Anne Carson não é uma escritora fácil. Poderemos então perguntar: será ela difícil? Talvez possamos até dizer com prudência que Carson é diferente, ajustando-se mal aos procedimentos de praxe para analisar um texto; seja de perto, segundo os moldes de codificação, perseguindo um fio possível de sentido, seja de longe, dentro de seu contexto e horizonte literário. Mas ambos os procedimentos não resolvem todos os problemas. Em certos casos oferecem também dificuldades e desafios extras, não permitindo uma resolução totalmente satisfatória. Mas não será esta uma prerrogativa da arte?
Percebemos isso nos vários aspectos com que julgam os textos da Carson, incluindo-se neles, de vez em quando, a própria autora. Algumas vezes acham que o que ela escreve é poesia, outras, versos narrativos ou ensaios. Pergunto: e se por hipótese for tudo isso, muitas vezes e ao mesmo tempo? Porque ela não respeita a grade dos gêneros e o decorrer do tempo, movimentando-se com grande liberdade, entrando e saindo de cenas e de personagens. Não é raro encontrarmos essa mistura num mesmo texto.
Outra dificuldade se baseia no fato de que Anne Carson, nascida em 1950, canadense, professora de grego antigo, entrou no Brasil há pouco tempo. O contrário aconteceu em outros países, que perceberam de imediato seu valor e particularidades. Além de vários prêmios, muitos escritores de peso a aplaudiram, a exemplo de Susan Sontag, cujas palavras aparecem frequentemente na contracapa de alguns de seus livros: “Anne Carson é das poucas escritoras de língua inglesa de quem eu leria qualquer coisa que ela escrevesse”.
O método Albertine (The Albertine workout), que eu e Francisco Guimarães traduzimos, foi o primeiro livro de Anne Carson que li, publicado em 2014 nos Estados Unidos, e também o primeiro traduzido entre nós. A brochura original, magra, de 38 páginas, não dava qualquer informação sobre a autora, apenas palavras breves, mencionando a coleção Poetry Pamphlets da editora New Directions. Fiquei em dúvida: o livro seria então um voluminho de poesia? Que surpresa! Além disso panfletária? Mas seria mesmo poesia? Versos narrativos? Entretanto, isso não me causou nenhum problema, pois fui imediatamente atingida pelo vigor da escrita, sua estrutura original, que desde o primeiro momento dizia a que vinha, com frases numeradas para uma compreensão imediata:
1.
Albertine, o nome, não é comum para uma garota na França, embora Albert seja usual para meninos.
2.
O nome Albertine ocorre 2.363 vezes no romance de Proust, mais do que o de qualquer outro personagem.
Em quatro linhas apenas, simplesmente informativas, muito longe do tom considerado literário, já ficamos sabendo o nome da protagonista, presente no próprio título do romance (talvez poema), e que seu assunto envolvia o notável livro de Marcel Proust, À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido). A este ponto eu já estava ficando um pouco desconfiada da ousadia, pois La Recherche, todos concordarão, não é uma obra simples, além disso muitíssimo estudada.
O restante dessa primeira página do Método, devidamente numerada, anota em quantas páginas Albertine é mencionada na Recherche, estando adormecida em 19% delas. Além dessa inesperada afirmação, possivelmente denunciadora do lugar deslizante da mulher no entrecho, lemos no próprio livro declarações de alguns críticos, inclusive André Gide, afirmando que Albertine era “uma versão disfarçada do chofer de Proust, Alfred Agostinelli”, e que a isso se dava o nome de “teoria da transposição”.
Conseguiria a afetação crítica melhorar a tabela das importâncias no livro? Acho que não, mas isso não é um problema, pois no fragmento 49, Carson anota tranquilamente, com apoio bibliográfico, que Proust, em cartas a amigos, confessara “não somente ter amado” Agostinelli, “mas adorado”.
Aí está outra vez: em 5 parágrafos curtos, aparentemente nítidos, julgamos saber o enredo de O método Albertine. Mas eu estava ainda com algumas dúvidas, desconfiando que talvez a narrativa não se sustentasse numa história de amor problemática, banal.
Contudo, o aparente paradoxo da forma, unindo concisão à construção fragmentária, foi satisfatoriamente resolvido por Anne Carson, que parecia divertir-se ao enveredar por caminhos de transparência variável, iludindo a percepção a qualquer mudança de luz. Além disso, ela nunca dizia tudo. Mas isso só descobrimos depois.
De qualquer modo não consegui deter o grande impulso para traduzirmos O método Albertine, e ficamos muito contentes quando Marcelo Lotufo inaugurou com essa tradução sua própria editora, as Edições Jabuticaba, em 2017.
Aos poucos descobrimos que um dos pontos sensíveis de Anne Carson não é a astúcia dos enredos comuns, que tentam parecer excepcionais. Trata-se, isto sim, de um texto investigativo, uma certa forma de apontar, como grande parte da produção da autora, que desenrola argumentos ao redor de um tema, em total liberdade no exercício da inteligência.
Por exemplo, em Falas curtas, último livro de Carson lançado entre nós (Relicário Edições, 2022; tradução de Laura Erber e Sergio Flaksman), encontramos uma introdução da autora ao próprio livro, que nos fornece um mapa de seu projeto ficcional. Aí ela nos confessa preferir “rastros e vestígios”, a compor uma narrativa, sempre à mercê do tédio. Ela ainda acrescenta que a clareza que busca na escrita não pode prescindir de “dragões venenosos”. O que significará esta afirmação? Como o dragão é um símbolo altamente ambíguo, celestial e ao mesmo tempo não (aqui “venenoso”), e às vezes guardador de tesouros, a referência pode se referir à imaginação, que em tudo se mete, e que tudo transforma.
Aconselho os leitores que estejam sempre atentos à ironia de Carson, que borrifa de imprevisto afirmações aparentemente diretas.
Se passamos à Autobiografia do vermelho (Editora 34, 2021; tradução de Ismar Tirelli Neto), encontramos a reescrita do mito greco-latino do gigante Gerião, contado pelo poeta Estesícoro (Grécia, séculos VII-VI a.C.). Mas tomamos um choque quando assistimos aos personagens telefonando, tirando retratos, além de sons emitidos por ventiladores elétricos.
Por sua vez, Héracles, em vez de matar Gerião, segundo a lenda, tem com ele um ardente caso amoroso. Com isso podemos concluir com certa inquietação, que as leituras convencionais costumam ganhar foro de verdade pela repetição contínua. Ora, é isso que a escritora visa talvez desmanchar, com a maior naturalidade, com a ajuda de seus “dragões venenosos”.
É fundamental citar aqui o eterno tema da suposta inferioridade feminina, que a escritora também aborda com total acerto. Sem privilegiar textos modernos e contemporâneos empenhados diretamente na luta feminista, Anne Carson examina o desenvolvimento histórico do tema desde a Antiguidade, atravessando gêneros variados, da legislação à literatura, repetindo-se numa corrente de obras em seus vários aspectos.
Uma das abordagens mais inesperadas da pesquisa intitula-se The gender of sound (O gênero do som), capítulo de Vidro, Ironia & Deus.[nota1] Apoiada na pesquisa e na bibliografia, Carson anota que é pela voz, pelo som que fazem, que as pessoas são julgadas como sensatas ou loucas, masculinas ou femininas, confiáveis ou não etc.
Para meu grande espanto, li que o próprio Aristóteles afirmara que a voz aguda das mulheres era uma prova de sua má disposição ou inclinação, pois os seres que são bravos ou justos (como leões, touros e homens) têm vozes graves, profundas. Ao contrário disso, vozes agudas combinam com a tagarelice e caracterizam uma pessoa desviante do ideal de autocontrole. Uma terapia para vozes não funciona com mulheres ou eunucos ou andróginos, pois eles têm um tipo errado de músculos (pasmem!) para a produção de tons graves, por mais que se esforcem. Além disso, as mulheres possuem uma outra característica além da voz, segundo Plutarco: elas supostamente possuem duas bocas, uma no rosto e outra na genitália, o que leva em consideração o funcionamento verbal e sexual, muito diferente na confrontação dos sexos.
É incrível que só agora essa pesquisa tenha sido feita! E é impressionante como Anne Carson não “doure a pílula” diante de qualquer informação desagradável.
Inúmeros exemplos históricos são citados no texto, como Margaret Thatcher, mais que conservadora, que treinou por anos para tornar a própria voz adequada aos Honourable Members ingleses. Mesmo assim ganhou o apelido de Attila The Hen (Átila, A Galinha).[nota2] Além disso, a loucura e a feitiçaria, também a bestialidade, são condições comumente associadas “à voz feminina, em contextos públicos, antigos e modernos”.
Fiquei impressionada com a importância da pesquisa, irrespondível, frente ao preconceito. O texto é altamente recomendável e, como sempre, com bibliografia citada. Vários pesquisadores, como Freud e Josef Breuer, além de outros escritores, são aqui incluídos e estudados a sério, com o propósito de esclarecer posições discutíveis. Podemos dizer que essa seriedade nos inspira uma maior atenção à arte e à história, mesmo sabendo que “history and elegy are akin” (“a História e a elegia são parentes”).[nota3]
Esta frase abre uma longuíssima elegia escrita por Anne Carson pela morte de um irmão, em um livro mais semelhante a um objeto de arte, de páginas coladas, que não se abrem normalmente, mas se derramam e fluem como... lágrimas? Seu título é Nox, isto é, Noite. Logo no primeiro capítulo, ela diz que história, em grego antigo, significa perguntar.
De repente percebo que é isso o que Anne Carson faz, pois não acredita em definições prontas ou automáticas. A literatura, para ela, é um instrumento de perquirição, pesquisa da verdade que, sabemos, pode se transformar com o tempo, segundo novas descobertas.
E este é o segundo ponto sensível da escrita de Anne Carson.
NOTAS
[nota 1]. Anne Carson, Glass, Irony & God. Nova York: New Directions Books, 1995. Sem tradução no vernáculo.
[nota 2]. O sentido de hen não se confunde com nosso sentido vulgar de galinha.
[nota 3]. Anne Carson, Nox. Nova York: New Directions Books, 2010. Também não possui tradução no vernáculo.