Mat. Capa 2 Luísa Vasconcelos dezembro.21

 

Palavras abrem mundos. Os poetas sempre souberam disso, e agora também todos nós sabemos. Desde o início de 2020, uma palavra abriu para nós uma nova experiência com o mundo: pandemia. Toda doença é também palavra, e nela carrega sentidos sem os quais seria uma outra coisa. Não é segredo algum, por exemplo, que, na década de 1980, a palavra aids e a identificação dos portadores do vírus HIV como aidéticos indicavam mais do que uma simples condição médica, trazendo consigo uma mistura de medo e preconceito: medo do contágio e preconceito com os então chamados “grupos de risco”, como os gays. Quando a doença é nova, a palavra é um signo do próprio estranhamento. O processador de texto mais usado entre nós em computadores, o Word, ainda sublinhava de vermelho a palavra coronavírus em 2020, apontando que se tratava de algum erro ortográfico. Não era. Era a palavra abrindo mundos.

No caso da palavra pandemia, contudo, talvez seja mais acertado dizer que seus efeitos não abriram mundos; eles nos fecharam em um mundo reduzido e privado. Não deixa de ser curioso que na palavra pandemia haja este pan, que é um velho conhecido da filosofia. Este pan diz: o todo. Em nosso caso, diz: a totalidade do mundo globalizado que se descobriu mais globalizado do que pensava. Sim, a China é logo ali. Se, como parece, a pandemia de covid-19 determinará a feição do século XXI, é porque, com ela, definitivamente nos tornamos pan. O mundo é um só. Mas o descobrimos de um modo paradoxal: tendo que nos fechar cada um em sua casa ou em sua bolha, ao menos aqueles que tinham condições para tal. Nunca estivemos tão próximos e tão distantes, simultaneamente, tão juntos e tão separados. Por isso, a palavra pandemia trouxe o todo ao seu aperto, mais nos fechando em nós do que nos abrindo ao mundo.

Disso, de certo modo, já sabíamos, e o sabíamos justamente pela palavra. Pois a pandemia atual é a pandemia de um vírus. E qual era a palavra que se tornara, há anos, tão comum em nosso vocabulário, senão esta? Havia os temidos vírus dos computadores, que poderiam destruir arquivos em segundos. Tinham os desejados vídeos transmitidos de modo tão veloz que seriam virais, graças aos aparelhos de comunicação digital. Esses “vírus” — que agora, por causa da pandemia, talvez precisem carregar essas aspas quando são escritos para destacar seu valor metafórico — já circulavam em nossa linguagem muito antes de o real vírus corona tornar-se o elemento dominante do mundo. Os vírus que corrompem arquivos e as imagens que viralizam (o Word tampouco reconhece esta forma verbal da palavra “vírus”, e a sublinha de vermelho) anteciparam uma lógica dominante do mundo que vivemos e que é afinada com a circulação viral.

Globalização e pandemia estão enlaçadas. Não fosse a primeira, a segunda talvez não tivesse ocorrido, ou certamente seria mais lenta. Foi preciso que um pequeno mercado em uma cidade na China, a agora famosa Wuhan, estivesse suficientemente próximo (ligado e conectado) do resto do mundo, em uma complexa rede de circulação que engloba pessoas, mercadorias e informações, para que aquilo que poderia ter sido uma epidemia se tornasse uma pandemia. Nada mais está distante de nada. Se essa verdade era conhecida racionalmente faz tempo, agora ela foi sentida, literalmente, no ar. O vírus espalhou-se na velocidade moderna e com a aceleração contemporânea.

O escritor turco Orham Pamuk está há anos trabalhando em um romance histórico ambientado em 1901, durante a peste bubônica que matou milhões de pessoas na Ásia. Ele concluiu, pesquisando epidemias, que nossas reações, de lá para cá, mudaram pouco: autoridades negam a gravidade da doença, como ao declarar que é apenas uma “gripezinha”; culpa-se um inimigo estrangeiro, como a China; e boatos falsos se espalham, como as fake news. Pamuk, contudo, observou uma grande diferença, passados mais de cem anos. É que antes nunca se sabia exatamente a eventual proporção global que uma epidemia podia ter, pela falta de meios tecnológicos de comunicação rápida. Pessoas se encontravam nas ruas e, embora guardassem distância por medo da contaminação, gritavam para as do outro lado da calçada, a fim de saber o que elas podiam dizer sobre a situação nos seus bairros e cidades. Era o único meio de buscar dados sobre as doenças e os eventuais cuidados a adotar. Hoje, todo mundo acompanha a escala global da doença, com notícias instantâneas. Se antes era mais imaginação, agora é informação.

Por isso, a pandemia de covid-19 veio acompanhada pela pandemia das palavras sobre a covid-19. Nunca se falou, escreveu e publicou tanto sobre uma doença. Tanto o conhecimento jornalístico quanto o saber acadêmico pronunciaram-se desde o começo da pandemia, e a arte e a literatura não parecem ficar atrás. Os autores foram tão ágeis que seus primeiros textos datam de antes da própria pandemia. São de quando ela ainda era epidemia. O seu aspecto global não tinha sido decretado pela Organização Mundial da Saúde. Desde fevereiro de 2020, intervenções apareceram nas mais variadas formas: artigos, entrevistas, livros, diários, conferências. Enquanto escrevo este ensaio, certamente há mais textos sendo publicados ao mesmo tempo. Para fazer uma comparação forçada, é como se a pandemia do coronavírus fosse acompanhada por uma outra espécie de pandemia, que é da linguagem e da sua proliferação viral.

O filósofo Friedrich Nietzsche dizia, no século XIX, que não há fatos, só interpretações. Isso vale inclusive para a pandemia: ela não é um fato objetivo e empírico. Basta pensar, precisamente, na palavra: o que faz certa doença ser considerada epidêmica ou pandêmica? Há critérios, evidentemente, mas eles apenas fundam a interpretação, não a eliminam. Tais critérios aliam dimensões naturais e culturais, científicas e sociais, médicas e políticas. Nada há de errado nisso. Fatos brutos e em si são insignificantes. O que os torna significativos é a interpretação. Não fosse ela, poderíamos ter mortes e, mesmo assim, não haver pandemia. Pandemia é a interpretação explicativa para o que vivemos desde março de 2020 e ainda agora, mesmo com sinais de que, em breve, a experiência seja renomeada e possamos dizer que não passamos mais por uma pandemia.

O próprio significado da experiência da pandemia esteve em disputa pela escolha da palavra que nomearia o vírus. Tome-se, como exemplo, o que disseram três filósofos contemporâneos sobre a pandemia: Slavoj Žižek, Alain Badiou e Jean-Luc Nancy. Os três são expoentes do pensamento do século XXI e se manifestaram diversamente sobre este momento presente. Žižek acreditou que a pandemia seria o golpe mortal para o capitalismo nacional, explicitando a necessidade de organismos internacionais para o governo de um mundo globalizado e o imperativo da preocupação com a justiça social. Para ele, a pandemia é uma oportunidade quase revolucionária de transformação. Badiou considerou que houve alarde exagerado por parte dos filósofos discutindo a pandemia, como se ela fosse de fato um acontecimento inédito na história, e não somente um sério problema sanitário. Por sua vez, Nancy suspeitou que a dimensão inescapavelmente coletiva da pandemia, ao nos tornar todos iguais diante do vírus, poderia nos inclinar a reconstituir laços comunitários e redes de solidariedade entre os indivíduos.

O que chama a atenção é que, como o nome franqueia o sentido da experiência, cada um desses filósofos chamou o vírus de um modo diferente, que já favorecia o significado que gostariam de dar a ele. Žižek fala de “novo coronavírus”, e com isso ressalta que se trata de um evento original para nossa história, portanto capaz de levá-la a uma mudança, através da qual o capitalismo, mais cedo ou mais tarde, estará morto. O novo da experiência está inscrito no nome do vírus. Badiou fala de “SARS-CoV-2”, a fim de evidenciar que se trata do segundo tipo de um mesmo vírus, afinal já houve o SARS-CoV-1, e isso sem mencionar a aids ou o ebola, epidemias com as quais nós convivemos em um passado recente; em suma, a suposta novidade da pandemia atual seria uma falácia que se amparou mais em fabulações do que em razões, já que há precedentes para o que se passa agora. Nancy, por sua vez, falou de um “comunovírus”, uma vez que a contaminação imposta na pandemia seria essencialmente igualitária, ou seja, atinge a comunidade como um todo, ao invés de ter a lógica hierárquica e desigual da monarquia, simbolizada pela coroa; portanto, o melhor seria não frisar, pelo termo “corona”, a coroa que se faz presente no vírus empírico, e sim o quanto ele nos expõe em comum.

Nenhuma palavra, portanto, somente designa inocentemente um fenômeno. É ela que abre o sentido da experiência que temos. Se falamos de novo coronavírus, temos um momento inaudito em nossa história. Se falamos de SARS-CoV-2, o que temos é apenas uma sequência corriqueira na qual surgiu mais um vírus, e não um evento. Se falamos de comunovírus, temos uma oportunidade de recobrar laços políticos em comum. Por isso, a pandemia de covid-19 não é um fato; é uma interpretação, que varia a depender da linguagem pela qual sua experiência é nomeada. O filósofo Martin Heidegger, em uma frase famosa, afirmou que “a linguagem é a morada do ser”. Pois bem: o que a pandemia é mora na linguagem, daí que não apenas as ações, mas também as palavras, sejam tão decisivas no momento que vivemos. Elas conferem sentido à realidade bruta, e por vezes brutal, o que a torna passível de ser discutida e pensada.

Por isso mesmo, no caso da administração pública da pandemia no Brasil foi tão grave o emprego das palavras. Para além da incompetência e da ignorância na lida com a doença no país, houve um descalabro da linguagem. Muitas retrospectivas apresentaram os comentários, entre o escárnio e a morbidez, do presidente Jair Bolsonaro. Diminuiu a gravidade da pandemia, ao chamá-la de gripezinha. Eximiu-se das responsabilidades, ao perguntar: “E daí?” Ironizou as mortes, ao exclamar: “Não sou coveiro”. Também assim se constitui a pandemia de palavras sobre a pandemia do vírus. Palavras que mais parecem, elas sim, vírus que contaminam a vida da própria vida. Como se não fosse suficiente o convívio com o medo e as mortes, foi preciso aturar palavras de desdém diante do luto de milhares de pessoas e que só atrapalharam o reconhecimento da complexidade da situação, fomentando conflito ao invés de acolhimento.

 

Mat. Capa 1 Luísa Vasconcelos dezembro.21

 

Tentar compreender a pandemia, pela linguagem e com a linguagem, não é apenas, nesse aspecto, uma operação cognitiva, como se fosse assim possível defini-la precisamente e pronto. Tentar compreender a pandemia é um modo de nos sentirmos menos estrangeiros em um mundo que se tornou inóspito. É uma tentativa de reconciliação com uma realidade que explodiu qualquer organização subjetiva que tínhamos para lidar com a vida e a morte, a saúde e a doença. Recorrer às palavras, neste contexto, é a esperança de que, se elas não forem instrumentos diretos de interferência objetiva sobre o real, são ao menos o tecido no qual ele ganha sentido e pode se tornar mais habitável. Falar e escutar ou escrever e ler são atos pelos quais o absurdo e as dores, se não deixam de espantar e fazer sofrer, podem ao menos ser partilhados.

É como se estivéssemos tentando dar forma a um sentimento, mas também contar um pouco para alguém o que se passa. Como diz a filósofa María Zambrano (1904–1991), escrever é defender a solidão em que se está; é uma ação que brota apenas de um isolamento afetivo, mas é um isolamento comunicável. Quando se escreve, tenta-se mostrar o que se descobre em uma solidão que, graças à leitura, tornar-se-á compartilhada. Não deixa de ser solidão, mas se divide. Nenhuma tristeza é tão profunda, se pode ser partilhada; e nenhuma alegria é tão intensa quando não se pode dividi-la. Por isso, o forçado isolamento dói e a solidão dói mais ainda. Se a solidão é uma dor, então, como toda dor, ela será suportável na medida em que soubermos contar uma história sobre ela. Narrar o presente pode ser tão importante quanto imaginar o futuro. Escrever é tornar-se contemporâneo do que se passa através das palavras e junto às palavras.

Isso explica, aliás, que um romance como A peste, do filósofo existencialista Albert Camus, tenha chegado na lista dos livros mais vendidos durante a pandemia. Depois da recepção na época do seu lançamento, em 1947, o livro, que narra ficcionalmente o surto de peste bubônica em uma cidade da Argélia, passou décadas dormente e foi acordado pela pandemia. Entre seus novos leitores, esteve Luiz Henrique Mandetta, quando ainda ocupava o cargo do Ministro da Saúde e vivia às turras com Bolsonaro. Os embates e as discordâncias com o presidente levaram à sua demissão, seguida por uma declaração, entretanto, surpreendente, na qual dizia que Bolsonaro era “extremamente humanista”. Por que Mandetta estaria aparentemente elogiando o presidente com quem travava uma duradoura e intensa disputa até então? Para entendê-lo, é preciso admitir que toda palavra tem mais de um sentido, inclusive “humanismo”.

Os humanistas, no livro de Camus que Mandetta lia, são aqueles que não acreditam nos flagelos, como a peste. O adjetivo parece designar menos a solidariedade entre pessoas do que uma convicção no poder humano sobre tudo o mais. Os humanistas não acreditam que o flagelo está à altura do homem, então dizem que ele é irreal, um sonho mau que vai passar. Só que não passa, são os homens que passam. Logo, Mandetta estava acusando Bolsonaro de minimizar a pandemia e ignorar que as forças humanas, no caso, estavam, pelo menos por ora, em desvantagem. Na filosofia do século XX, a crítica ao humanismo teve grandes representantes. Nenhum deles, evidentemente, era contra o sentimento de solidariedade. O que perceberam é que, desde sua origem no Renascimento, o humanismo atrelou-se ao antropocentrismo. Ou seja, o humanismo é também a convicção de que o ser humano é o centro do universo. Portanto, um vírus colocar em xeque o poder do homem não deixa de ser um baque para o humanismo.

O mais conhecido filósofo a criticar o humanismo foi Heidegger. Para ele, a grandeza do homem não consistia na posição de sujeito que, como o “déspota do ser”, submete todos os outros entes, tratados como objetos. Seria, antes, o caso de compreender uma relação na qual somos inspirados pelo ser, não seus senhores. Estamos lançados no mundo, não o dominamos, como se decidíssemos seu sentido. Heidegger escrevia isso em 1936. Michel Foucault foi mais longe. Termina As palavras e as coisas, de 1966, falando da morte do homem. Não tinha nada de apocalíptico nisso. Tratava-se do fim da autorreferência moderna do ser humano, para a qual tudo que importa é o conhecimento de nós mesmos. Com o fim desse humanismo, poder-se-ia “apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia”. Não será que a pandemia, tendo origem em um vírus da natureza, forçará que nós passemos a compreender nossa relação com tudo o que não é humano sem nos concebermos no centro ou no alto? Será que a pandemia servirá de lição de humildade a esse humanismo?

Em suma, voltando a Bolsonaro: um presidente que enaltece torturadores e simpatiza com a ditadura poderia ser considerado “humanista” (o que provavelmente surpreenderia até ele próprio) por causa da arrogância autocentrada através da qual supõe um privilégio do humano sobre todo o mais que existe, de acordo com este sentido filosófico crítico que a palavra ganha em autores como Heidegger, Camus e Foucault. Neste sentido, aliás, a surpresa que nos assolou desde o começo de 2020 torna-se compreensível: na sociedade que situara o poder humano no topo, como esperar que um reles e invisível vírus pudesse tudo paralisar? Nossa imaginação gosta de se perguntar sobre se estamos sozinhos no universo, pensando nos extraterrestres, mas pouco atenta para as formas de vida que, na própria Terra, fazem-nos companhia, como um vírus. Elas sempre estiveram conosco e nem é novidade que tragam doenças graves.

Na história, data de 541 d.C. a primeira pandemia de que se tem notícia. Originou-se no Egito, atingiu a cidade de Alexandria e a Palestina e chegou até Constantinopla. O historiador Procópio escreveu que o movimento da pandemia parecia dotado de intenções conscientes, como se temesse que alguma parte do mundo escapasse. Nenhum dado da época é exato, mas se fala em 10 mil mortos por dia, embora a maior parte das pessoas tivesse sintomas leves. E a peste foi recorrente por dois séculos. Pouco sabemos dessa história, pois nosso antropocentrismo nos faz estudar os eventos no tempo privilegiando os que têm causas nitidamente humanas e sociais, como guerras e revoluções. Quando pensamos no início do século XX, sabemos muito sobre a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa, mas quase nada sobre a gripe espanhola. Contudo, como lembra a pesquisadora Elizabeth Kolbert, a história não é apenas feita por humanos, mas também por micróbios.

Na literatura, desde as tragédias gregas havia peste. Era o que acometia a Tebas de Édipo, na peça de Sófocles. Mas não é peculiaridade da antiguidade. Na era moderna, com Shakespeare, uma epidemia desempenha papel relevante em Romeu e Julieta (1597). Frei João era o emissário incumbido de avisar a Romeu que a morte de Julieta era uma farsa, mas não consegue entregar o recado pois há uma peste em curso e os guardas o impedem de chegar à cidade. O resto é conhecido: Romeu se suicida achando que sua amada faleceu e ela, após acordar, faz o mesmo. Uma epidemia foi responsável pela maior tragédia amorosa da ficção ocidental. Mais tarde, Goethe reclamou que o único assunto da sua época era um surto de cólera. E, embora inteiramente ficcional, a epidemia volta às páginas da literatura com o agora já clássico A peste, de Albert Camus.

Trata-se de uma filosofia existencial e menos sociológica do que a de hoje. O livro não descortina o futuro nem prescreve o que fazer, mas tenta entender os sofrimentos desse longo exílio: a separação de entes queridos e o medo da morte. Camus chama de exílio a emoção diante da pandemia: um vazio constante no qual desejamos irracionalmente voltar atrás ou acelerar a marcha da história para passar logo. Mesmo as expectativas mais pessimistas sobre a longevidade da epidemia logo levantam a suspeita: por que não mais? Sempre pode vir a ser mais. Nessa hora, desmoronam a coragem, a vontade, a paciência: as virtudes que precisamos. Camus afirmava que as pessoas ficam desamparadas em dias sem rumo. Inimigos do passado, impacientes com o presente e privados de futuro, estaríamos como prisioneiros. O exílio, porém, é em casa, escreve Camus. O nosso também. Exilados em geral o são para fora; nós, contudo, estamos exilados para dentro. Não nos foi tirada a pátria nacional ou a língua, mas o mundo e a convivência plural que lhe dá graça. No entanto, em dezembro de 2021, algo parece diferente e, pela primeira vez, há a expectativa do fim da pandemia. Com o avanço da vacinação, há a possibilidade de que, em 2022, o mundo se abra novamente para nós. O que virá?

Em quais condições a vida valeria a pena no mundo por vir? Os afetos envolvidos aí são medo — de que essa vida seja ruim, submetida à doença natural, ao autoritarismo político, à vigilância digital, às restrições de exceção — ou esperança — de que a vida seja boa, com solidariedade, sentido de comunidade, supressão do capitalismo e do individualismo. Os sinais são trocados, mas tanto no medo quanto na esperança o futuro parece uma projeção independente de nós. O pessimismo e o otimismo são distintos, mas há algo em comum, pois nos situam, talvez passivamente, na espera do futuro.

Em um belo e breve ensaio que escreveu após sair do hospital onde esteve contaminado com o coronavírus, o filósofo Paul B. Preciado perguntou-se também: em que condições a vida valeria a pena, qual futuro faria sentido para a existência? Logo, entretanto, acrescentou que, antes de achar resposta para essa pergunta, escreveu uma carta de amor. O acréscimo, aqui, é tudo. Pois amor é um afeto presente e ativo. Tanto é assim que Preciado age no presente: escreve. Há palavras. Há uma carta. Há comunicação com outro. Toda carta endereça-se ao futuro, mas é um ato presente que ativamente o procura no tempo. Toda carta endereça-se ao longe, mas é um ato próximo que ativamente o procura no espaço. Desconfio que alguns de nós, como Preciado, poderemos escrever nossas cartas. Quem sabe nelas encontraremos “outras palavras”, como já cantou Caetano Veloso? Outras palavras são também outros mundos. Que venham.