Deparando-se com alguém que era a sua “semelhança mais semelhante”, Sósia, personagem da comédia Anfitrião, de Plauto, observa: “Quando o examino e reconheço a minha figura, tal e qual eu sou — tenho-me visto muitas vezes ao espelho —, nada há mais semelhante a mim mesmo.” Ou seja, nenhuma “semelhança mais semelhante” era possível entre dois homens se não fosse por meio de uma imagem refletida no espelho. Para Jorge Luis Borges, os espelhos são “abomináveis” porque “multiplicam o número de homens”. O escritor argentino ainda observa que no Relato de Arthur Gordon Pym, de Edgar Alan Poe, em passagem que transcorre na Antártica, as pessoas se olham no espelho e desmaiam. Não só: ao escrever um artigo sobre como decorar um quarto, Poe sugere que os espelhos tenham uma dada disposição para que “uma pessoa sentada não se veja repetida”.
Apesar de tomarem o espelho como algo “abominável”, tanto Borges quanto Poe não se aperceberam que as pessoas multiplicadas pelos espelhos são, como diria Evaldo Coutinho, fatalizadas por uma efêmera duração: a do tempo da sua própria exposição diante deles.
Porém, do mesmo modo como os espelhos duplicam a realidade empírica, os sonhos que nascem do sono também duplicam pessoas, coisas e inventam umas tantas outras. A vida não é sonho, como crer Segismundo, personagem de Calderón de la Barca, os sonhos, sim, é que encerram a vida e duplicam-na. “Os sonhos, sonhos são”. Já houve mesmo quem afirmasse que durante o sonho aquele que sonha é o autor, a peça, os atores e o teatro: tudo ao mesmo tempo. Ao sonharmos, sentenciava Borges, “somos, de alguma maneira, dramaturgos”. Mas assim como os espelhos, os sonhos, enquanto ato de dramatização, são também fatalizados por uma efêmera duração: a do tempo do sono. A diferença entre o espelho e o sonho, é que o primeiro, dependendo da sua dimensão, multiplica um ou mais homens, permitindo que eles possam, ao mesmo tempo, compartilhar coletivamente as suas “semelhanças mais semelhantes”. Já os sonhos são existenciados apenas por quem os sonha; narrá-los é, não raras vezes, uma aventura malograda. Quando tentamos relembrar uma narrativa onírica infinitamente longa e rica de imagens, situações e sugestões, as palavras se revelam insuficientes, estão aquém de traduzir aquela experiência única e intransferível.
Espelhos, sonhos, fantasias, travestirmos... Podíamos continuar a falar de todas as tentativas voluntárias ou involuntárias que são perseguidas pelos homens para dilatar a realidade empírica. No entanto, essas ações e expressões, por mais que se queiram resistentes e perpetuáveis, se fatalizam à efêmera duração da sua cursividade. Dessa forma, parece que só há um modo de sublevar essas ações e expressões, valendo-se dos procedimentos que nos foram ensinados pelo bardo quinhentista: compondo “obras valerosas”, pois é por meio delas que os homens vão se libertando “da lei da morte”.
A literatura e, de forma geral, a arte, tanto busca duplicar a realidade empírica quanto procura ser a mais resistente e perpetuante resposta dada pelo homem ao que ele imputa como as “imperfeições” da criação. Todo escritor se acredita, no fundo, um pequeno Deus; alguém que pode, por meio da palavra, recriar os passos do Gênesis. Afinal, no princípio era o Verbo. No entanto, se a literatura dilata a realidade empírica do mesmo modo que os espelhos, os sonhos, as fantasias e os travestirmos, o que faz um dado texto ser tomado como literário? Por que a literatura, apesar de também duplicar a realidade empírica, não se confunde com as ações proporcionadas pelos espelhos, os sonhos, as fantasias e os travestirmos? Por que essa experiência não se fataliza à efêmera duração da sua cursividade? Vamos por etapas.
Se não temos dúvidas quanto ao estatuto literário de alguns gêneros textuais, já que eles são trans-históricos — como o romance, a epopeia, o conto, a novela, a poesia e suas formas fixas —, ficamos sempre na dúvida em conceituar outros, como a crônica, o sermão, os textos bíblicos, as cartas etc. Toda essa dúvida fica mais grave quando essa reflexão se dá em um país um tanto que avesso à reflexão teórica, que aposta na ideia de que um texto é literatura porque foi convencionado como tal ou se aprendeu dessa forma na escola (ou na vida) e assim é, ou deve ser, se lhe parece.
Vamos ao desafio dentro do espaço que me foi dado.
De todas as definições que venho colhendo sobre o que é literatura, nenhuma, stricto sensu, parece dar conta de tal empreitada. Todos os conceitos, por mais sedutores que pareçam, deixam furos teóricos. Uns, porque se firmam em cima de pressupostos muito etéreos, a exemplo de tomar literatura pela “expressão linguística apurada” ou pela “atração envolvente do estilo”; outros, porque buscam definir a linguagem literária por seu caráter denotativo: a chamada literariedade do texto; por fim, há aqueles que defendem o caráter receptivo do texto: literatura é aquilo que o leitor acha ou acredita ser literatura. Se cada um desses conceitos tem sua validade e atende um determinado conjunto de gêneros textuais, eles, por sua vez, se revelam insuficientes para encerrar a totalidade das obras que são tomadas como literatura. Encontramos o uso de recursos retóricos em todo e qualquer texto (científico ou literário), assim como a linguagem denotativa não é privilegio da literatura (vide as obras filosóficas ou religiosas) e muito menos o leitor é, como se acredita, tão autônomo assim para dizer o que é ou o que não é literatura.
Mas, então, quais elementos definem esse conjunto de obras, tornando-as frações de uma mesma família? Creio que são quatro as partes que, em conjunto (e não individualmente), definem um texto literário: a intencionalidade do autor (o estatuto histórico-temporal da obra); a ficcionalidade do texto (a unidade dos gêneros literários); a verdade e a realidade textuais (o caráter imanente do texto); os significados e significações do texto (sua condição trans-histórica, seu estatuto artístico). Vamos por etapas.
Primeiro: a “intencionalidade” do autor. Vamos nos ater ao que se denomina, dentro dos chamados “atos de fala”, de “atos ilocucionários”, ou seja, os atos de fazer enunciados. No caso de um escritor literário, não nos interessa a sua intenção ilocucionária última, isto é, o que ele quis que se entendesse com o seu texto ou enunciados (como nunca vamos saber qual é a “verdade” derradeira do autor, voltamo-nos, enquanto leitores, para a análise e interpretação da sua obra), mas da sua intenção no nível “mais básico”: o que o filósofo John R. Searle chama de as “intenções ilocucionárias que o autor tem quando escreve ou compõe o texto, de maneira que seja”. No caso, “identificar um texto como romance, poema ou mesmo como texto, já é afirmar as intenções do autor”. Observando que essas marcações são dadas não só por quem o compôs, mas também por quem o editou. Alguém escreveu uma obra e a denominou de romance, conto ou novela e, como tal, ela foi publicada por um dado editor. Assim, toda a composição visual da obra traz marcas das intenções do autor, reiterada por seu editor: a orelha e a contracapa que enunciam e explicam sobre o que versa o livro; o local que, dentro de uma livraria ou biblioteca, lhe é destinado; as resenhas de jornais e revistas que lhe são consagradas. É dessa maneira que a obra chega ao leitor: identificada, no nível “mais básico”, pelas intenções do autor. É a intencionalidade que dá o estatuto histórico-temporal da obra, explicitando o desejo do escritor por pertencer a uma determinada família espiritual e não a outra.
Segundo: a ficcionalidade do texto. Aristóteles, naquele que é o mais elaborado tratado da antiguidade sobre a poesia imitativa e suas espécies — a Poética —, não toma e define as diversas espécies de poesias imitativas apenas por seus elementos essenciais, estruturais e retóricos. Para ele, nada obstante serem aspectos importantes, esses elementos também podem ser observados em outros gêneros textuais. Afinal, não são apenas as poesias imitativas que lançam mão do mito, do maravilhoso, da elocução, dos procedimentos retóricos, do pensamento, do caráter, do reconhecimento, da peripécia, da catástrofe... A diferença entre a poesia imitativa e os demais gêneros textuais está, segundo ele, na substância específica da poesia imitativa, ou seja, em narrar não um fato que aconteceu, e sim “representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade”. É essa substância específica que orienta o “ofício” do poeta, pois, segundo o autor da Poética, “não diferem o (ofício do) historiador e o (ofício do) poeta por escreverem verso ou prosa (...) — diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder”. É essa substância específica que urde as diversas espécies de poesia imitativa numa só família: mimetizar a realidade empírica não como se fosse a “semelhança mais semelhante”, mas pela diferença, pela sua recriação. Não se é poeta “pelo metro usado”, diz Aristóteles, mas “pela imitação praticada”. Assim, a substância específica da literatura se concretiza naquilo que os latinos chamavam de “fingere”, fingimento, fingir fazer. Ou seja, a ficção. Eu finjo (palavra que por si já é um verbo intencional) encerrar uma dada realidade e quem me lê finge acreditar no que lê. Assim, a ficcionalidade da obra não se dá por determinadas propriedades textuais, sintáticas ou semânticas específicas, por supostamente existir uma língua poética e uma língua prosaica, como acreditavam os formalistas, mas “pela imitação praticada”, pela intenção, por parte do escritor, de estabelecer um pacto de fingimento com o seu leitor. Enquanto experiência literária, a ficção já pressupõe, ou tem como base, o estabelecimento de um pacto de fingimento entre o emissor e o receptor, entre quem escreve dada obra e quem lê tal livro. Pacto que se estende tanto para o campo dos gêneros narrativos (epopeia, novela, romance, conto e drama) quanto para as formas poéticas (o poeta “chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, ensina-nos Fernando Pessoa). É por meio desse fingimento que eu tomo a realidade empírica e a recrio numa realidade segunda: a do fingir fazer. Assim, a realidade inscrita na literatura pode se decifrar pela realidade empírica, mas não se confunde mais com ela.
Terceiro: a verdade e a realidade textuais. Como resultado dessa substância específica — a mimesis — que se concretiza na intencionalidade do fingir fazer, é que o universo literário encerra uma verdade e uma realidade puramente textuais: o de “representar o que poderia acontecer”. Não há nenhuma possibilidade do leitor de Machado de Assis se deparar com Bentinho ou Brás Cubas na esquina da sua casa (salvo os casos de esquizofrenias). É esse estatuto de uma ficcionalidade puramente textual que urde escritores dos tempos mais diversos, fazendo com que Homero dê as mãos a Ovídio; este, a Dante; Dante, a Shakespeare; o bardo inglês, a Machado de Assis e o velho bruxo, a Nelson Rodrigues. Todos eles contam estórias ou vivenciam aventuras (como é o caso de Dante) que só existem no campo textual; estórias que podem se decifrar pelo referente, mas que não dependem deste para calçar suas verdades e realidades, pois, ali, no campo textual, a realidade empírica foi dilatada, duplicada, ficcionalizada, colocada em suspensão.
Quarto: um texto carregado de significados e significações. Se a substância específica da literatura é a ficção e se a sua verdade e realidade são puramente textuais, isso não significa que essas sejam especificidades apenas da literatura, pois nem toda ficção é literatura, a exemplo do romance policial. Por que? Porque a literatura além de se concretizar na intencionalidade do fingir fazer, tem, como qualquer gênero artístico, o objetivo de criar uma realidade e uma verdade textuais que sejam (para parafrasear o poeta Ezra Pound) carregadas de significados e significações até o máximo grau possível, sem que isso implique, necessariamente, determinadas propriedades sintáticas ou semânticas específicas (vide as narrativas realistas ou naturalistas). Como ainda observa John R. Searle, “qualquer um que sustente que a ficção contem atos ilocucionários diferentes dos contidos na não ficção compromete-se com a concepção de que as palavras não têm, nas obras de ficção, seus significados normais”. É essa condição de realidade e verdade textuais carregadas de significados e significações que confere à literatura não só a sua condição trans-histórica, mas o seu estatuto artístico. Já nos romances policiais clássicos a descoberta do assassino encerra a estória em si. No entanto, sabemos que compor uma realidade e uma realidade textual carregadas de significados e significações não é um privilégio das artes ou da literatura: obras religiosas ou filosóficas estão também carregadas de significados e significações. A diferença entre estas e os gêneros literários, é que aqueles textos não foram criados com intenções ficcionais e, por extensão, não constroem verdades e realidades puramente textuais.
Concluindo, podemos dizer que 99% dos livros que são acatados como literatura encerram todos esses quatro pressupostos. E os demais, a exemplo dos livros de Montaigne, Antônio Vieira, Euclides da Cunha ou Gilberto Freyre, também tomados por alguns críticos como literatura? Nestes casos, podemos dizer: 1°) a substância específica dessas obras não é a mimese. 2°) esses livros se referem a fatos, pessoas e valores que se apoiam na realidade empírica. Logo, não são fatos e pessoas puramente textuais. 3°) o pacto de intencionalidade estabelecido com o leitor não é o do fingimento, mas o da verdade: seja ela a “verdade” perseguida pela ciência e a filosofia, seja a da teologia ou das Escrituras. Se esses autores faltam com a verdade nos seus textos, eles estão mentindo, e não criando ficção, pois o avesso da verdade é a mentira; já o avesso de fingir é “desenganar”, no sentido de “esclarecer”. Por fim, o único elo entre essas obras e os gêneros literários seria a suposta qualidade retórica dos seus textos, as supostas propriedades sintáticas ou semânticas específicas. Porém, essas não são necessariamente propriedades (específicas) da literatura, são procedimentos que podemos encontrar ou não num texto literário, assim como também em uma obra filosófica, religiosa ou de ciências exatas. O que torna um texto literário uma dada realidade carregada de significados e significações é o modo como ele exclui do seu horizonte a “semelhança mais semelhante” e plasma um dado universo textual.
Assim como os sonhos recriam a realidade empírica, criando um mundo onírico próprio e passível de várias interpretações, a literatura também constrói possibilidades e situações que só são possíveis no campo da ficção. No caso, é quando, intencionalmente, um escritor dilata, duplica, ficcionaliza e coloca em suspensão a realidade empírica. A literatura é uma das únicas possibilidades — ao lado de outros gêneros artísticos — que temos de sonhar acordado; de sonhar o sonho de quem sonhou aquele dado poema ou romance; de nos irmanarmos não apenas com o autor do sonho, mas com todos os demais que se inscreveram em tal sonho por meio da leitura. A literatura, assim como a Arte, não se fataliza à efêmera duração do ato da leitura; esse ato será resistente e perpetuável enquanto houver quem, abrindo um livro, se disponha a sonhar acordado e, por sua vez, desenvolver novas interpretações desse sonho.
Anco Márcio Tenório Vieira é professor do Departamento de Letras da UFPE.