Em 2022, releio A teus pés, aos meus 22 anos de idade, aos 70 de Ana C., aos 40 do livro, e tenho de novo a sensação de descoberta. A língua vai se enrolando, desenrolando, e dou vida aos seus poemas em voz alta, como se aprendesse um idioma novo, o idioma dela. Como quem coloca uma música para tocar, só que mais gostoso, eu leio os seus poemas e relembro, e entro na onda, um jacaré, depois uma pirueta, o corpo todo em transe, as palavras fazendo festa. “É daqui que tiro versos, desta festa.”
Busco seus poemas na estante, decido que o seu livro precisa ficar junto a mim, o máximo possível, até que eu sinta que somos um só, até que o espelho seja dispensável no momento em que trago a sua Poética até a metade do meu rosto e, com meus óculos azuis, estampa de onça nas laterais, eu me sinta poeta, eu não me sinta sozinha. Nesse momento, passa pela minha cabeça, irônica, a sensação de que caí no marketing, que seria propaganda se não fosse devoção, se não fosse eu sozinha no meu quarto. Trago seus versos para minha pele e só escrevo quando me sinto insegura, inapropriada, imperfeita e confusa o suficiente.
Foi Ana Cristina que me ensinou isso. Esse caminhar apesar do desequilíbrio. Clarice Lispector escreveu, numa carta a Fernando Sabino, em 1956: “ou o desânimo passaria ou eu passaria por cima dele”.[nota 1] Mas foi Ana C. que me pegou pela mão, muitas e muitas vezes, e me disse “escreve”, aliás, “Abre a boca, deusa”. Ela me ensinou que não há jeito melhor de passar por cima do desânimo, mesmo quando ele passa por cima da gente. O caminho é o da escrita. Sempre.
Ana C. é minha girl from Rio preferida. Escrevo de outro Rio, o Rio Grande do Norte, em 2022. E acho importante dizer: não falo do Rio de Janeiro, não falo de São Paulo. Falo do meu próprio centro, como diria Itamar Vieira Junior. [nota 2]
E não me interessa a visão dos outros sobre ela. “Ela era tímida”. (Tímida em relação a quem? Tímida onde? Tímida por quê?). Não sou como os que a conheceram e dizem “ela é uma menina linda”. Eu não a conheci. Mas ela me formou, porque eu me encontrei com seus versos. Que ela é linda é muito óbvio, fácil. Eu quero é falar de paixão, falar de palavra.
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Escrevo o nome dela tantas vezes e lembro o que sentenciou Italo Moriconi: “Assinatura que não acaba”.[nota 3] Escrevo o nome no topo do Word e não basta. Me assombro quando entendo que preciso de um papel, um lápis, ou, melhor, uma caneta, tinta definitiva. Escrevo o nome “Ana C.”, e em seguida corro a mão até o fim da página, desafiando a margem, a gravidade, a reta, a materialidade, poderia inclusive ultrapassar a margem final da folha e riscar a mesa branca, numa tentativa boba, talvez, como todas as tentativas, de que sua assinatura seja o que ela é: eterna.
Meu primeiro contato com a poeta foi lendo 26 poetas hoje, a antologia organizada por Helô Buarque de Hollanda. Ali, estão reunidos outros nomes importantes para mim, como Chacal, Chico Alvim, Leila Míccolis, Roberto Piva, Torquato Neto e Waly. Lembro um trecho de Ana C. que ficou martelando na minha cabeça: “Acordei com uma coceira terrível no hímen.” (primeira frase de Arpejos).
Eu tinha um exemplar mais atual, comprado em sebo. Depois, em uma viagem para Natal, onde moro, Chacal me deu um exemplar autografado, que guardo como o tesouro que é. No autógrafo, ele diz: “os velhíssimos”.
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À época do lançamento da Poética de Ana C. pela Companhia das Letras, ali pelo início de 2014, eu namorava um poeta. E foi ele quem comprou o livro, que eu tentei ler, aliás, eu li, e não entendi nada. Lembro o sentimento de que não tinha lido o livro, apesar de ter lido. Lembro que alguns poemas me pegavam. Deixei como rastro várias páginas dobradas no livro que não era meu, que eu não tinha entendido, que eu achava que não tinha lido.
Ali, eu já escrevia bastante, já organizava e frequentava sarau de poesia (o Iapois, Poesia!). Mas quando o assunto era Ana C., ficava quieta, coisa rara – “tímida”, alguém diria. Desconversava, dizia que não tinha lido muita coisa. E, secretamente, pensava que tinha alguma coisa errada comigo, que na verdade eu não dava nem para leitora nem para poeta, já que não entendia.
Depois de um tempo, o namoro acabou. Até que herdei algumas coisas legais, livro raro – na raiva, a gente não devolve mesmo nada ou quase nada –, mas infelizmente, não lembrei de surrupiar a Poética para mim. Fiquei emendando empréstimos na biblioteca do instituto federal onde estudava, porque naquela época era bolsista (pausa: as bolsas nunca são ajustadas! Atualmente, minha bolsa de pesquisa é R$ 400), e em algum momento não só mudei a resposta (“sim, eu li!”, “sim, eu conheço!”), como passei a colocar seus poemas na roda, sempre que possível. À minha volta, a galera também não entendia. Mas curtia.
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Eu sempre me identifiquei absurdamente com uns versos de A teus pés, e eles não só me fazem companhia, mas dão o tom da minha vida, em muitos momentos.
Por respeito ou devoção a esse poder incalculável que é justa e simplesmente a sua força poética, quando leio sua poesia já não procuro nada. Nem a poeta, como fazem os inocentes ou os preguiçosos; nem qualquer tipo de ilusão de compreensão, entendimento (que, por sua vez, é uma tentativa de domínio). Mergulho, e, se procuro algo, talvez seja essa escuridão onde tudo fica às claras, ou o silêncio de certa hora da noite que tudo comunica. Como no poema “que desliza”: “Onde seus olhos estão/as lupas desistem”.
Em outro poema, fala-se em “verdade”: “[...] pouso a mão no teu peito/ mapa de navegação/ desta varanda/ hoje sou eu que/ estou te livrando/ da verdade”. Que precisamos ser salvos da verdade, da realidade, é muito evidente, afinal de contas, como já disse, escrevo do Brasil de 2022, ainda sob Bolsonaro. Se o amor salva da verdade, a poesia também. E foi isso que A teus pés fez comigo: chutou o tamborete onde eu me apoiava tentando entendê-lo e me mostrou que o caminho oposto, o do mistério, é muito mais gostoso. Não procuro decifrar Ana C. Eu leio para devorar, mesmo.
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Uma vez, em Pipa, uma praia bem badalada aqui do RN, andando na rua principal à noite, vi uma menina de biquíni e chapéu de bruxa. Naquela noite, sonhei com Ana C.
Tem também o efeito Samba-canção na minha vida, no meu olhar. Em uma época, vivia beijando gente desconhecida e conhecida na Rua Chile, centro histórico de Natal, e me sentia tão bruxa, tão viada, vândala.
Na faculdade de Letras, um colega de sala tirou do bolso os versos do poema, e posso jurar que quase me apaixonei por ele só por conta daquilo (créditos à parte para o seu charme). Não conseguia pensar no rapaz sem pensar em uma migalha de carinho, aquele menino que já tinha lido de tudo, e, apesar de eu ter tentado encenar que nem o eu-poético (“embora um pouco burra/ porque inteligente me punha”), não rolou.
Ana Cristina sempre cria isso em mim, essa vida que não é minha, que não é de ninguém, talvez, mas existe, na memória do meu corpo, no meu coração, na minha leitura.
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Eu vestia aquele traje de “mulher vulgar/ meia-bruxa, meia-fera/ [...] malandra, bicha,/ bem viada, vândala,/ talvez maquiavélica” e criava coragem para tudo, inclusive para me entender e me apresentar como poeta. Afinal, toda mulher que escreve é um pouco vândala, certo?
Em 2015, Carlito Azevedo publicou no Facebook,[nota 4] junto a uma foto da autora, o seguinte texto:
Nunca esqueço que em 82, ao ler uma nota no jornal sobre a Oficina de Tradução de Poesia que a Ana Cristina Cesar daria na PUC-RJ, fiquei excitadíssimo. Não só pelo curso, que devia ser ótimo, mas também pela possibilidade de conhecer a poeta cujos livrinhos tanto amava. Depois pensei que toda a PUC ia querer fazer o curso, que só oferecia 20 vagas, e desisti, mas ficou um buraco. Muitos anos depois, lendo a biografia de Ana escrita pelo Italo Moriconi, descobri que o fato de nenhum aluno ter feito inscrição na oficina tinha contribuído na tristeza dela. Senti um buraco se abrir dentro do buraco já aberto. Mas sempre que traduzo um poema, como essa última madrugada, traduzo com essa passageira clandestina ao lado, atrás, latente. É só um não-capítulo triste do não-livro: De Como Nunca Conheci Ana Cristina
Saber desse episódio através de Carlito, e não direto da fonte, considerando que ainda não li a biografia escrita por Moriconi, trouxe outras nuances ao que era contado. Fiquei triste não apenas com o fato de o curso de Ana não ter tido nenhum inscrito, e Carlito ter perdido a vaga porque achou que ia lotar, mas sobretudo pela sensação, já ali em 2015, do tamanho e da atemporalidade da desvalorização infligida às poetas nesse país.
Assim como minha amiga Adelaide Ivánova, entendo que, como poetas, somos trabalhadoras da palavra. Por conta disso, apesar de ter dito que não me interessa se Ana C. era tímida e linda, me interessa pensar nela, sim, enquanto poeta, enquanto mulher. Me interessa que oficinas como a dela e de tantas outras poetas estivessem e estejam sempre lotadas, sempre com fila de espera.
O que posso dizer, e sei que não é suficiente, é que a poesia de Ana Cristina me ajuda, enquanto ser humano e enquanto poeta, a continuar vivendo e escrevendo, a suportar, como escreveu minha conterrânea Marize Castro, “todo incêndio – toda quimera”. E com Ana não só sei que posso, mas tenho vontade e desejo para continuar.
A poesia de Ana Cristina Cesar, em especial a contida em A teus pés, é caminho de delírio e vertigem, é linguagem alucinante, apaixonante. É das melhores companhias para o nosso Brasil de 2022: amparo; ponto de partida e de chegada; mergulho e salto. É uma viagem.
NOTAS
[nota 1]. Em Todas as cartas (Editora Rocco, p. 576-577). Carta escrita em Washington, 25 de outubro de 1956, a Fernando Sabino.
[nota 2] “A minha literatura não é regional. Eu falo a partir do meu centro”, disse ele no Roda Viva, dia 15 de fevereiro de 2021.
[nota 3] Tem na própria orelha do Poética, da Companhia das Letras.