Mat. Capa 1 Maria Julia Moreira

 

Antes de publicar A vida submarina, em 2009, Ana Martins Marques já era poeta de longa data. Desde a infância, quieta e tímida, ela recorda que passou a fazer poemas assim que começou a ler e escrever. Pulou a fase dos diários e das agendas e foi direto para a poesia. Enquanto seu irmão, Lourenço Marques, hoje formado em Educação Física e bailarino de uma companhia de dança contemporânea em Belo Horizonte, era o dono do quintal onde saltava de uma árvore a outra, dava piruetas e empinava bicicletas, Ana costumava ficar dentro de casa escrevendo. “A poesia era o meu quintal”, recorda.

Mais recentemente, em entrevista realizada no Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que abriga as bibliotecas e os manuscritos de diversos autores do estado, Ana lembrou que os textos que escreveu na infância estão guardados até hoje, e alguns foram organizados em uma pasta e datilografados por um tio. Mas ela não revela sequer o teor dessas mensagens. “Tenho que lembrar de queimar aquelas coisas, senão vão acabar vindo parar aqui no acervo”, gracejou na ocasião a poeta cuja timidez, que preserva como um dom, não esconde o senso de humor que está presente também em vários momentos de sua obra.

Apesar da relação com a poesia ter sido conservada desde a infância, Ana Martins Marques demorou a publicar seu primeiro livro. Antes, passaria pelo curso de Letras na UFMG, onde também fez mestrado e doutorado em estudos literários — mas nunca sobre poesia, e sim sobre as narrativas de João Gilberto Noll (1946–2017) e de outros romancistas contemporâneos. “Assim que descobri que existia alguma coisa chamada faculdade de Letras, eu pensei ‘é pra lá que eu vou’, mesmo com a minha mãe dizendo que se eu fosse estudar literatura não escreveria mais”. No entanto, diz que fez doutorado “por esporte”, pois a essa altura, já empregada como redatora e revisora de textos na Assembleia Legislativa, estava certa de que não pretendia seguir carreira acadêmica.

Por um lado, a mãe tinha razão. Ana diz que foi estudar Letras sabendo que não aprenderia a escrever, mas a ler — e quem conhece os livros da autora sabe o quanto a leitura é importante para o seu método de criação, seja como assunto ou como procedimento formal do poema. “Na minha primeira prova de estudos literários tive que ler Madame Bovary, eu não acreditava de tanta felicidade”, recorda. E analisa: “O curso de Letras não ensina a escrever poesia, mas ensina a jogar uns poemas fora”. Quanto ao jeito reservado, a própria poeta escreveu em um dos seus primeiros poemas, que leva o título Timidez:

Eu achava que a timidez
era a forma extrema da atenção,
o modo correto de visitar o deserto
e saber a idade exata que se tem.
Hoje sei da timidez apenas:
também o tímido esquece furiosamente,
aguarda com o coração incendiado
o centro dos encontros,
sabe de seus desejos
tão pouco quanto os outros
e persegue o próprio corpo
como um oriente.
Mas pressente,
antes de todos,
o fracasso do amor.

***

Em 2007, Ana Martins Marques resolveu divulgar seus primeiros poemas motivada pelo tradicional Prêmio Literário da Cidade de Belo Horizonte, um dos mais antigos concursos do país. Reuniu uma parte dos textos e enviou para a categoria de autor estreante, que depois foi extinta. Venceu, mas não publicou logo o livro — não era uma exigência do concurso. No ano seguinte, reuniu outro conjunto de poemas inéditos e venceu o prêmio pela segunda vez, na categoria de livro de poesia do ano. Ou seja, a poeta acabou o ano de 2008 com um feito incomum na poesia nacional: era detentora de dois prêmios literários, mas inédita em livro.

“Apesar dos prêmios, o caminho para a publicação não foi muito fácil. Cheguei a enviar o livro para algumas editoras antes de receber sinal verde da Scriptum daqui de Belo Horizonte”, diz a autora por e-mail, pois prefere conceder entrevistas por escrito.

Um dos editores de poesia da Scriptum à época, ao lado de Rogério Barbosa e Wagner Moreira, Mário Alex Rosa foi um dos primeiros a ter contato com os originais de A vida submarina. “Quando li fiquei bastante satisfeito e até mesmo comovido com a delicadeza feroz de muitos poemas. O tema amoroso parecia acentuar com muita beleza no modo de dizer e na forma como se compunha. E com uma linguagem aparentemente simples, sem afetação e até mesmo despojada”, analisa Mário, também poeta.

Ele afirma que, por conta da extensão do livro, chegou a sugerir que fossem publicados dois títulos separados, ou que alguns poemas fossem retirados do conjunto, mas Ana Martins Marques optou — segundo ele recorda — pela terceira opção: publicar a versão integral. A vida submarina, de certo modo, são dois livros dentro de um, daí os mais de cem poemas divididos em sete partes, número inusual para um volume de poesia.

Logo de saída, a crítica apontou “uma voz muito pessoal”, conforme apresentação do volume feita por Murilo Marcondes de Moura, que hoje é professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo, mas antes lecionou na UFMG — e foi professor de Ana, de quem lembra como “uma aluna brilhante”. Em seu texto, Moura chamava a atenção ainda para a “disciplina estética” de Ana Martins Marques cuja adesão “às vivências mais concretas e imediatas” não se dava “em detrimento da construção dos poemas, sempre depurados”.

Mais de dez anos depois, Moura afirma que seguiu acompanhando com o mesmo interesse a obra da autora, sobre quem observa um “refinamento evidente mas muito discreto, que resulta em uma poesia de grande legibilidade embora nada concessiva às facilidades ou a uma comunicabilidade anódina”. Ele recorda, por exemplo, do lançamento de O livro das semelhanças (2015) em uma livraria paulistana, que contou com uma leitura de “um moço e uma moça” na qual era visível que o público, “aparentemente não especializado, participava intimamente daqueles poemas”. O moço era o escritor Ronaldo Bressane, e a moça, a poeta Júlia de Souza.

E completa: “Em meus cursos de Literatura Brasileira, cujo programa encobre um arco de meados do século XX aos dias atuais, discuto com os alunos alguns poemas da Ana, e há um interesse vívido pela obra dela. Os trabalhos que recebo sobre a poeta são em geral muito interessantes e livres, como se a poesia dela desarmasse as respostas prontas e exigisse um posicionamento mais visceral”.

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O livro de estreia de Ana Martins Marques não demoraria a encontrar seus leitores. Um ano depois, em 2010, Heloisa Jahn, criadora da coleção de poesia da Companhia das Letras, convidou a poeta para submeter um conjunto de inéditos para a editora. Jahn conta que a poesia de Ana chegou a ela por uma convergência de indicações. Paula Colonelli, também editora da Companhia, voltou de Belo Horizonte falando sobre o trabalho da autora, por sugestão entusiasmada de Betinho, o livreiro da própria Scritpum — que, além de editora, funciona também como livraria. Logo depois o jornalista Matinas Suzuki Jr. comentou sobre o livro — ele que, por sua vez, tinha recebido uma indicação de Davi Arrigucci Jr. Antes disso, outra editora da Companhia à época, Marta Garcia, também já estava entusiasmada com os poemas. “Para nós, editores, é uma maravilha quando encontramos uma escritora maravilhosa como Ana Martins Marques”, diz Heloisa Jahn, em conversa por telefone.

Do envio dos originais para a fase de diagramação e impressão, “o processo foi rápido, fácil e alegre”, recorda ela, que recuperou alguns dos e-mails que trocou com a poeta naquele ano de 2011. Em um das mensagens, Ana dizia, ainda insegura, que estava com o livro quase pronto e o coração na mão. Os poemas chegaram para Heloisa “em 24 abril de 2011, e no final de julho já estava pronto para ser impresso”.

A ideia da coleção era fazer “livros de fruição, mais curtos, que pudessem ser lidos em uma única sentada”, afirma Heloisa. Daí que as suas intervenções no conjunto foram mais “estruturais”, no sentido de propor alguns cortes e criar uma organização entre os poemas. “Aprendi isso com Chico Alvim, ele me dizia que a ordem dos poemas no livro é uma segunda criação, ao propor uma sequência de leitura”, diz a editora. Assim nasceu Da arte das armadilhas. Heloisa Jahn relembra que a última conversa entre poeta e editora foi justamente sobre o título: “A arte” ou “Da arte”? Ficou o segundo, que parecia “soar um pouco antigo”, segundo pensava Ana na ocasião.

O livro ganharia outro prêmio, o Alphonsus de Guimaraens, da Biblioteca Nacional, em 2012. E em situação atípica: originalmente o prêmio havia sido concedido para uma importante edição crítica de Carlos Drummond de Andrade, organizada por Júlio Castañon Guimarães e publicada pela Cosac Naify. E o resultado chegou a ser divulgado. No entanto, reconheceu-se depois que a inscrição só poderia ser feita pelo próprio autor ou mediante sua autorização, segundo cláusula do edital, o que seria impossível no caso do poeta de Itabira, falecido havia mais de vinte anos. Daí a Biblioteca voltou atrás e concedeu o prêmio para a segunda colocada — que tinha ficado atrás apenas de Drummond, o que não chega a ser desonra.

Apesar de aposentada, Heloisa Jahn foi encarregada de fazer a preparação do livro novo de Ana Martins Marques, mas diz que neste volume quase não deu palpite. “Não lembro de uma única sugestão, pois o livro já chegou muito bem-acabado, com uma luz própria, Ana se tornou uma poeta plenamente madura, estou maravilhada com o livro”, finaliza. Risque esta palavra — eis o título, aqui em primeira mão — será lançado no próximo mês pela Companhia das Letras, junto ao livro de estreia da autora, A vida submarina, que ganha uma edição de bolso.

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Entre um título e outro, Ana Martins Marques trilhou um percurso raro na poesia brasileira contemporânea que combina a atenção de boa parte da crítica universitária e um número expressivo de leitores — número que pode ser medido pelas boas vendagens dos seus livros. Seu título mais conhecido e analisado, O livro das semelhanças, um dos vencedores do prestigioso Prêmio Oceanos (2016), alcançou recentemente a marca de oito mil exemplares vendidos, e tem sido objeto de estudo em teses, dissertações e pelo menos uma centena de artigos acadêmicos, principalmente nos últimos dois anos.

>> Leia três poemas de Risque esta palavra, novo livro de Ana Martins Marques

O livro logo causou grande repercussão, sendo resenhado assim que saiu em vários jornais e revistas por alguns dos principais críticos literários do país. No jornal O Globo, Marcos Siscar, também poeta e professor da Unicamp, com quem Ana Martins Marques escreveria um livro de poesia em parceria depois, fez uma resenha mais analítica do que valorativa, na qual sublinhou algumas marcas do estilo da autora: a exploração do registro informal da língua, dos temas cotidianos, certa ideia de despojamento retórico e uma “paixão pela escrita poética e pela experiência da linguagem”.

Na Folha de S.Paulo foi a vez de Alcides Villaça, professor da USP, elogiar “o alcance das palavras pinçadas no modo sério-irônico, o manejo da expertise verbal e a sensibilidade da autora para a poesia mais viva, onde se quebram os copos e onde se ouve ‘o silêncio/ elementar/ dos metais’”. E ainda sairiam resenhas — quase sempre laudatórias — no Estado de Minas, na Gazeta do Povo, na Revista Continente, no Jornal Rascunho, entre outros.

Para o crítico Gustavo Silveira Ribeiro, professor na UFMG e especialista em poesia contemporânea, O livro das semelhanças é um dos grandes lançamentos brasileiros dos últimos anos. Provocado pela revista virtual escamandro a selecionar os dez livros de poesia brasileira de maior destaque da última década, ele incluiu o título de Ana Martins Marques. Segundo o crítico, trata-se de uma poesia que conjuga elaboração técnica e sensibilidade com uma grande capacidade de comunicação. Isso porque, conforme argumenta, a obra da poeta se singulariza por reinstaurar uma sensibilidade moderna (ou modernista) entre nós, diferentemente de suas parceiras de geração, como Marília Garcia e Angélica Freitas, que levariam seus processos experimentais para outras direções, de acordo com Ribeiro.

“Ao propor uma relação da vida mais ordinária com visões de mundo reveladoras, quase como se o cosmos pudesse se manifestar em um objeto cotidiano, a poesia de Ana Martins Marques se alinha à melhor tradição lírica não só brasileira, com Manuel Bandeira, mas também internacional, com Marianne Moore e William Carlos Williams”, propõe o crítico. Não se trata, segundo ele, de uma poética propriamente inovadora, mas “restauradora ou tradicional, no sentido mais rigoroso das expressões”.

O crítico argumenta, porém, que enquanto essa tradição afirmava a impossibilidade da existência da poesia no mundo, que seria anacrônica ou fora de lugar em relação à circulação do capital e das mercadorias, Ana Martins Marques propõe uma solução diferente ao restaurar a possibilidade da existência da poesia na sensibilidade contemporânea — projeto flagrante, por exemplo, em seus metapoemas. E finaliza: “Mas essa filiação de nada valeria sem o talento da poeta e o refinamento da sua técnica, além de sua erudição, e se nota que Ana Martins Marques é uma poeta muito culta”, finaliza.

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Além do respaldo da crítica, as milhares de publicações de poemas da autora em redes sociais, medidas pelo número da hashtag #AnaMartinsMarques, demonstram também a admiração de leitores muito variados, qualidade que os próprios críticos costumam sublinhar no trabalho da autora.

A atriz Débora Falabella é uma das entusiastas da poesia de Ana. Desde que leu A vida submarina, emprestado pela amiga e também atriz Yara de Novaes, passou a seguir todos os livros da poeta. “Esse primeiro é o único livro dela que eu não tenho em casa, quando procurei não tinha mais exemplares, os outros eu tenho todos, até as coletâneas, acho que o meu preferido é Da arte das armadilhas, embora seja difícil escolher um preferido”, diz.

No ano passado, no espetáculo teatral Cara Palavra, definido como um sarau de poesia performático, Falabella leu diversos poemas de Ana. O espetáculo conta com poemas de várias poetas contemporâneas, mas a obra de Ana Martins Marques, natural de Belo Horizonte como a atriz, parece ser sua preferida. “Ela é uma das poetas mais presentes no espetáculo, e uma das que eu mais falo, a maioria dos meus textos eram os poemas dela, tenho realmente uma grande identificação com a escrita da Ana Martins Marques, principalmente pela maneira delicada com que ela fala sobre as coisas”, diz Falabella, que finalmente poderá ter seu próprio exemplar de A vida submarina.

Antes do espetáculo, nas eleições presidenciais em outubro de 2018, seguindo uma espécie de corrente dos eleitores do candidato Fernando Haddad que sugeria levar um livro para a cabine de votação, Falabella escolheu O livro das semelhanças. Em rede social, a publicação de sua foto com o livro não chegou a render um debate literário, como se pode imaginar pelo contexto da situação, mas teve mais de 70 mil curtidas.

Nota-se o alcance da poesia da autora também pelas recentes edições internacionais. Além de ter sido publicada em Portugal no ano de 2019, onde saiu a antologia Linha de rebentação, que reúne poemas de diferentes livros, também ganhou traduções para o espanhol, o italiano e o inglês. Na Espanha, El libro de las semejanzas foi publicado na íntegra também em 2019, em tradução de Paula Abramo, mesmo ano em que foi vertido para o italiano o primeiro livro da poeta, que ficou La vita sottomarina, em tradução de Chiara de Luca. Já nos Estados Unidos, em 2017, foi feita outra antologia, This house, com seleção e tradução de Elisa Wouk Almino. No segundo semestre está previsto para sair na Colômbia um novo livro com textos da autora pelas Ediciones Vestigio, mesma casa que acabou de lançar um título da poeta Marília Garcia.

A tradutora Paula Abramo lembra da primeira leitura que fez de O livro das semelhanças, que foi levado ao México pelo escritor Joca Reiners Terron. “Imediatamente tive o impulso de traduzi-lo”, diz Abramo. “Fiquei encantada com a aparente singeleza, com o jogo de entrecruzamentos que há no livro entre as representações da realidade, os suportes dessas representações e a experiência, com a forma em que nessa superposição e nesse contato, experiência e representação entram em crise e se complementam ao mesmo tempo”, analisa.

Quanto ao trabalho de tradução, ela lembra que o principal desafio “foi manter essa singeleza da linguagem tentando recriar ao mesmo tempo alguns jogos sonoros mas sem alterar as imagens diáfanas que a Ana constrói”, e afirma que a série Visitas ao lugar comum apresentou desafios particulares, pois o jogo entre os clichês e seus sentidos literais nem sempre produzia os mesmos efeitos em espanhol, e nem sempre era possível achar expressões equivalentes. “Foi a seção do livro onde as dificuldades abriram mais espaço à criatividade na tradução”, finaliza Abramo, que lembra ainda “da grande disposição da poeta para resolver dúvidas e revisar o trabalho com generoso cuidado”.

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Nos últimos anos, Ana Martins Marques ainda se dedicou a dois pequenos livros escritos e concebidos em parcerias — em 2016 com Marcos Siscar, Duas janelas, que saiu pela pequena editora Luna Parque, e Como se fosse a casa, com o poeta Eduardo Jorge, publicado um ano depois pela Relicário.
Essas experiências podem ser pensadas na esteira de uma poética que Ana elabora desde o livro de estreia, marcada pelas leituras de Ana Cristina Cesar (1952–1983): a construção de uma ambiguidade calculada entre a interpelação e o afastamento do outro — esse outro pode ser o leitor, mas também, a exemplo desses casos, autores com quem a poeta se “corresponde”. Daí a própria timidez torna-se uma espécie de instrumento poético e mesmo de tópica dos seus poemas, sendo uma forma de relação que se constrói à distância. Sobre Ana Cristina Cesar e a experiência de leitura de A teus pés, a própria Ana Martins Marques comentou que saiu “de cada leitura desse livro com a impressão de ter sido lançada em cheio numa intimidade estranha, que ao mesmo tempo me interpelava e me mantinha à distância”.

Marcos Siscar, que não por acaso escreveu um dos ensaios mais interessantes sobre a poeta carioca, ao recordar o processo de composição de Duas janelas comenta que, ao invés de reunir poemas já prontos, os dois resolveram escrever novos textos aceitando inclusive os “fracassos” decorrentes do processo como parte do jogo. “O livro é resultado de uma correspondência mantida ao longo de alguns meses, que inclui também uma ideia de diálogo”, relembra.

Para Siscar, tal diálogo foi realizado por meio dos “interesses comuns” dos dois poetas — como a simplicidade estilística e o tema da semelhança entre as coisas — mas também pelas diferenças. Nesse sentido, o poeta diz que passou a mobilizar, ao longo da correspondência, uma série de figuras poéticas, como o espinho, o desastre ou o “o caráter estrangeiro” das palavras, para “agitar um pouco a visão pacificada da linguagem da poesia”. Foi seu modo de destacar, conforme argumenta, “uma forma de descompasso produtivo, em detrimento do ‘teatro’ codificado da semelhança”.

E finaliza: “Embora se possa descrever o livro como duas janelas que se acendem mutuamente, também se poderia ver em Duas janelas alternâncias de luz e sombra, ritmos particulares de relação com o outro. Apesar do caráter meio inacabado dos textos, esse é um aspecto do conjunto que considero muito positivo”.
Já o mais recente livro de Ana Martins Marques é um pequeno volume que, em certa medida, também foi concebido em parceria. Mas não com outros poetas, e sim com a designer Silvia Nastari, diretora de arte da editora Quelônio — outra pequena casa editorial que se dedica em especial aos livros de poesia, mas que preza pelo processo de composição e acabamento do livro como objeto, na maioria das vezes feito em tipos móveis.

Dividido em duas partes, O livro dos jardins (2019) consiste em poemas sobre diferentes estilos de jardins e dedicados a poetas mulheres, como Orides Fontela, Alejandra Pizarnik, Sylvia Plath e Laura Riding. Responsável pelo projeto editorial do livro, Silvia Nastari conta que o volume foi concebido como uma tentativa de traduzir alguns elementos poéticos do trabalho da autora. Todo o texto foi composto em linotipias e a capa, com tipos móveis — ou seja, em letra por letra manipuladas com as mãos, quase como se o próprio livro fosse um lugar de cultivo. “A escolha do tipo de papel também é parte importante do projeto porque ele representa quase uma retomada da origem do que é esse suporte. Ele é feito de aparas e resíduos de bambu, e tem uma variação muito próxima da própria variação de um jardim”, explica.

Sobre o conjunto de poemas desse livro, Ana Martins conta que jamais quis inclui-los em outros volumes porque sentia que eles precisavam de um lugar próprio, “que passasse essa dimensão do pequeno cultivo e o cuidado com uma forma menor”, diz a poeta. “Teve uma vez que a Silvia me mandou uma mensagem dizendo que o livro atrasaria porque a colheita do bambu atrasou por causa da chuva, e eu achei aquilo uma coisa tão maravilhosa que, pela primeira vez, me pareceu ótimo que meu livro atrasasse. Quase não lembramos que livros são árvores”.

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Mas o melhor jeito de apresentar Ana Martins Marques talvez seja com a sua própria poesia. Em 7 de novembro de 2016, ao completar 39 anos, a poeta — que é do signo de Escorpião — escreveu o poema História (uma espécie de autorretrato) e publicou em seu perfil em rede social. Os comentários à publicação alternaram o pasmo dos leitores com um poema tão belo — no meio de tanto desatino, quase como um milagre — e desejos de felicidade e vida longa. O poema trata, na verdade, de algumas histórias, mas condensadas em uma só, quase como um resumo a trajetória da poeta — a história do seu corpo, de suas roupas, do seu apartamento, de uma imagem efêmera e a história da própria língua portuguesa, de cerca de 800 anos. O poema, que em novembro vai fazer 5 anos de história, estará no próximo livro da autora, Risque esta palavra:

Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem uma história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 4 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras
de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo
uma imagem
que viveu
alguns segundos.