LITERATURA OU DRAMATURGIA DO PENSAMENTO
O que é literatura? Eis a pergunta lugar-comum dos estudos literários. “Literatura é Literatura”, já dizia Antoine Compagnon. Longe de tentar definir essa realidade complexa, heterogênea e mutável — que tem, acreditamos, como uma de suas principais características o não essencialismo e as fronteiras aprisionantes — o que move a coreografia do desejo, aqui, é presentar a dramaturgia de Grace Passô, sua literatura desenhada que é na letra performática da palavra e nos voleios do corpo.
Pensar a dramaturgia de Passô significa dizer da não distinção entre o texto escrito e o texto performativo, o levado para a cena, com cenário, figurino, música, iluminação etc. Sua Literatura é uma espécie de manifestação líquida do Atlântico negro, que faz transbordar os vazios e as fronteiras e dá a ver possibilidades de mergulhos em mundos outros possíveis: uma dramaturgia tecida nas cruzas e encruzas, nas linhas de confluência entre a escrita literária, a História, os sons, as luzes e as sombras, as máscaras e os totens, os ritmos e os cheiros, a memória e o esquecimento, a cor e o corpo como textos.
Inscrever “a cor como texto” não aponta para um poder limitador e controlador da negrura; antes, encena a cor como discurso plural que, em suas articulações, produz seus efeitos de linguagem.
O corpo-texto Grace Passô é um corpo revisionista, semiótico e de produção semiótica. Corpo produtor de uma performance que não se resume a uma dramaturgia tradicional eurocentrada, nem escrita e nem cênica. É uma dramaturgia do pensamento, interessada tanto na elaboração de uma estética crítica-criativa sobre como apresentar a totalidade singular das negras e dos negros, quanto na “conexão inegociável entre espírito-corpo-experiência-coletividade-arte”, como traduzido por tatiana nascimento sobre Audre Lorde e nos contado por Cidinha da Silva.
A interlocução entre o texto e a performance potencializa o gesto, o olhar e a escuta como possibilidade de construção dramatúrgica, realçando no texto dramático sua natureza performática. A performance de Passô recobre e qualifica o seu próprio texto.
Corpo-encruzilhada que, a cada palavra performada, mantém ativas, dizendo com Leda Maria Martins, “as possibilidades de outras formas de veridicção e percepção do real que problematizam as formas e os modelos de pensamento privilegiados”. É um corpo-vida que, ao mesmo tempo, é espetáculo, teatro, cinema e dramaturgia tecida por várias dobras discursivas.
Uma dramaturgia da ordem da oralitura: “[…] a singular inscrição do registro oral que, como littera, letras, grafa o sujeito no território narratário e enunciativo de uma nação, imprimindo, ainda, no neologismo, seu valor de litura, rasura da linguagem, alteração significante, constituinte da diferença e da alteridade dos sujeitos, da cultura e das suas representações simbólicas”.
A forma como Leda Maria Martins apresenta o significante oralitura não remete exclusivamente ao repertório de formas e procedimentos culturais ligados à tradição verbal, mas ao que, especificamente, em sua performance assinala “a presença de um traço residual, estilístico, mnemônico, culturalmente constituinte, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade. Como estilete, esse traço cinético inscreve saberes, valores, conceitos, visões de mundo e estilo.”
O Teatro é a própria escrita, uma vez que a escrita é, em si mesma, performance.
Ele — teatro — é a possibilidade de tecer não contranarrativas, mas novas narrativas e perspectivá-las historicamente para lançar os corpos negros em perene processo de cura.
SOBRE SUBJETIVIDADES
Achille Mbembe assinala que a (o) negra (o) é uma alcunha, que foi vestida com uma túnica, mas entre a alcunha, o sentido a ela dado e o ser humano convocado a encenar tal sentido, há algo que permanecerá na distância. É essa distância que a dramaturgia de Passô quer radicalmente cultivar.
A subjetividade é importante para discursos que pulsam nas margens, veias de um sistema que circula muito sangue, e uma forma criativa de produzir saberes e perspectivas. Olhar e poder produzir imagens que desafiam e rompam com representações convencionais dos corpos negros, mas sem a simples redução da representação da negrura a uma imagem positiva. Não é só sobre reações. É sobre também questionar e, fundamentalmente, imaginar novas possibilidades para a construção de identidades e estéticas.
Se “negro”, como forjado pela branquitude, é uma ficção e se se pensa a ficção não como mentira, mas com possibilidades de construção, força produtiva e movimento em contínuo processo de recriação, a (o) negra (o) pode surgir no tempo como uma imagem, uma escrita, uma epistemologia do desejo.
A literatura de Grace Passô está interessada no exercício de inventariar imagens fabulantes. Isso tem a ver com pensar em maneiras de produzir arte que se faça elaboração da existência como sujeito negro, o qual não pauta a si mesmo através de uma presença alienante do outro branco. Tem a ver com as escolhas formais, com o como se elabora, esteticamente, novas possibilidades de fabulação e construção cênica.
Imaginar é a possibilidade de tecer imagens que saiam da lógica representacional, apontando para formas mais fugitivas, especulativas e performáticas de ser e estar negra (o) no palco-mundo; é não alimentar o sistema com as imagens essencialistas que ele criou e legitima das (os) negras (os); é não aceitar acriticamente certas imagens. Isso é tão estético quanto ético.
Vaga Carne, texto escrito e performado no teatro e no cinema por Passô, é sobre uma voz que invade, pela primeira vez, o corpo de uma mulher e a sua consequente vivência/experiência dentro de um corpo humano. Antes, a voz havia invadido várias matérias: pato, cães, cavalos, cremes, café, mostarda, estátuas e estalactites, mas todas experiências muito diversas diante da nova “matéria-mulher”. Agora, dentro desse corpo, a voz se encontra na tentativa de estabelecer diálogos com essa “matéria” repleta de complexidades.
“Quem é ela? Faz o quê? Está aqui, agora, por quê? Sua coluna parece exausta, dá pra perceber daí? Ela fuma? Ela sempre foi mulher? De que cor ela é? Por exemplo… entrei um dia numa caixa de som que dizia que este país é justo, ela concorda? Ela chupa sovertes? Será que ela já usou os cremes Butfy? Ela tem cachorro? Alguém a ama? Será que ela não quer beber um café quentinho agora?” Pergunta a voz diante/dentro do corpo de uma pessoa que não tem uma identidade previamente elaborada pelo outro.
As perguntas nos permitem fazer reflexões que sinalizam para uma reimaginação da identidade, que escapa à repetição discursiva e imagética sobre os corpos negros e é pensada, radicalmente, na diferença e no desconhecido. Não saber quem é a mulher é sublime. Ela não vem com manual prévio de mulher forte, guerreira, batalhadora, barraqueira, agressiva, boa de cama, com samba no pé, malemolência nos quadris, resistente à dor. Tais características não tiram o caráter sublime de ninguém. O sublime, encontra-se, na verdade, no fato da mulher ser presentada por interrogações com possibilidades de respostas múltiplas, que movimentam e fissuram a categoria de “mulher negra” criada como forma de homogeneização.
Ela não é uma mulher negra, então? Sim, ela é uma mulher que se lança para o desconhecido de, entre outras coisas, não ter mais que carregar o peso do mundo nas costas. “Sua coluna parece exausta, dá pra perceber daí?” Na encenação para o teatro e para o cinema, ou seja, na dramaturgia coreografada no corpo, quando a voz lança essa pergunta, vê-se a coluna de Grace Passô ereta, alongada, elo que liga a terra ao céu, o céu à terra. Vê-se uma imagem, ironicamente, em desconexão com o que é dito, que segreda e sugere por trás do que se manifesta. É uma imagem que trama um devir, abre vagas e produz simbologias não como mera resposta ou revide às maquinarias da branquitude; antes, abre espaços para que, na luz da presença da imagem, se desenvolva uma “razão sensível”, floresça objetividades, outros destinos e subjetividades guardadas e desejosas de festa.
Querer saber se a mulher chupa sorvete, tem cachorro, usa creme Butfy ou se quer tomar um café quentinho reitera e joga luz sobre a humanidade dessa mulher a partir de pequenos gestos e possibilidades de desejos e realizações cotidianas. O mesmo se dá quando, à pergunta “alguém a ama?”, tem-se o “sim” como possibilidade de resposta, fissurando o “não” como destino já traçado. Pontuar e reiterar a humanidade das pessoas negras, suas possibilidades de escolha e vontades, as rotas entre sim/não/talvez, entre outras, dentro do contexto do capitalismo e do colonialismo, que tentou, a todo custo, reduzir as pessoalidades negras a mercadorias baratas, retirar a humanidade e a capacidade de simbolização dessas pessoas, aponta para um novo saber: o devir de si mesmo, caminho que conduz à subjetividade e à objetividade de outras imagens e discursos nos processos constantes de implosão das imagens e dos discursos que previamente foram dados.
“Vocês se identificam com ela?” De novo, a voz elabora perguntas. Com essa mulher presentada pelas interrogações que arruínam a reprodução de imagens redutoras, como se essas imagens fossem não só verdadeiras, mas também de autoria dessa mesma mulher? Sim? Com essa mulher que, provavelmente, não concorda que o mundo seja justo e que está interessada em construir discursos e redistribuir imagens novas? Sim? Com ela que se lança para o desejo, a invenção de memórias e infinidades de existências, com lugares também de falha? Sim? Identificar-se com ela significa que te representa? Que sua subjetividade perpassa pela subjetividade dela e vice-versa?
SOBRE SUSPENDER O CÉU
“Ei, mulher, você quer dizer alguma coisa? Fala! Você quer fazer um discurso? Faça! […] Esta mulher aqui é só um microfone, coitada, ela não tem nada a dizer!” Em tempos de slogans vazios e discursos desacompanhados de práticas concretas acerca de uma postura efetivamente antirracista, muitas pessoas ainda falam sobre a necessidade de “dar voz” àquelas (es) que compõem a massa dos “não pertencentes”, esquecendo, talvez, do ato primordial: a escuta. A mulher, cujo corpo é ocupado por uma voz, sinaliza para uma existência que se relaciona com uma forma de poder ser escutada a partir do silêncio que se faz, também, linguagem. Ela chama, por escolha, para o diálogo forjado não na dialética da fala/escuta, mas na do silêncio/escuta.
O silenciamento não é aquele que marcou a experiência da diáspora negra ao longo da História, que foi e é sistematicamente quebrado por entre as máscaras de flandres, tendo o corpo negro como texto-discurso, escrita hieroglífica. Em Vaga Carne, apresenta-se como um saber desenvolvido de raízes ancestrais. Em Minas Gerais, estado em que Grace nasceu, os escravizados ficavam o dia inteiro sem falar porque, muitas vezes, escondiam dentro da boca diamantes ou o ouro que, no futuro, seriam responsáveis pela própria alforria e/ou a dos seus demais. É o silêncio do “comer quieto”, de “comer pelas beiradas”, uma tecnologia que liga os mundos, possibilita falar com quem já não está mais perto e com quem virá. Um exercício mental de troca, criação de saberes e estratégia, uma possibilidade de existência em meio aos açoites e às explorações e uma condição, na dramaturgia performada e decantada, de diálogo sofisticado que se abre e semeia o passado, o presente e o futuro.
Não falar é uma tentativa de desarticular o programa da diferença do capitalismo, pois, como coloca o crítico de cinema Juliano Gomes: “Tudo o que a ‘cena’ da última mutação do necrocapitalismo quer é que uma mulher negra ‘diga’, que venda barato caminhos. Vaga Carne trabalha peristalticamente sobre o vigor da recusa em dar esse biscoito pro entendimento”. Ou seja, recusa dar ao sistema meios de compreender melhor os “perigos raciais” que o circunda e, assim, controlá-los e commodificar a diferença.
E não ter nada a falar representa uma escolha que diz da criação de um espaço, principalmente na linguagem, para a construção de uma subjetividade radical. É tão estratégico quanto libertador. É uma forma de enganar o sistema, certo de que as pessoas negras são/estão sedentas por palavras. Nesse silêncio-engano, estabelece-se uma ironia, espécie de vingança não violenta, um saber da ordem da renovação e uma estratégia sobre viver e reinventar “memórias da plantação” que resistam e anunciem a partir das velhas e atuais características coloniais.
A dramaturgia de Grace Passô fissura, na palavra e no corpo, no palco e na tela, a lógica de ver, sentir e significar as coisas inerente à modernidade. Ela enfrenta o debate sobre o poder e a sensibilidade, explode as dicotomias e pensa o corpo como lugar de inscrição de saber, poder e transformações, ensejando aquilo que Rancière chama de “modos do sentir que induzem a novas formas da subjetividade política” e, sobretudo, estética.
Por Elise (2005), Congresso Internacional do Medo (2008), Amores Surdos (2009), Marcha para Zenturo (2010) e Mata Teu Pai (2017) são texturas em movimento, textos elaborados no dito e não dito das palavras, cheiros, memórias individuais e coletivas, desejos, pautados todos no jogo da duplicidade e da aparência, típico dos modos est(éticos) das diásporas negras, funcionando como fontes permanentes de resistência e recriação.
“Quem é ela?”. Ela é uma mulher.
CORPO-FICÇÃO, “FICÇÕES SÔNICAS”
A ficção é a possibilidade de tomar para si a própria humanidade. Ela parte do estatuto estético-político da própria existência negra — complexa e movediça — que, de maneira tensa e não conciliada, é historicamente testemunhada e reiterada pela literatura, pelo teatro, pelo cinema e por outras artes. O corpo-ficção é interpelado e forjado por essa dimensão inventada do que nos nomeia como uma outridade, e se engaja a partir da potência de invenção de si que constitui os sujeitos não-hegemônicos.
Ficções Sônicas é uma transcriação da peça radiofônica Para dar Um Fim ao Juízo de Deus, último texto de Antonin Artaud (1896–1948). A cada modulação dos sons que emite, combinados aos samples organizados pelo compositor e DJ Barulhista, Passô nos oferece desdobramentos, recomposições e reposicionamentos de significados. “Eu prefiro o povo que come da própria terra o delírio de onde ele nasce”. A frase inicial do experimento leva três minutos e vinte e cinco segundos.
O p, o p, povo, o po, o pov, o povo
que co, que com, que come, que come da pró, que come da próp
que come da própria, que come da pró, que come da própria, que come da própria terra, própria terra, pria terra, terra
ode, odelírio, írio, elírio
o delírio de onde ele nasce
lenasce, enasce, nasce
A obra estreou online no dia 13 de dezembro de 2020 no 10ª Festival Novas Frequências e a continuidade desse projeto integra a programação da 34ª Bienal de São Paulo. Também no projeto, um filme com performances de pessoas em sua maioria não-brancas. O curta-metragem integrou a programação do Flaherty Film Seminar em julho deste ano, com curadoria da brasileira Janaina Oliveira e cujo tema foi Opacidade. O conceito/tema, tal como desenvolvido pelo antilhano Édouard Glissant (1928–2011), nos ajuda a compreender, em parte, a operação de escritura com sons e imagens feitas por Passô. Oliveira afirma na apresentação do Seminário: “Vivemos em um tempo de esgotamento da transparência das convicções e definições e do desejo de entendimento total das diferenças que historicamente guiaram o mundo Ocidental das imagens. […] Opacidade é uma força de desdobramento, que cria aberturas e infinitas possibilidades de existência cinemática, especialmente para sujeitos que têm sido excluídos ou desvalorizados nas telas tradicionais”.
A apropriação que Grace faz do texto do dramaturgo e poeta francês reposiciona a experiência a partir do corpo-voz/corpo-ficção dela própria e retoma, pelo caminho surrealista que se origina no autor, uma possibilidade de afirmação da negrura na linguagem. A ideia de negrura atualiza e amplia o conceito de negritude de Aimé Césaire (1913–2008) e Léopold Sédar Senghor (1906–2001). O surrealismo como método, para Césaire, pode ser considerado “a estrada real da negritude, pois ele leva ao mesmo tempo à liberdade e ao homem negro”. “O surrealismo é uma revolta”, diz Césaire, apontando para o que o movimento, no contexto martinicano sobretudo e em suas dimensões ética e estética, traz de possibilidade de sublevação existencial e de intervenção política. Naquele contexto, a intervenção incluía a subversão nas formas e a liberação do inconsciente, indo ao encontro de uma crítica ao colonialismo e, por extensão, à própria “razão” ocidental (universalista).
Para o poeta e tradutor Léo Gonçalves, o “método surrealista, segundo Breton, era o da supressão das camadas superficiais para se chegar a um espaço caótico, que seria a conexão da arte com o inconsciente. Quanto a Césaire, nos momentos em que se unia a outros poetas para fundar a Negritude, ele se viu na busca por suprimir as camadas superficiais impostas ao homem negro. Os poetas da Negritude passaram a defender (no campo de ação primeiro deles, a poesia!) a supressão das camadas superficiais impostas pelo homem branco para se chegar àquilo que Aimé Césaire chamou de ‘negro essencial’”. Esse “essencial” é contestado por Édouard Glissant, que prefere a multiplicidade, o “diverso” e, com ele a “poética da relação” que pressupõe a “opacidade” como princípio. Longe de essencializar a experiência negra, ao dialogar com o surrealismo, Grace Passô reafirma — como já fazia em Vaga Carne — as múltiplas possibilidades performativas, ficcionais e opacas da negrura.
MODULAÇÕES DA CINE-ESCRITURA
República é um curta-metragem comissionado pelo Instituto Moreira Salles no projeto IMS Convida e é uma das quatro obras de Passô para o Cinema. O curta foi realizado em 2020 em um apartamento e em isolamento social em uma das fases mais tensas da pandemia de covid-19. Mais que um filme sobre a experiência desse isolamento e desse contexto, é uma reflexão sobre uma condição subjetiva num país atravessado por traumas sempre-aqui. A dramaturga e cineasta nos provoca a pensar a vivência de dois traumas coletivos que se sobrepõem neste nosso agora: as consequências dos deslocamentos negroatlânticos que se fazem presentes transtemporalmente na experiência negra brasileira e a vivência-latência de corpos ameaçados e confinados pela presença ameaçadora de um vírus com potência letal.
Passô nos mergulha numa vertigem por meio de uma mise en abyme. Uma cine-escritura de palavras e imagens que nos apresenta um relato de sonho dentro de um filme-testemunho. Ao falar do que gera o República, ela diz de um “sentimento de tempo” e de uma “exaustão histórica” que há “desde que existe este nome Brasil”. A densidade deste tempo-agora pandêmico exacerba, segundo a realizadora, “uma sensação radical de falta de pertencimento”. A cine-escritura que ela nos apresenta é para ela — e para nós — um refrão a repetir a densidade atemporal da exaustão e do não-pertencimento negro.
Na narrativa, a atriz Grace se desdobra em duas mulheres sem nome que habitam espacialidades distintas cujo marcador é um alegórico apartamento: uma é a mulher de dentro e a outra é a mulher de fora. A primeira fala da ficção de um mundo sonhado; a segunda performa um atravessamento de uma realidade transtemporal. A de dentro, deitada numa cama do que parece ser um quarto, é desperta por um telefonema: “alguém está sonhando o Brasil”. Ela abre a janela do apartamento, dá um grito e observa a outra, a mulher de fora em sua sozinhez excêntrica de pessoa em situação de rua — e que também grita.
O grito da mulher de dentro, visto-ouvido num contexto de pandemia/confinamento/aguda crise sociopolítica, soa em tom de alívio. Caso o sonhador acorde, ela, o país e o pesadelo em que estamos imersas podem acabar. Ela olha para nós/para a câmera. Fim da cena. Há mudança de registro na atuação, no comportamento da câmera e no diálogo entre ela e uma outra mulher que opera o equipamento. Um filme dentro de um filme. A/as ficção/ficções se revela/m em mais de um sentido.
A escritura instável da câmera operada por Wilssa Esser é próxima à mulher de dentro em seu apartamento e exacerba a sensação de clausura. O espaço de confinamento é a literalidade do distanciamento social na pandemia mas, também indicia as restrições históricas que atravessam esse corpo que performa ali naquele espaço. A “sensação radical de falta de pertencimento” a que a realizadora e dramaturga se refere pode ser compreendida, no jogo proposto pela narrativa, como o deslocamento subjetivo provocado pela modernidade/colonialidade.
A câmera que estava próxima à mulher de dentro permanece ligada. Estamos à deriva. Seguimos ouvindo o diálogo de bastidores. Escutamos sons da cozinha, uma campainha e um grito que invade a ambiência: “o seu Brasil acabou e o meu nunca existiu!”. Gutural, intenso, ele se repete, se desdobra: “nunca existiu. Nunca existiu!”. A imagem se desestabiliza novamente.
A mulher de fora, que era observada desde a janela, está agora no corredor, do lado de fora do apartamento, e olha para dentro desde a porta. Uma música extradiegética, na voz da afro-colombiana Etelvina Maldonado acompanhada do som de tambores, acrescenta mais uma camada de exterioridade e transtemporalidade àquele ambiente apartado: “déjala llorar, déjala que llore, porque si ella es buena, caramba, algun día se viene”. A de fora agora observa a mulher de dentro. As duas têm o mesmo rosto. De observada ao longe no início (no filme dentro do filme) ela agora ocupa a centralidade na tela, em um espelhamento impreciso.
Para além da ideia de espelho, o que se apresenta é a figuração de um duplo, um doppelgänger psicanalítico, esse dispositivo de autoproteção psíquica num desdobramento subjetivo. Essa ideia de duplo vai ao encontro do que W.E.B. Du Bois (1865–1963) denomina de “dupla consciência” dos sujeitos negros diaspóricos: o reconhecimento da autoimagem viria do esforço da identificação com uma perspectiva de negrura que se coloca, necessariamente, em permanente diálogo e/ou conflito com a imagem externa feita pelo fictício sujeito universal.
O apartamento, com seu dentro e seu fora, é o espaço social dos limites para o seu corpo negro. O fora é a condição de existência de quem não é o universal deste mundo. Há um acúmulo desse território na figuração da mulher que estava na rua — a mise-en-scène apresenta e reitera o estereótipo da subalternidade nela. Mas o fora nesta narrativa de Passô é, sobretudo, um lugar no conjunto de parâmetros modernos, coloniais, universais, enfim.
A mulher de dentro é a figuração de uma caricatura de pertencimento à subjetividade hegemônica. Ela é consciente da sua performance de sofrimento no confinamento decorrente da pandemia, é crítica em relação a si mesma e está em negociação com os parâmetros deste mundo da universalidade. Mas ela é um dos lados dessa subjetividade negra apontada por Du Bois, e é ela doppelgänger.
A tessitura das duas presenças e dos dois espaços se constrói na mise en abyme estruturada por Grace Passô. O duplo/dentro que vê seu eu/fora numa encenação — o filme dentro do filme — se depara com um tipo de “esplendor do acontecimento” deleuziano para nós, espectadoras: a contundência da presença de um sujeito aparentemente desterritorializado aponta para a fragilidade a própria noção de territorialidade. A alegoria de pertencimento/não-pertencimento criada no filme se constitui num gesto poético de autocriação que Passô opera. Ao elaborar as camadas de ficcionalidade na coexistência dos traumas da colonialidade, ela aponta também para a fissura na estrutura que sustenta os parâmetros geradores do que atravessa os tempos e os espaços a nos a-sujeitar.