, posa na sua habitual posição de perfil esquerdo. Porém, diferente de outra imagem bastante popular, feita em 1902 pelo inglês George Charles Beresford, nessa de Freund há uma construção da mise en scène em que o corpo da escritora ocupa o espaço de forma estratégica. Ela olha para fora do plano, com um semblante calmo mas incisivo. A piteira na mão descansa e os livros arranjados na mesa ao lado compõem uma rima visual com aquele aberto no seu colo. Na verdade, a piteira é quase uma seta alinhada ao seu olhar. Uma das grandes questões nesta foto é: para onde olha Virginia Woolf? Para o passado ou para o futuro? O que os olhos dela enxergam enquanto o livro permanece aberto em seu colo?
Lendo As ondas, é inevitável não pensar que fotografando a escritora em cores, na casa que deixaria de existir pouco depois durante os bombardeios da Segunda Grande Guerra, Gisèle Freund a enquadra dentro da cena em que Louis, um dos personagens do livro, sussurra talvez a frase mais emblemática do romance: desfazer-se de um corpo e habitar no espaço. É como se a fotógrafa intimamente enxergasse uma fina linha investigativa de tempo-espaço que permeia a escrita de Virginia, principalmente nos livros escritos enquanto moradora do número 52 da Tavistock Square, em Londres.
Mesmo que a casa, os livros, a cadeira e o quadro que compõem a cena tenham sido apagados pela violência da História, Virginia continua habitando o espaço justamente pelo que escreveu nesse endereço. Se tudo existe para terminar em uma foto e o ato de fotografar é apropriar-se da coisa fotografada, como afirma Susan Sontag em Sobre fotografia, Freund promove a suspensão da escritora no tempo, assim como podemos acessá-la quantas vezes quisermos pela internet. Virginia Woolf continua a olhar para algum lugar que não sabemos de imediato, mas podemos investigar enquanto a lemos. Muitas das reverberações no diário da escritora enquanto moradora desse endereço podem ser lidas na tese-tradução de fôlego de Ana Carolina Mesquita, na USP, com título de O Diário de Tavistock (2019).
Desfazer-se do corpo para habitar o espaço narrativo de As ondas também se relaciona com a situação de aceitar que ler Virginia Woolf é um trabalho de leitora comum, pensando na figura evocada por ela na introdução de um volume de ensaios de 1925. Nesse texto, ela define uma pessoa que lê por prazer e não para transmitir ou corrigir opiniões alheias. Portanto nos coloca também em uma posição de atenção às investigações da própria autora ao longo da vida: uma descoberta que pode se transformar em outra conforme as leituras surgem. Por isso penso o livro como parte também de uma investigação de leitura, para que a narrativa ultrapasse o espaço de existência física da escritora, habitante inevitável desses textos.
Não dá para desconsiderar que os diários e cartas – para não citar os ensaios e contos que são mais sistemáticos na prática da escrita – são gestos ou vestígios da prosa woolfiana, porém percebi ao longo dos anos que é necessário um trabalho de leitora paleontóloga sobre os textos. Descobri-los sem nenhuma cronologia, espanar as arestas insistentes da leitura em busca de narrativas hegemônicas, encará-los, deixar-se fluir pelas vozes, adentrar os ambientes e ocupar sem medo o espaço cedido.
MOMENTOS DE SER E NÃO SER
A nova tradução de As ondas dialoga de perto com a recente edição – e primeira tradução para o português brasileiro – de Um esboço do passado (Editora Nós, 2020), traduzido pela já mencionada Ana Carolina Mesquita. Antes de tudo, vale mencionar que é uma escrita que foi muitas vezes interrompida pelos aviões alemães, portanto, um texto sob tensão da morte. Na apresentação da edição brasileira, a tradutora explica que Woolf persegue formas que não sejam exatas, pois deseja falar daquilo que habita os fatos como ações e impressões. Sendo filha de um escritor de biografias, assim como leitora do gênero – além de memórias e diários –, ela também considera o que acha uma das grandes falhas de boa parte desses livros: deixar a pessoa de quem se fala de fora, narrando apenas fatos que acontecem a ela. Orlando (1928) é um bom exemplo de exercício crítico – e debochado – a essa forma de biografia. De qualquer forma, há ecos de experimentos de narrativa em toda a obra woolfiana que ultrapassam as convenções limitantes da ficção hegemônica e até mesmo da caixinha modernista.
Um esboço do passado traz dois conceitos interessantes para ler As ondas: a existência de momentos de ser e momentos de não ser. Assim sendo, boa parte da vida seria formada por momentos de não ser, contemplando tudo aquilo que se vive de forma inconsciente. Já os momentos de ser são apresentados pela construção corriqueira de uma metáfora; somos como embarcações seladas (inconscientes) que, em um dado momento, precedido de violência e à nossa revelia, sofremos um dano e com a iminência da água e do imprevisível acabamos adquirindo outro nível de consciência. Esse estado mental se expressa através de imagens e símbolos mesclados ao eu e o mundo. Para Virginia Woolf, a pessoa que é uma boa romancista consegue dar conta desses dois momentos.
Por isso, assim que as vozes de Rhoda, Susan, Jinny, Bernard, Neville e Louis explodem no começo de As ondas, temos uma miríade de imagens descritas pelos olhos que veem os momentos de não ser. Não é que não temos acesso a uma ordem de acontecimentos nas vidas dessas pessoas, mas sabemos mais sobre suas sensações, sentimentos, símbolos, sonoridades e sobre tudo que transborda para além de uma observação simplista.
Para além de um projeto estético em busca de uma narrativa que teorizava a escrita, Virginia, nessa altura da vida em Um esboço do passado, com quase 60 anos e em meio a uma guerra, ainda se esforça em empreender a busca para ir além da narrativa de um presente tão pesado quanto o que vivemos hoje. Como seria a narrativa de tudo o que vemos e sentimos ao abrir as notícias e nos depararmos com os fatos – e materialidade – dos números sem rosto da pandemia?
DORMIR OU ASSOMBRAR
Quando li o personagem Louis, em As ondas, revelando que quando chega a escuridão ele se desfaz do corpo – afirmando que é nada invejável – lembrei de imediato da primeira vez que li Orlando. Desde essa primeira leitura uma cena se tornou imperiosa e me acompanha até hoje, justamente a que divide o livro em dois: Orlando dormiu por dias após o desmonte moral de si mesmo diante da guerra, cansado pelo peso que o corpo masculino ocupava na ordem bélica. Quando acorda, é inegável que, finalmente, ele era ela.
Para Orlando, dormir é o interlúdio que lhe dá sobrevida, assim o tempo não o consome. Dormindo em momentos históricos estratégicos para o seu corpo, atravessa os séculos como um fantasma até que possa cumprir o que considera ser seu propósito: a publicação de um longo poema envolvendo um carvalho. Para Orlando o ato de dormir é uma forma de habitar o espaço sem o peso de uma identidade desgastante. Já Louis, em As ondas, está sempre ansiando pela escuridão porque também, dessa forma, pode se desfazer do corpo que tem um peso diante dos outros. Ambos os personagens encontram no sono formas de entrar em outros lugares, de habitar espaços.
No ensaio Every exit is an entrance (Toda saída é uma entrada), a canadense Anne Carson faz um elogio ao sono, e o faz como uma leitora atenta a este estado do corpo. De Aristóteles à própria Virginia Woolf, o sono é pensado como um lugar de possibilidades. Nesse texto, Carson conta que a sua primeira memória é um sonho; um espaço dentro uma casa em que viveu com a família quando criança. A autora lembra de detalhes como a cor do lugar, por exemplo, mas no sonho há algo de infamiliar. Depois, ela relata que esse sonho teve recorrência em sua vida adulta quando o seu pai sofreu de demência e, com isso, traz uma analogia: sonhar é como olhar para um rosto detalhadamente conhecido mas que de certa maneira é profundamente estranho.
Nessa lógica de estranhamento, familiaridade e o ato de habitar espaços sem o corpo físico, dormir e assombrar se tornam situações muito próximas. O corpo em repouso, que dorme em sono profundo, se torna quase uma morte. O sono é, também, uma forma de assombrar espaços, revisitar o passado e disparar dispositivos para, talvez, futuros déjà vu. Não tenho condições de falar em termos psicanalíticos – e vale lembrar que Virginia Woolf era uma leitora de Freud –, mas é plenamente possível ler os solilóquios de As ondas como flashes de sono e sonho.
Em Um esboço do passado, Virginia se pergunta sobre a possibilidade de sentimentos, que vivemos de forma mais intensa, terem uma existência independente do “nosso espírito”. Além disso, de forma fantástica, pensa na possibilidade de invenção de um aparelho que permita o acesso a esses sentimentos, sendo que vivem fora das pessoas. Esse aparelho resolveria tudo, pois “em vez de lembrar uma cena aqui e um som ali, enfiarei uma tomada na parede para escutar o passado”. Essa passagem é incrível porque, anos antes, escrevendo As ondas, ela inicia os solilóquios com Bernard dizendo que vê um anel, que paira sobre um laço de luz e tremula; um protótipo de um aparelho que capta os momentos de ser que podem também ser o estado de sono/sonho.
Cada personagem em As ondas narra o que vê através de uma profusão de diálogos e cenas em que situações e coisas muito simples tomam proporções significativas. Provavelmente, se fossem acessadas com um olhar de narrador comum, não teriam tanto destaque. É o que Carson chama de incógnito: o sono como algo que faz parte do irreconhecível e desconhecido. Um lugar não apenas entre o sono e o sonho, mas antes o ato de dormir em si, um deslizar pela noite em busca de algo. Parece que todos os amigos que se narram em As ondas estão nesses espaços, buscando respostas sobre quem são, que lugares ocupam na vida uns dos outros, assim como suas ansiedades de existência. Todos, em algum momento, se perguntam quem são, se o que estão vendo é parte de suas próprias memórias ou se estão enxergando pelos olhos de outrem.
A estranheza de “quem narra o quê” lembra a narrativa fantasmagórica de A casa assombrada (1921), conto de Virginia Woolf em que apresenta uma narração oscilante; um casal de fantasmas habita a mesma casa e procura um tesouro. A variação das vozes acontece pela mudança entre as pessoas do discurso, até o fim do conto não se sabe bem quem é fantasma e quem de fato habita a casa e, é esse assombro que interessa no texto.
Os personagens de As ondas também perdem afetos para a guerra, aqui há um personagem ausente, narrado por todos e circundante da narrativa inteira. Percival é uma espécie de fantasma evocado pelas vozes que lamentam o fatídico momento em que ele foi para a Índia. É sua existência e morte que conecta essas pessoas. Neville diz que sem Percival os seis amigos são apenas silhuetas ou fantasmas se movendo; em seguida, Rhoda diz que há uma sensaão de que o mundo continua sem eles. Em um momento em que mais de 250 mil vidas foram perdidas, quantos grupos de amigos são circundados pela ausência de um Percival?
DESMARGINAR AS IDEIAS DE REALIDADE
Quando se diz que Virginia, na foto de Freund, olha para fora do plano, também é possível imaginar que ela encara tanto o passado quanto o futuro. Lembrando que Mrs. Dalloway (1925) também carrega sinais da gripe espanhola e da Primeira Grande Guerra, pensemos: como se escreve e pensa diante de tamanhos atos de violência física e simbólica? Quando estava relendo As ondas, em que os personagens circundam em volta do amigo morto e da dor que se dá no luto, pensei na possibilidade dessa narrativa ser lida na atualidade também em diálogo com a desmarginação, proposta pela escritora italiana Elena Ferrante.
O conceito que a escritora italiana funda na sua Tetralogia Napolitana tem a ver com a reação do corpo da personagem Lila a situações de violência. Ela tem um embaralhamento dos cinco sentidos, cores e pessoas ficam borradas e o tempo funciona de outra forma. São segundos no tempo cronológico, mas não sabemos quanto dura no tempo da personagem porque ela também é ausência na narrativa, contada por outra, assim como acontece em vários momentos de As ondas.
A desmarginação pode ser encarada como o resultado da busca que Virginia Woolf perseguiu em sua escrita ao longo da vida, percebida em As ondas. Pensando na própria Ferrante afirmando que sua personagem escritora “desmargina na metáfora”, é muito instigante como essas autoras manipulam e teorizam sobre suas próprias práticas complexas de escrita e de como elaboram a estetização de suas realidades.
UMA ESTÉTICA COLETIVA SEM GÊNERO
Bernard, já perto do último interlúdio em que profere o solilóquio final, fala que o silêncio o desfigura e que vai ficando impossível ser distinguido uns dos outros. Em As ondas, apesar de os nomes remeterem à binaridade de gênero, todos os personagens são habitados por sentimentos e emoções. Eles traduzem uma busca por uma espécie de identidade narrativa andrógina, ou seja, algo que poderia se dizer hoje como uma tentativa de estética não binária, ou ainda, uma estética coletiva e sem gênero.
A pesquisadora e crítica feminista norueguesa Toril Moi, no texto Quem tem medo de Virginia Woolf? (tradução de Izabel Brandão, no livro Traduções da cultura), não se mostra surpresa que alguns críticos homens chamem a escritora inglesa de “frívola boêmia e esteta negligenciável de Bloomsbury”. Mas, considera estranho que algumas pesquisadoras feministas da década de 1970 tenham criticado a postura sem gênero da autora em muitos dos seus textos. A estadunidense Elaine Showalter, por exemplo, vê a insistência em uma natureza andrógina dos personagens como uma “fuga de um feminismo conturbado”, enxergando nas técnicas experimentais uma forma impessoal e defensiva de escrita.
A crítica tradicional se atrapalha ao lidar com uma multiplicidade de perspectivas como em As ondas, por exemplo. Como já mencionado, Virgínia se recusa a revelar uma experiência de modo claro e completo, prefere ir além dos fatos e engendrar um disfarce e até uma espécie de paródia como acontece em Orlando e Um teto todo seu (1929), por exemplo. Susan, Rhoda e Jinny se misturam nas impermanências dos solilóquios. Apesar de todas apresentarem traços biográficos tanto de Virginia quanto de sua irmã, mãe e outras interlocutoras, elas são um emaranhado de sensações e sentimentos que se recusam a ter identidade definida. Sabe-se que Susan se dedica aos filhos, que Rhoda sofre de melancolia profunda e que Jinny pensa em vestidos como peças para flutuar em ambientes, porém elas não são identificáveis, são personagens, como os outros, flutuantes e interdependentes.
Elena Ferrante afirma que todos os personagens, até mesmo os masculinos, têm algo dela e isso diz muito sobre Virginia Woolf. Em As ondas, é difícil não ver ecos da autora em Bernard, que coordena a mesa redonda dos personagens, mas também em Louis e seu incansável esforço de desfazer do corpo ao narrar a si mesmo, na saúde mental precária de Rhoda e até mesmo na acomodação de Susan. Por isso que análises minuciosas para encontrar resquícios específicos de parentes e amigos de Virginia acabam isolando ainda mais esse anseio por uma voz coletiva e busca por construção de memória que vá além da individualização de sujeitos transpostos em personagens.
Em Um esboço do passado, Virginia se coloca como um receptáculo da sensação de êxtase, com o tempo esse sentimento é acrescentado a muitas outras coisas, tornando-os complexos. Narrar esse tipo de sentimento – levando em consideração toda a sua elaboração diante da necessidade de não corresponder às velhas estratégias ficcionais – exige que a sintaxe, as palavras e as construções de personagens sejam outras. Será que é mesmo possível ler apenas de uma maneira cartesiana, masculina e binária?
Quando questionada, em uma entrevista recente, sobre uma ideia de escrita feminina, Elena Ferrante comenta que, desde sempre, pouco do campo simbólico, das linguagens que usamos para nos exprimir, pertenceu às mulheres, inclusive o próprio adjetivo “feminino”. Porém, assume a necessidade de misturar as vivências “reinventando vozes surpreendentes para pessoas e coisas.” Encontrar o caminho, proposto pela italiana, é também encontrar o mistério a partir de uma rachadura, de desvios e formas já utilizadas, porém que traga o imprevisível.
Esse imprevisível é o que move a escrita de Virginia Woolf, até mesmo em um momento em que até as vanguardas e experimentalismos eram associados aos homens. Tendo a concordar com Toril Moi que não existe uma forma essencialista de escrita woolfiana, pois ela revela uma profunda e cética atitude a um conceito humanista-masculino de uma identidade humana; basta lembrar de sua carta em Três guinéus (1938).
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As ondas, junto com Mrs. Dalloway, Ao farol (1927) e Orlando montam um dos mais interessantes projetos estéticos de investigação de tempo e espaço na literatura. Vale salientar que Tomaz Tadeu traduziu e colaborou nas edições dos livros mantendo a ordem cronológica das edições de partida. Porém, os romances não ficam isolados na segunda metade da década de 1920 – nesse período chamado de entreguerras – e muitas das indagações estéticas da autora estão em seus diários de juventude, ensaios e também como exercício em vários de seus contos. Por fim, termino com Bernard dizendo que as coisas são imensas e minúsculas. Sabendo que a leitura comum não acredita em verdades e nem em formas de ler corretamente. É apenas o gesto de abandonar o corpo e habitar a narrativa.
NOTAS
[nota 1] Tradução minha para a revista acadêmica Belas infiéis, da UnB (Brasília, v. 9, n. 2, p. 211-217, 2020), disponível clicando aqui.