Cinco de junho de 2021, 19h43, GloboNews, canal de notícia 24 horas por dia: “Jogadores da Seleção Brasileira de Futebol preparam manifesto para externar a posição do grupo a respeito da disputa da Copa América em meio à pandemia de covid-19”. Estou atento aos termos usados na chamada. Está lá: manifesto. Poderia ser documento, carta, comunicado, pronunciamento. Alguns momentos depois, novas investidas: “jogadores falam em manifesto mas querem evitar politização”. Estamos em 2021, terceiro ano do governo Jair Bolsonaro, negacionismo à ciência, ampla disseminação da cloroquina como “tratamento precoce” contra a covid-19, meio milhão de mortos pela pandemia e, como se não bastasse, tentativa de realização de um evento futebolístico no Brasil durante a maior crise sanitária de sua história. Há algo que também compõe este quadro: o uso do termo “manifesto” no improvável contexto do futebol.
Junho de 2020, atletas de diversas modalidades se reúnem e redigem o manifesto Esporte pela Democracia, com referências à banalização da morte de vidas negras e contra os arroubos autoritários do presidente Bolsonaro. Naquela ocasião, o mundo inflamava pelos protestos do #BlackLivesMatter, pelos ecos da morte de George Floyd e, no Brasil, pelas ações policiais em favelas que resultaram na morte do menino João Pedro no Rio de Janeiro. Ao longo dos três anos do “regime democrático de exceção” entre 2019 e 2021, fomos tomados por comunicados, notas de repúdio, tweets com repulsa a gestos antidemocráticos — alguns que tirariam nossa tranquilidade, outros que nos fariam mais ofegantes diante do improvável, tudo em meio à pandemia de uma doença que ataca, justamente, ou em alguma medida, os pulmões. I can’t breathe, urrou, sem sucesso, aquele corpo.
Enquanto lemos mais uma nota de repúdio, vamos sendo acometidos por uma nova crise de ansiedade, em que a palavra escrita parece ser a solução diplomática para um mundo em ebulição. Lembro da teoria dos “meios de comunicação quentes e frios”, de Marshall McLuhan, da “frieza” do texto escrito enquanto derretemos na respiração ofegante que pode ser a covid tomando nossos brônquios ou um disparate político que turbina o fluxo de sangue em nossas veias. Mas se estamos falando de um mundo “quente” (para usar a metáfora mcluhaniana) por que, recorrer, em pleno verão invencível de 2021, justamente ao meio mais “frio” de demonstrar indignação? O que pode nos dizer a “palavra fria” de um manifesto, palavra que se infiltrou (banalizou?) no cotidiano ultramidiatizado em que, entre telas, malhamos e tomamos café da manhã enquanto um novo golpe militar ocorre em Myanmar? Em alguma medida, questionamos: o que pode o manifesto? Ou por que fazemos manifestos?
Em alguma medida, questionar os manifestos significa situá-los, colocá-los em perspectiva como sintomas de um contexto em que a palavra parece ser a solução, a incapacidade de corporificação ou mesmo a covardia diante do absurdo. Neste sentido, pensar “o que pode o manifesto” nos remonta a uma crise que se instaura na intensificação das trocas simbólicas, materiais e performáticas nas redes sociais digitais e que chamamos aqui genericamente de “crise do performativo”. É neste momento, quando as redes sociais digitais consagram a performance, a oralidade, o declaratório e que as ambiguidades dos atos de fala promovem tanto a cisão quanto a partilha do sensível, que podemos falar de uma crise do performativo cujo paradoxo é exatamente a necessidade da palavra escrita.
Nas doze conferências proferidas por J.L. Austin em 1955 — que virariam sua teoria dos atos de fala e foram reunidas em How to do things with words, de 1962 —, dizer é, em especial, uma forma de agir sobre o interlocutor e sobre o mundo circundante. Parecia uma guinada para linguistas e filósofos, cujo estatuto declaratório supostamente daria conta das superfícies do mundo. Colocando em xeque a perspectiva descritiva da língua, Austin chamava atenção para a ação ou para os enunciados performativos, que não descrevem, não relatam, nem constatam e, portanto, não se submetem ao critério de verificabilidade (não são falsos nem verdadeiros). De forma afirmativa e na voz ativa, no performativo, a palavra “realiza uma ação”: “Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”; “Declaro aberta a sessão”; “Eu te perdoo”, evidenciando o caráter liminar dos gestos, o que separa um estado de outro, o que mobiliza para a mudança de um status e qual a fronteira entre palavra e ação. A artista sérvia Marina Abramović já questionou os limites cênicos do performativo ao colocar fim no seu relacionamento de 12 anos com o também artista Ulay numa performance. Em The lovers: The Great Wall walk (1988), eles caminharam, cada um de uma extremidade da Muralha da China, para dizerem adeus, o que parecia antecipar a extrema midiatização de fins de relacionamentos amorosos, demissões públicas, conversas privadas reveladas ou a intimidade que é pública em meio a tantas dúvidas sobre o que postar numa rede social digital. Ou, como naquele jargão cômico: “Quer postar? Posta! É de bom tom?”. Qual o limite entre desejo e realização?
É portanto neste contexto de intensa volatilidade das palavras ditas, de corpos que se esvaem em imagens que duram apenas 24 horas numa rede social digital, que voltamos a falar dos manifestos. No ano de 2022 serão os cem anos da Semana de Arte Moderna em São Paulo, cuja síntese conceitual-irônica, digamos, se deu seis anos depois, com o Manifesto antropófago (1928), de Oswald de Andrade. Em alguma medida, as palavras ao vento, as ações e os corpos da Semana de 1922 precisariam (precisariam?) de uma tomada de posições. O que cabe ao Manifesto antropófago senão reencenar as linhas de força de um evento um ano antes da crise de 1929 e do mundo se voltar para as interpretações das nações dez anos após a Primeira Guerra Mundial?
Outra parada para pensar o manifesto em sua ambivalência entre a oralidade e a escrita: o Manifesto regionalista (1926), de Gilberto Freyre, que só foi publicado em 1952 pela Edições Região, por iniciativa do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, e causou certo furor entre intelectuais da época por “revitalizar”, vinte e seis anos depois, aquele conjunto de ideias que objetivavam fincar o traço identitário regional como marcador estético e político. A síntese e a publicação de manifestos colocam em perspectiva a dinâmica performática das atividades artísticas, culturais e políticas que propõem algum tipo de ação, de intervenção no real que se precariza, seja pelas ideias conservadoras e tacanhas, seja por reações a pressupostos constituídos nos dentro-e-foras da história.
Quarenta anos após a publicação do Manifesto regionalista, o músico Fred Zero Quatro publica, em 1992, o Manifesto caranguejos com cérebro, que definiu o conceito, a cidade e a cena do Manguebeat, desta vez, fazendo um exercício em que a palavra se faria ação, da palavra se constituiria uma ideia de cidade e colocaria um conjunto de valores em cena. Em 2022 serão trinta anos do Movimento Manguebeat, de sua potência criativa e enérgica, de sua institucionalização e de sua ação no imaginário brasileiro sobre música, cultura pop e globalização. Entre sua publicação e as três décadas que nos separam é possível recuar, fazer uma pausa e pensar o que coube àquele manifesto e o que ficou de fora; pensar sobre o conceito de que ele se valeu e do que pareceu não dar conta; qual cidade foi performatizada e qual foi esquecida.
Um manifesto, quando bem-sucedido, podem argumentar alguns, vira um cânone. Coloca uma série de ideias em cena e presentifica, com certa precisão, o zeitgeist. Quando justapostos, os manifestos podem presentificar uma linha dentro de um conjunto de tradições reconhecíveis, evocando, cada um a seu modo, valores que passam a ser inscritos nos campos artístico e social — embora tais valores possam ser (e são) frequentemente revistos, recolocados e reposicionados. Manifestos são tomados como exímios marcadores de identidade cultural, territorial ou de uma nação. No entanto, desde a emergência da crítica marxista e feminista, na década de 1960 e posteriormente, das análises pós-estruturalistas e pós-coloniais, pode-se dizer que os manifestos vão progressivamente sendo colocados sob suspeita. Com a progressiva sensibilidade às diferentes vozes, ao pluralismo e às diferentes condições do mundo (econômicas, culturais, sociais e políticas), pode-se pensar os manifestos menos como expressões agregadoras supostamente universais e mais como indicadoras de relações de poder. Passa-se a suspeitar não do que o manifesto revela, propõe, inscreve, mas sim daquilo que ele oculta e exclui. Em que medida o letramento, a branquitude ou o capital econômico permitem lançar um ponto de vista sobre um fenômeno, permitindo que tantas outras expressões sejam deixadas de fora?
Em alguma medida, trinta anos depois, ler o Manifesto caranguejos com cérebro é um convite a pensar o paradoxo que faz mover o ethos de uma cidade imaginada, cantada, performatizada e cindida na poética de canções. Mas, sobretudo, serve para pensar os limites interpretativos de uma época, suas corporalidades e políticas (macro e micro). Em seu livro O arquivo e o repertório, Diana Taylor recomenda observar os documentos históricos não por aquilo que contém mas pelas suas ausências, pelas ficções que ali habitam, não pelo “isto foi”, mas pelo que poderia ter sido em meio à cristalização de uma forma de ver, ser visto e enxergar o mundo. Para Taylor, os Estudos de Performance, como um campo do conhecimento, tensionam os limites disciplinares da Sociologia, da Antropologia, da Ciência Política, da Comunicação, áreas nas quais os documentos e os arquivos falam mais das relações de poder que se impõem sobre a linguagem do que sobre as complexidades dos corpos.
De alguma forma, pensar o Manifesto caranguejos com cérebro hoje significa dotá-lo de seu caráter generificado, de sua relação com uma ideia de cultura pop que glorificava ideais do multiculturalismo e com uma cena cultural e artística que apontava para a transgressão de um Recife — a cidade, por seu caráter revolucionário, chegou a ser chamada de “Moscouzinho”, mas, como a capital russa, viu aquela potência aterrada por uma espécie de dinastia que se perpetua no poder enquanto ativistas são criminalizados e a polícia atira contra manifestantes, na mesma medida em que imensas torres anunciam a aurora de um Novo Recife. As filas gigantescas na enorme McDonald’s na Praça Púchkin daquela Moscou de 1990, de alguma forma, puderam ser vistas na cidade estuário que formou filas igualmente gigantescas de trabalhadores que pleiteavam emprego na empreiteira que iria trazer o Desenvolvimento e Capital Externo S.A. para a área do Cais José Estelita. O que separa o Manifesto daquela Recife de 1992 desta cidade que, em 2020, assistiu — em parte assombrada, em parte envergonhada, em parte nem aí — àquela criança negra, filha de uma empregada doméstica, que do nono andar de um edifício de luxo salta para a morte enquanto sua mãe passeava com o cachorro da madame?
UNIVERSIDADE PRÉ-COTAS
O Manifesto caranguejos com cérebro está dividido em três itens, que vão detalhar aquilo que se fundaria a partir dali com o Movimento Manguebeat — cuja chancela de definição como “movimento” desafiou intelectuais e pesquisadores e segue como uma feliz incógnita. Se é “movimento” ou não, pouco importa do ponto de vista acadêmico: seu fluxo e sua dinâmica pautaram o imaginário e instauraram um ponto de vista que agregou parte significativa de artistas em torno de uma ideia. Estão lá, o conceito do manifesto, a cidade e a cena — numa escrita urgente em flashes e pronta para tocar corações juvenis. Proponho aqui debater, para além daquilo que já está amplamente documentado nos livros e estudos sobre o Manguebeat e sua relação com os escritos do geógrafo e cientista social Josué de Castro (1908–1973), compreender em que contexto intelectual aquelas ideias se formaram, em que os conceitos se constituíram. Quero me voltar para a década de 1990, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995–2002), quando as universidades públicas eram povoadas por jovens brancos de classe média que pagavam cursinhos privados para entrar no ensino público superior.
Quando entrei no Centro de Artes e Comunicação (CAC) da Universidade Federal de Pernambuco, em 1995, não havia estacionamento para tantos carros, quase não havia negros como estudantes (muito menos como professores) e o nome de uma turma de Jornalismo ecoava pelos corredores: “Deus e o Diabo na Terra das Cobras”. O CAC era chamado, informalmente, de “Centro de Aids e Contaminação”, numa referência aos altos contingentes de gays estudantes, forma preconceituosa e moralista de ligar homossexuais a aids, ou o “câncer gay” como alguns veículos de mídia insistiam em alardear naquele período em que ela também era uma sentença de morte. Ao mesmo tempo, o CAC era (e é) um respiro de progressismo na universidade. Um bálsamo na caretice que sempre insiste em espreitar ambientes artísticos e intelectuais, propondo um entrelugar entre rigor e desbunde, norma e desvio. Este contexto universitário talvez seja indicativo de como se olha o contexto de produção de um manifesto hoje, trinta anos depois.
A interseccionalidade é, hoje, uma urgência ética intelectual. As universidades públicas pós-cotas promoveram uma virada interseccional a partir dos marcadores de classe social, de raça, de gênero e de territorialidade — em que o próprio conceito de autoria (o autor de um manifesto) é questionado. O que é uma ideia senão um conjunto de vozes que se organizam e cindem o território imperfeito da escrita? Fico pensando e achando curioso especular sobre o traço generificado do Manguebeat a partir do espectro moral da década de 1990, interseccionado com uma perspectiva racial: embora fosse constituído por uma série de atores sociais e artistas negros, periféricos, foi sob a batuta do homem "branco" intelectualizado que se organizaram suas ideias. Sua capilaridade também se deu, sobretudo, pela chancela da imprensa e dos inúmeros mediadores culturais presentes e atuantes nos veículos de comunicação de massa. Esta perspectiva racial permite menos apontar causas e mais reconhecer os efeitos daquelas palavras: o Manguebeat se capilarizou pelas periferias através do vínculo ao rock, ao hip hop, constituindo elos entre a cultura popular e a cultura de massa — para desespero da intelectualidade armorial —, provocando a fissura e o alarde daquele que não ousava chamar Chico Science porque este nome era um estrangeirismo.
Ao mesmo tempo que se capilarizou, o Manguebeat também teatralizou a subalternidade de seus atores sociais, elegendo modos políticos de ser periférico muito ancorados nas premissas e nas linhas de força da política do punk — tanto pela ideia do do it yourself ou “faça você mesmo” quanto pela presença do político como protesto ou denúncia sobre uma realidade adversa. Em alguma medida, rever o Manguebeat sob a ótica do Manifesto caranguejos com cérebro e de sua masculinidade pode auxiliar no entendimento sobre os limites de sua ideia de política. Parecia haver no gesto do homem-caranguejo consagrado por Chico Science, reencenado tantas e tantas vezes, incorporado pela dança, pelos videoclipes, pela arte performática inclusive de Deborah Colker — parecia haver naquele gesto com braços e mãos o traço de uma certa polícia da masculinidade que comportava uma pedagogia do gênero amplamente centrada no punk. A força do homem-caranguejo está em emular os braços e as mãos em gestos enfáticos e discursivamente apontados para adiante.
Racializar performaticamente o Manifesto implica perceber como em trinta anos a universidade de enegreceu diante das cotas raciais e que talvez não caiba mais policiar os modos de dança e de inscrições do corpo. Da ênfase nos braços emulando patas de caranguejos, a cinesia do corpo foi descendo para os quadris, para a bunda, para aquilo que vai sendo chamado de “feminino”. Quando estudantes brancos, heterossexuais e cisgênero chamavam o CAC de “Centro de Aids e Contaminação”, na década de 1990, pareciam estar diante apenas de outros estudantes brancos e cis (só que desta vez homossexuais) que “davam pinta” e não previam a paisagem negra, trans, não-binária e queer que se configurou nos centros de estudos das universidades públicas — para desespero tanto da heterossexualidade cisnormativa e melancólica quanto da direita liberal engomada. Foi neste contexto de racialização das universidades públicas que se retirou a transparência dos estudantes brancos: parte da policialização sobre os corpos advém de sua mirada — mesmo que à revelia — e de sua moral, que incorpora os ditames da branquitude.
O Manguebeat colocou a periferia em cena, teatralizando-a e permitindo que ela redigisse suas narrativas não em forma de manifesto, mas nos corpos que passaram a habitar, sensualmente, as frestas da masculinidade dos caranguejos com cérebro. A música brega, em contrapartida, foi colocando a ênfase não na política nos moldes do punk — um projeto muito claro de ocupação do espaço e das ações artísticas e musicais —, mas naquela que se centra no amor e na ambiguidade dos corpos. Dos gestos enfáticos dos homens-patas-de-caranguejo que dançam solitários reivindicando a urgência do presente, passamos para o roçar das pernas de um casal que vai descendo até embaixo enquanto algum verso sobre dor-de-cotovelo ou superação emoldura aquele enlace de corpos que formam uma outra cidade: mais corpórea, mais permissiva e menos heterossexual.
MANGUETOWN SEXUAL
O antropólogo cubano Abel Sierra Madero cunha o termo “cidade sexuada” para falar de uma Havana repleta de militares no pós-Revolução, em que a excessiva disciplina ia criando arroubos autoritários e regulatórios sobre os corpos dissidentes. É neste sentido que imagino a Manguetown que não coube no Manifesto caranguejos com cérebro. Uma Manguetown sexuada que parece convocar para o desvio da política. Em alguma medida, a Galeria Joana D’Arc na década de 1990, que compunha um quadro urbano com a Soparia do Pina, no Polo Pina (soparia cantada nas letras, no “cadê Roger”), parecia acomodar uma outra ideia de cultura pop que o Manguebeat não acomodava. Se o pop para o Mangue era o punk, era na pista de dança da Boato que, lá pelas três da manhã, se dançava Madonna — o pop-pop, pop de mulher, pop de bicha, digamos. Nestes trinta nos que nos separam de 1992, o punk ganhou exposição nas galerias de arte de um shopping de alto luxo enquanto o mundo foi sendo tomado pelo corpo sem normas que se infiltra no nosso celular, numa rede social, e expõe o passinho, aquele passinho que, em alguma medida, confunde a moral, desafia a estagnação e nos faz pensar sobre o que aconteceu com a cidade que a pesquisadora Ângela Prysthon (UFPE) percorreu no seu icônico texto Itinerários recifenses (2001), em que passeia pelo Bairro do Recife em alguma data furtiva da década de 1990.
Aquele passeio traduzido em texto parecia trazer a gênese de um conceito que o Manifesto caranguejos com cérebro colocou em sintonia com a universidade — a ideia de cena cultural. Enquanto a noção de uma cena era vivida e experienciada pela juventude urbana do Recife e da Região Metropolitana, na academia era debatida a partir dos estudos urbanos em intersecção com os estudos comunicacionais. Uma cena cultural é uma clivagem sobre algumas expressões artísticas que são reconhecíveis como legítimas, que “representam” uma ideia, idealizam um território e são, portanto, chanceladas pelo poder público. Pesquisadores como o canadense Will Straw cunharam conceitualmente a noção de cena cultural, que se espraiou no Brasil pelo olhar de Jeder Janotti Junior (UFPE) ao focar mais especificamente no campo da música. Uma cena, todos concordam, é algo que é colocado, disposto, organizado. Neste sentido, mais uma vez, uma cena elege, emoldura, mas também exclui. Quero terminar este texto com uma imagem que talvez ilustre como a noção de cena foi importantíssima para a formação, a unidade e a consolidação de um senso de pertencimento que uniu indivíduos em torno das premissas do Manguebeat, mas também fez com que, em alguma medida, inúmeras outras expressões fossem sendo paulatinamente excluídas deste palco imaginado em que a cena se desenvolve.
A imagem é a seguinte: no palco do Marco Zero, no Carnaval, a banda Nação Zumbi canta seus maiores sucessos enquanto uma multidão dança, sua e pula — entra em êxtase na face gloriosa que se abre. A câmera é aérea e sobrevoa o Marco Zero, o mar de gente. O palco iluminado, a Nação Zumbi encerra o espetáculo, fogos de artifício, chuva de papel picado. A câmera vai recuando, saindo do Marco Zero, aos poucos, serpenteando pelas ruas iluminadas. A imagem vai ficando mais escura, a câmera também vai descendo, aterrando, entrando nos becos mais escuros do Recife Antigo — mesmo durante do Carnaval (sim, há escuridão também no Carnaval). A câmera aterrissa diante de uma caixinha de som JBL. Esta caixinha de som está no centro de um grupo de jovens que se reúne e dança aquela dança de movimentos pélvicos, simulando um coito, num outro êxtase. Longe do palco, longe das luzes, longe da cena, eles corporificam aquelas músicas que não podem tocar naquele palco lá, iluminado, gigante, colorido, porque, ora, porque… deixa pra lá.