Mat.Capa 1 Juliano Soares

Morangos mofados, o mais conhecido de seus livros, ocupa um lugar simultaneamente estratégico e dramático. Publicado às vésperas da explosão da pandemia da aids no Brasil, que se faria presente em todos os escritos posteriores de Caio e causaria sua morte na segunda metade dos anos 1990, era um livro que encerrava um ciclo existencial, era uma despedida dos anos 1970. Entregue pronto em 1980, o livro demorou dois anos para ser publicado. Quando isso aconteceu, Caio já estava embalado na escrita de Triângulo das águas, de 1983, ao qual se seguiriam os contos consagradores de Os dragões não conhecem o paraíso, de 1988.

Em carta dirigida ao escritor e amigo José Márcio Penido, datada de 22 de dezembro de 1979, Caio dá notícia que acaba de escrever o conto que depois dará título ao livro. Respondendo às angústias de José Márcio, que fraqueja na vontade de escrever diante das exigências práticas da vida, Caio de certa forma verbaliza a questão central do livro Morangos mofados: o impasse produzido pelo conflito entre uma exaurida vida boêmia, alternativa, de revolução, de sexo-drogas-rock n’roll – o desbunde – versus a perspectiva de uma vida careta, presa ao expediente de trabalho por necessidade de sobrevivência. “Agora sou profissional”, escreveu por essa época a poeta Ana Cristina Cesar, amiga de Caio. Era uma transição geracional, que correspondia a uma nova época, percebida como menos inclinada aos radicalismos da sensibilidade. Ana C., aos 31 anos, em 1983, optaria pelo suicídio. Caio F., com 31 em 1979, dobrou a aposta na vida e na vida para a escrita.

Dobrar a aposta na escrita, enfrentar seus fantasmas, encarar o sofrimento que essa aposta pode trazer, lutando contra o desalento. Caio evoca como um triunfo ou galardão o que acredita ter sido a infelicidade de vida de Clarice Lispector. Citando R.D. Laing, um psiquiatra guru da contracultura dos anos 1970, exalta o sentimento de glória interior (sic) que a literatura pode trazer. Esta é a mensagem que Caio passa, tanto na carta para José Márcio quanto no conto Morangos mofados. O conto encerra o livro com o protagonista dizendo sim à vida. É o primeiro e único momento em que o livro se mostra abertamente positivo, confiante. Contrasta fortemente com Os sobreviventes, que praticamente abre o volume, depois de um curto e inconclusivo “diálogo” inicial. É o contraste entre a indefinição frente ao futuro diante da sensação de vazio no presente (n’Os sobreviventes) e a decisão de entregar-se ao futuro contra o sofrimento e o mal-estar no presente (em Morangos mofados).

Esse contraste confere a moldura dramática do projeto todo. Uma dramaticidade (no sentido de conflitividade) que se repete, de diferentes formas, em cada um dos demais contos. No entanto, os elementos dramáticos no livro não podem ser limitados às dualidades, como indica sua estrutura tripartite. Há o mofo, há os morangos e há os morangos mofados, títulos das três partes em que se divide o livro. Mais que metáforas, os títulos são alegorias. A vida acontecida que mofou, a vida morango doce/azedo acontecendo, com todos os seus percalços e violências e finalmente, a vida ainda morango, que tem que seguir, quer seguir, mas para seguir precisa carregar todos os seus mofos.

Há 40 anos, o impacto exercido pelo livro veio muito da força de verdade do conteúdo explicitamente gay, nos três contos antológicos que são verdadeiros libelos contra a homofobia e que fizeram de Morangos mofados um clássico literário e um cult da cultura queer (cuir). Refiro-me à Terça-feira gorda, Sargento Garcia, Aqueles dois. Já Os sobreviventes, balanço geracional que trata de sobreviventes da repressão política e da loucura das drogas, é também registro da experiência da bissexualidade, no sentido simples de transitar da hétero para a homossexualidade, vivida pelos protagonistas do conto.

No livro como um todo, cada conto tem seu narrador ou personagem protagonista que pode ser masculino gay ou hétero, feminino ou masculino/feminino: independentemente do gênero ou da crise de gênero tematizada, a voz enunciadora subjacente a todos os contos é GLS ou LGBT. Hoje diríamos LGBTQI+. Em Morangos mofados, o clima é de enfrentamento da heteronormatividade dominante, estigmatizante. Muitos anos depois, no romance Onde andará Dulce Veiga, de 1990, balanço de vida de um agora quarentão, o caráter sufocante e agressivo da dominante heteronormativa será relativizado. Assim como na novela Pela noite, do livro Triângulo das águas, a ficcionalização da vivência homossexual assume um vetor positivo, embora não resolvido nem pacificado, levando do homoerotismo à homoafetividade.

Para o reencontro com Morangos mofados, parti de um close reading, uma leitura de minúcia, como se estivesse percorrendo o livro pela primeira vez. Puxar algum detalhe significativo, nas dimensões simbólica e formal. Chamou-me então atenção uma cena recorrente nos contos do livro. Trata-se da cena do protagonista ou da personagem pegando um cigarro, acendendo-o e, talvez mais importante, batendo as cinzas em qualquer lugar ou em cinzeiros cheios, lotados de guimbas, cuidadosamente focalizados na escrita.

No conto Pela passagem de uma grande dor o solitário Lui recebe, tarde da noite, telefonema de uma amiga, ansiosa por vê-lo, convidando-o para irem juntos a um bar ou cinema ou que ele vá visitá-la, tomarem vodca, quem sabe, “mas não tenho limões”. Lui resmunga sucessivos nãos. “Já passa das 10”, ele diz, definitivo. A conversa entre os dois é angustiante para quem lê. O telefonema é, na verdade, um pedido de socorro, não atendido por Lui. Ela precisa do ombro do amigo, às vésperas de um aborto. Ele se faz de desentendido e esse fazer-se desentendido move o desenrolar da narrativa. O ritmo do jogo entre o tentar ser entendida da amiga e o fazer-se de desentendido de Lui é pautado pelo ato de fumar, dos dois lados da linha. O cinzeiro cheio de cinzas e pontas queimadas surge na narrativa como índice metafórico da conversa. No início, indica a desarrumação do apartamento de Lui. Depois, indica o desinteresse de Lui. Ele distrai e confunde a amiga, enquanto se distrai produzindo desenhos aleatórios com as cinzas do cinzeiro que jogou sobre a capa de um disco, cobrindo as imagens de duas figuras humanas.

A indiferença e a impaciência de Lui são de uma crueldade e egoísmo tremendos. Nesta e em outras narrativas, o ato de fumar é uma figuração, uma alegorização do modo como duas pessoas se comunicam no universo claustrofóbico dos pequenos apartamentos em grandes cidades, duas solidões fumantes. Pode-se dizer que os contos de Morangos mofados são mais sobre incomunicabilidade e desencontro, do que propriamente sobre o desbunde ou a contracultura. Em Caixinha de música, deparamo-nos novamente com uma situação em que uma figura feminina se deixa levar por suas expectativas em relação a um homem, neste caso recebendo morte violenta. Um conto sobre feminicídio, alguém poderia alegar e teria razão. O essencial é que Caio expõe o ritual masoquista do poder misógino sem dó nem piedade, com a intensidade de uma confissão.

A violência misógina é irmã gêmea da violência homofóbica, exposta com crueza nos três contos acima mencionados. Em Sargento Garcia, a iniciação homoerótica do narrador, ainda adolescente, é também sua iniciação como fumante no mundo dos machos, um mundo no qual o jovem está destinado a ocupar o papel do “viado”, da “bicha”. O momento de violação do jovem pelo fálico e sedento sargento predador é associado ao autoritarismo violento do pai militar. O adolescente pede um cigarro. O violador acede, cede, acende. No trecho que se segue, a memória da violência do pai se funde com a força do desejo até então adormecido. Vale a citação: “Tossi. Meu pai com o cinturão dobrado, agora tu vai me fumar todo esse maço, desgraçado, parece filho de bagaceira. A mão quente subiu mais, afastou a camisa, um dedo entrou no meu umbigo, apertou, juntou-se aos outros, aranha peluda, tornou a baixar, caminhando entre as minhas pernas”. E bem adiante, consumado o ato, a frase que fecha o conto é decisiva: “Amanhã, decidi, amanhã sem falta começo a fumar”. Começar a fumar é no conto o rito de passagem para tornar-se gay masculino num mundo misógino e homofóbico.

Passados 40 anos do lançamento impactante, Morangos mofados pode produzir estranhamento no leitor de hoje tanta fumaça de cigarro, tanto cinzeiro cheio, tanta carga simbólica revestindo um tipo de ato e de gesto bem mais raro hoje em dia, expulso para o lado de fora dos bares e clubes, assim como das festas de apartamento. Solidões fumantes: sempre a dois, seja na interlocução falha, seja na fantasia de um amor entre iguais apenas imaginado e dissolvido na chuva torrencial (vide Além do ponto), seja, finalmente, na figura do duplo (doppelgänger) – a imagem duplicada de si mesmo, uma figura frequente em toda a obra de Caio. A meu ver, Caio trabalha a figura do duplo imaginário buscando redimi-la, mantendo-a ambiguamente dentro e fora do tempo-espaço da inquietante estranheza, noção herdada das tradições literária e psicanalítica, em que o fantasma de si próprio é figura ameaçadora. O doppelgänger nas narrativas de Caio está mais para anjo da guarda que para encosto. É o fantasma companheiro, às vezes portador da esperança utópica de um aquietar-se.

Mas o apaziguamento é apenas utópico ou temporário. Assim como em Clarice Lispector e Hilda Hilst, suas referências mestras, a literatura de Caio não veio para aquietar. E isso se dá no nível mesmo do modelo de escrita por ele praticado. As narrativas de Morangos mofados surfam numa escrita em fluxo de pensamento, associação de ideias e metáforas, uso intensivo do discurso indireto livre, que marcou a primeira fase das obras de diversxs autorxs de sua geração e inserem-se na tradição moderna de um Joyce, uma Virginia Woolf. Citemos três desses autores coetâneos de Caio que se nutriram desse modo de escrita: Sérgio Sant’Anna, Ignácio de Loyola Brandão, Nélida Piñon. A lista completa seria grande.

Já a temática do doppelgänger, por flertar com o insólito e o fantástico, nos lembra um José J. Veiga, um Murilo Rubião, assim como os autores hispanoamericanos que marcaram a formação de nossa geração 1970 – Garcia Márquez, Cortázar. No caso de Caio, o virtuosismo desse tipo de escrita vertiginosa, puro entregar-se à criação de um estilo, combina-se ao elemento visceral, à dramaticidade introspectiva de um corpo desejante em convulsão. Como ele recomenda na carta ao amigo José Márcio: para fazer literatura “tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te”. Não é para qualquer um/a encarar esse desafio, na arte ou na vida. Pois o difícil é acomodar a exigência de estilo e imaginação ficcional à força de revelação da verdade que toda boa prosa literária deve ter.