Mat. Capa 1 Rafael Olinto

 

 

Começa com Samba-canção. Não era o primeiro poema de Ana Cristina Cesar que eu lia, mas foi um encontro inesquecível. A memória é traiçoeira e só consigo falar de A teus pés, ou do que Ana C. representa na minha experiência de leitora e no meu percurso como poeta, entre lembranças e ambivalências. Volto ao passado porque agora é o meu limite. Ana Cristina Cesar é uma das minhas referências literárias, mas quando entendi que para escrever os meus poemas era preciso assimilar, diluir, misturar e esquecer as minhas influências para trabalhar no texto, fiquei bastante tempo afastada. Escrever esse texto é uma releitura e uma viagem no tempo. 

Se é possível apontar o momento do impacto, o contato com a linguagem que desestrutura, do qual é preciso se recompor, às vezes mais de uma vez, foi entre 2004 ou 2005, quando um amigo me mandou o poema pelo Orkut. Nós não fazíamos ideia, mas ali encontrei a poeta que faria de mim uma leitora menos ingênua, alguém que lê poesia não só para ter uma experiência, mas para pensar o poema. 

Com 20 anos, eu nunca tinha lido uma mulher falar de si como nos versos: “fui mulher vulgar/ meia-bruxa, meia-fera/ risinho modernista/ arranhando na garganta,/ malandra, bicha,/ bem viada, vândala,/ talvez maquiavélica,/ e um dia emburrei-me,/ vali-me de mesuras/ (era uma estratégia),/ fiz comércio, avara,/ embora um pouco burra,/ porque inteligente me punha [...]”. Pesquisei o nome de Ana Cristina Cesar no Google e logo recebi a notícia: ela tinha morrido em 1983. 

Como era possível que alguém que escreveu versos que me pareciam vivíssimos, cheios de desejo e ao mesmo tempo rindo de si mesma, tivesse morrido antes mesmo de eu ter nascido? Quem era aquela mulher que me parecia falar de agora – do desejo, da experiência urbana caótica, de desencontros e sobre a escrita – mas já tinha partido há tanto tempo?

Na mesma pesquisa, soube da existência de A teus pés. A edição da Ática, de 1998. Desde que esse exemplar chegou à minha casa, não sei mais quantas vezes reli A teus pés, Cenas de abril, Correspondência completa e Luvas de pelica, os livros publicados pela autora de forma independente entre 1979 e 1982, que depois seriam reunidos num volume. Não sei mais para quantas pessoas enviei poemas de Ana C. por e-mail: amigos, flertes, paixões e pessoas com quem eu compartilho o prazer da leitura. Tantas fiz

Hoje é impossível não me perguntar quais as diferenças entre a experiência de ler Ana Cristina Cesar no início dos anos 2000, quando as mídias sociais só começavam a colonizar experiência de usar a internet (ainda usávamos o verbo navegar, a rede parecia vasta) e a de se aproximar de seus poemas hoje. 

Para além de vivermos num momento em que poemas de todo tipo rolam pelas linhas do tempo, me pergunto se quem encontra a edição de Poética se surpreende com o projeto emular entradas de diários e cartões-postais. Em tempos em que muito da vida das pessoas é compartilhado com desconhecidos a ponto de estranhos nos parecerem conhecidos, a investigação de uma escrita que parece íntima ainda tem o mesmo apelo? 

Talvez o fato de vivermos em tempos de excesso de compartilhamento sirva como uma oportunidade para abandonarmos ideias que foram associadas à literatura de Ana C., como o tom confessional. Eis uma recepção que me parecia estranha, pois ainda que a poeta simulasse anotações fragmentadas, cenas, os textos têm uma linguagem elaborada, cheios de intertextualidades literárias e musicais. O cotidiano e o coloquial, de repente, são atravessados por um vocabulário livresco. Como em Atrás dos olhos das meninas sérias:

Mas poderei dizer-vos que elas ousam? Ou vão, por injunções muito mais sérias, lustrar pecados que jamais repousam? 

O quanto a estrutura de Cenas de abril, Correspondência completa e Luvas de pelica influenciaram leituras da poesia de Ana C. de forma que várias referências e suas citações a traduções fossem reduzidas a alusões ao rigor estético, à “modernidade” e ao diálogo com autores anglófonos?

No poema Epílogo, que encerra Luvas de pelica, a poeta brinca com a ideia do poema como um truque de prestidigitação. Há essa figura, sem um gênero identificado, esse “Eu” que apresenta uma valise da qual retira as luvas, calça o par, exibe as mãos e começa a contar uma história enquanto retira cartões-postais da maleta. Ao exibir as imagens e o que ler no verso dos cartões, a figura entretém o público e logo avisa que precisa se retirar. Essa cena me parece uma brincadeira da poeta com seu projeto até aquele livro – selecionar uma coleção de imagens, obras de arte, recordações, fragmentos, algo é exposto enquanto o verdadeiro truque é desaparecer diante da plateia. “A intimidade é teatro.” 

A única pista de que essa figura que abre a maleta seria uma mulher são os versos “A valise de couro conterá itens de toucador?/ Não, meus amigos”, pois um homem jamais teria que avisar que não traz itens de beleza e higiene em sua mala. Apesar do chá das cinco e de histórias passionais guardadas a sete chaves, algumas referências a uma feminilidade convencional são tratadas com deboche: “acordei com coceira no hímen”, “não quero mais brincar de puta”. O desejo é fluido, são inúmeros interlocutores sem gênero identificado, há a profecia em Mocidade independente, a deusa em Duas antigas, os seios da sereia em Nada, esta espuma

Foi a leitura de alguns textos de Crítica e tradução, em especial o depoimento de Ana Cristina Cesar no curso “Literatura de mulheres no Brasil”, ministrado por Beatriz Resende, que me fez compreender como a autora usava uma suposta escrita íntima para mobilizar o outro. O desejo de comunicar a intimidade e a impossibilidade. 

Quando nos concentramos no livro A teus pés – nas semelhanças e diferenças com os títulos que o antecedem –, as colagens, fragmentos em prosa, referências a roteiros, poemas feitos de diálogos, desentranhados de crônicas, com traduções de versos roubados, nos apresentam os recursos da poeta. Sua valise em Epílogo poderia ser uma caixa de ferramentas disfarçada. 

Ler a crítica e depoimentos de Ana Cristina Cesar em paralelo com a poesia pode ser uma boa experiência para quem deseja escrever. Percebe-se que a poeta era uma leitora com diversos interesses e uma inquietação com a “literatura feita por mulher”. Ao mesmo tempo em que ela reconhece temas e características relacionados a uma ideia de feminino, há um incômodo com a ideia de que a “literatura de mulher” é algo menor. Há diferenças, no entanto isso não determina uma hierarquia, embora a sociedade patriarcal insista nisso. 

Imagino como Ana Cristina Cesar veria a maior presença de autoras em eventos literários, antologias de poesia contemporânea dedicadas ao trabalho de mulheres. Certamente, ela teria críticas ao estilo e aos temas de algumas escritoras, uma vez que falava abertamente de que certas questões e formas de falar não a interessavam.

Contudo, se os paratextos de seus livros me pareciam colocar Ana C. como uma exceção na Geração Mimeógrafo, com interlocutoras intelectuais entre suas professoras que se tornaram suas amigas, seus textos de não ficção apontam para leituras diversas. Katherine Mansfield, Virginia Woolf, Elizabeth Bishop e Gertrude Stein, são parte de seu Índice onomástico, mas seu trabalho como crítica inclui uma resenha elogiosa de As mulheres do Tijucopapo, de Marilene Felinto, notas sobre reler Maura Lopes Cançado, reflexões a partir da linguagem nos livros de Angela Melim e referências a Adélia Prado, Clarice Lispector, Cecília Meireles, Henriqueta Lisboa e a teóricas da crítica literária feminista dos anos 1970. 

Com o tempo, o que passei a perceber como a narrativa da excepcionalidade de Ana C. passou a me inquietar. Embora eu a considere uma poeta incomum, me parecia estranho que houvesse uma espécie de aura trágica em torno de sua morte aos 31 anos que atravancava a leitura dos poemas. Foi a leitura de How to suppress women’s writing, da crítica literária feminista Joanna Russ, que me ajudou a compreender meu desconforto. 

Neste livro, Russ elabora um decálogo com táticas usadas para tratar a literatura feita por mulheres como algo excêntrico. As estratégias são muitas, mas gostaria de destacar aqui o isolamento – a recepção da obra de uma mulher sem considerar quem são as escritoras contemporâneas com quem ela dialoga ou de quem discorda – e a anormalidade, a ideia de que ela era extraordinária, por isso sua obra se destacava em meio ao campo literário dominado pelos homens. Podemos refletir que Woolf e Stein, duas referências de Ana C., também tiveram suas obras recebidas a partir dessa lógica.

Faço essa observação na esperança de que o biografismo pese menos nas leituras de Ana C. e que outras poetas brasileiras que publicaram por volta dos anos 1980 sejam lembradas. Não em um viés da comparação, de supostas rivalidades femininas, mas porque hoje me parece impossível não pensar que Ledusha Spinardi também incorporava referências musicais e a cultura pop em seus primeiros livros, e em seu A lua na jaula (de 2018) reflete sobre a passagem do tempo, e que Hilda Machado dialogava com a psicanálise e o cinema com imagens coesas e um humor afiado. Angela Melim era interlocutora de Ana C., é citada em Duas antigas e escreveu um poema dialogando com A teus pés

DAS DUAS UMA 

Para Ana C. 

Uma das suas. 

Suave lembrança ensina. Não vou morrer até o fim.

Der e vier de garras afiadas, dentes na mão.

Seu livro solta folhas enquanto leio um poema chupado - 

você disse isso. 

Mais doce na manga o coração: duas antigas.

Antigamente, eu me sentia mais nova do que sou.

Isto me faz lembrar outra frase à porta da igreja.

Esta casa qualquer coisa assim. 

aqui está para todos os homens. 

To see, to rest, to pray. 

E eu também nem nada. 

Morri sem saber quem são os 3. 

Mas os outros grandes... descobri! São reticentes.

É você 

que está ali de roupa clara sorrindo ou fingindo ouvir? 

Alguns estão dormindo de tarde. 

Coisa ínfima, 

quero ficar perto de ti. 

 

Para mim, ler Ana C. foi me deparar com inúmeras referências, aprender a usar seu índice onomástico como um mapa para outras descobertas literárias. Relendo sua obra, deixei de ser alguém que deseja entender um poema, aceitei que há sempre algo na poesia que me escapa. Passei a interrogar os poemas, na tentativa de descobrir o que há neles que me desconcerta. Digo para as pessoas lerem Ana C. abrindo caminhos e criando redes de teóricos, poetas, cineastas. Sei que leitores diferentes terão essa experiência com outros poetas – mas encorajo qualquer um que se depare com uma obsessão literária a se aventurar nela. Há muito a aprender, inclusive a reler com cada vez mais alegria.

>> Leia também: Ana C., não te decifro, só te devoro - a poeta Regina Azevedo lê A teus pés, de Ana Cristina Cesar