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O anti-Édipo,* dos franceses Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992), tomo primeiro da série Capitalismo e Esquizofrenia, completou seus 50 anos em 2022. O livro tem uma preocupação central com o problema da obediência: como e por que obedecemos? A resposta, para os autores, está no desejo. O desejo nos faz amar o poder, nos faz nos curvar a ele e, hoje, quando ouvimos o clamor insensato destes que imploram pelo fechamento do regime, pela extinção das nossas parcas liberdades democráticas, podemos logo ver como esta pergunta se mantém atual.

O livro, e sua continuação, Mil Platôs, é uma das obras mais lidas e comentadas da filosofia contemporânea. É o resultado do encontro de Deleuze, um filósofo renomado, com Guattari, militante e psicanalista de formação lacaniana. Os dois, como nos conta o próprio Deleuze, se dissolveram no seu encontro e mais do que simplesmente escreverem juntos, tornaram-se “outro” no processo da escrita. Este outro, nem Deleuze, nem Guattari, ainda produziu mais dois livros: Kafka: Por uma literatura menor e O que é a filosofia?.

O anti-Édipo é uma obra de filosofia política. Influenciada pela efervescência de maio de 1968 e marcada por um engajamento crítico com a psicanálise e com o marxismo ortodoxo, sua própria influência foi e ainda é notável. O seu tom provocador e experimental abriu a filosofia e as humanidades a um novo modo de escrita, mais próximo da literatura e da arte do que da seca exposição lógico-argumentativa dominante na época. O livro é complexo, em parte, pela sua própria inovação estilística, pela cadência rápida das frases e parágrafos e pelas centenas de referências teóricas e artísticas que o atravessam. Mas, talvez, a verdadeira complexidade esteja na grandiosidade das perguntas que animam toda obra, as perguntas que, assombrando o pensamento ocidental desde a modernidade, ganharam, no século XX e também no nosso, a gravidade e a urgência que as faz tão atuais: “por que os homens combatem por sua servidão como se se tratasse da sua salvação? Como é possível que se chegue a gritar: mais imposto, menos pão!? [...] por que os homens suportam a exploração há séculos, a humilhação, a escravidão, chegando ao ponto de querer isso não só para os outros, mas para si próprios?”[nota 1]

Hoje, no Brasil do século XXI, não é com essa mesmíssima questão que lidamos em toda parte? Não é ela que, mais ou menos claramente, nos toma por completo diante da nossa extrema-direita? Em um jantar em família, na fila do supermercado, nas imagens que nos chegam das famosas motociatas presidenciais, nos bloqueios e vigílias que se sucederam às eleições de 2022, em suma, na sucessão de absurdos que nos últimos quatro anos criaram um “novo normal”, nós nos indagamos: como podem? Investidos das liberdades democráticas, eles pedem uma ditadura; em nome da liberdade, clamam por servidão. “Pelo direito de não ter direitos: intervenção militar já!”, imploram estes de verde e amarelo. Isto que desfila diante de nós, e nos assusta em uma sempre repetida surpresa, é o que faz de O anti-Édipo uma obra tão atual. Cinquenta anos depois, ainda estamos diante da mesma pergunta: como podem?

“A resposta é a ideologia”, diriam alguns. Lavagem cerebral: “Eles estão enganados!”. Manipulados pela tempestade de fake news, hipnotizados pelo poder dos algoritmos, não sabem o que fazem e o que dizem. Há um conforto quando pensamos assim: o conforto de pensar que eles — nossos pais, tios, amigos —, no fundo, não querem aquilo que eles dizem que querem. São inocentes. Mas, se seguirmos Deleuze e Guattari, veremos que não é nada disso e que não podemos nos valer deste conforto. Eles afirmam: “Não, as massas não foram enganadas, elas desejaram o fascismo num certo momento, em determinadas circunstâncias, e é isso que é necessário explicar, essa perversão do desejo gregário”.[nota 2] Não é uma questão de ilusão, de verdade ou falsidade: mas de desejo. Por essa razão, nunca temos êxito quando tentamos mostrar a verdade usando das fontes mais confiáveis, desmontando mentiras com o melhor da nossa lógica e do nosso bom-senso. Porque não é a “mamadeira de piroca” que faz um fascista; é apenas por já ser fascista que alguém acredita na “mamadeira de piroca”. Não podemos nos valer do conforto da ingenuidade, nem tampouco achar que basta trazer a verdade para que a mentira recue. O desejo desconhece argumentos, desconhece verdades, pessoas, nomes — é no anonimato do desejo que o fascismo se cria e é apenas nele que ele pode ser enfrentado.

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O desejo ou produção desejante é o conceito mais importante de O anti-Édipo e é mobilizado para explicar a grande pergunta que vimos há pouco. Deleuze e Guattari celebram a descoberta freudiana do desejo enquanto indeterminação. O desejo (ou libido) para Freud não é o desejo de Pedro ou de João, o desejo por dinheiro ou por pizza; é uma força indeterminada e inconsciente. Enquanto inconsciente, como leem Deleuze e Guattari, é anterior ao indivíduo que deseja. O indivíduo, a pessoa, aquilo que responde a um nome próprio, já é uma produção do desejo. Não somos nós que desejamos; pelo contrário, nós que estamos no desejo. E se somos, assim, produzidos pelo desejo, que sentido haveria de supô-lo restrito ao humano, à figura da pessoa? A partir de e contra Freud (e Lacan), Deleuze e Guattari escrevem: “O ser objetivo do desejo é o Real em si mesmo”.[nota 3] O próprio Real é desejo e nós somos apenas aquilo que o desejo produz.

Para Deleuze e Guattari, na sua concepção de desejo, não se trata de querer algo, mas do desejo como produtor de todo “algo” que, a posteriori, nós nos veremos desejando; não o desejo de um sujeito, mas o desejo que produz o sujeito e o objeto que ele deseja. Não o desejo como propriedade humana e mesmo animal. Mas, sim, o desejo como identidade entre o humano e a natureza: homo-natura. O desejo é criação, produção, fábrica: no humano e no mundo. É, deste modo, por sua própria natureza, revolucionário: enquanto produção e processo, é o que traz variação e novidade nas sociedades humanas e no mundo que elas habitam.

Deleuze e Guattari, se entusiastas da descoberta freudiana, se dela partem para a sua teoria do desejo, não obstante, são duros em sua crítica a Freud. Pois ele, ao descobrir o desejo enquanto indeterminação, haveria recuado da sua própria descoberta, feito da fábrica um teatro e de Édipo, o seu personagem universal. Ao descobrir que o desejo é indeterminação, Freud logo acrescentou que o desejo se determinava de forma unívoca no complexo de Édipo: papai-mamãe-eu. O desejo começa pela mãe, é castrado pelo pai; do pai e da mãe se projeta no campo social e o chefe é uma repetição do pai, a esposa, da mãe. Deleuze e Guattari não negam que haja, empiricamente, o complexo de Édipo — e lembremos sempre que a psicanálise é, antes de qualquer coisa, uma clínica que se faz diante de sujeitos concretos — mas, para eles, não se trata, de modo algum, de um universal. A família burguesa tem em Édipo o seu núcleo. Mas para Deleuze e Guattari, isso não basta para fazer dele universal.

Disto decorre um ponto muito importante: não há para Deleuze e Guattari, o pessoal e o social, o indivíduo e o todo, como dimensões separadas e cindidas. O desejo não passa do indivíduo para o coletivo: o desejo é, desde sempre, transindividual. Ele se investe diretamente nas formações sociais, que nada mais são do que o seu agenciamento, suas dinâmicas de codificação e descodificação. Por isso, os autores não podem aceitar a prioridade de Édipo, a repetição do pai no presidente e da mãe na esposa. O desejo investe diretamente no campo social. O desejo, como eles escrevem, faz parte da infraestrutura.

Cada formação social, com suas classes, sistemas de representação, discursos, religiões e expressões artísticas, são produções do desejo. É o desejo que mobiliza o braço do operário na fábrica; é o desejo que faz o burocrata alisar o seu dossiê; é o desejo que faz com que os oprimidos tolerem sua opressão ou que não a tolerem mais. Toda produção social é produção desejante e os arranjos produzidos pelo desejo, os seus investimentos, a sua intensidade e o seu fluxo, são o que faz com que determinada sociedade seja tal como é. As formações sociais são como grandes sistemas hidráulicos, canalizando os fluxos de desejo e não existindo para além daquilo que canalizam.

Os conceitos de molecular e molar são formulados neste quadro. O desejo é molecular; é um fluxo anterior aos indivíduos com suas representações e identidades pessoais. O molar, por sua vez, é o outro lado deste fluxo ou aquilo que ele produz: as representações, pessoas, organizações políticas. As revoluções, as grandes mudanças, começam sempre pelo molecular; o desejo se desinveste das representações molares dadas em direção a outros mundos. E é isso que eles denominam linha de fuga.

Já podemos começar a entender como os autores respondem a grande pergunta. No nível molecular, inconsciente, não temos interesses, cálculos de vantagens e desvantagens, individuais ou de classe; os interesses pertencem apenas ao domínio molar, de forma que é possível que alguém, molarmente, se diga revolucionário enquanto, no nível molecular, seu desejo seja fascista. É por isso que Deleuze e Guattari nos prescrevem prudência: sempre, e com muito cuidado, devemos procurar em nós o desejo pelo poder e pela obediência, para além daquilo que dizemos a nós mesmos que estamos procurando ou fazendo.

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A filosofia política de Deleuze e Guattari é uma analítica dos fluxos. Fluxos de desejo, de mercadorias, de símbolos, sangue e suor; fluxos de pessoas, afetos, ideias. Para os autores, um fluxo é movimento e é processo. As sociedades sem capitalismo, diante dos fluxos que as atravessavam, estabeleciam códigos que os limitavam e lhes circunscreviam. Cada código já expressa uma limitação do desejo, o desejo se voltando contra si na produção de obediência. Cada código é uma fixação do desejo, uma inscrição do seu caráter indeterminado dentro de certos limites e coordenadas. Códigos qualificam fluxos no mesmo movimento em que os conjugam e os tornam assinaláveis.

Deleuze e Guattari nos trazem o exemplo do povo Tiv da Nigéria e seus três fluxos qualificados: bens de consumo, de prestígio e “mulheres e crianças”. Não há equivalência entre os três; um bem de consumo não se traduz em bem de prestígio imediatamente, não havendo uma medida comum capaz de relacionar essas três dimensões heterogêneas. Mais importante, ainda, é que as sociedades pré-capitalistas tinham a esfera econômica limitada por fatores extraeconômicos — a própria codificação e heterogeneidade dos códigos. A acumulação pela acumulação não era o fim do sistema, pois algo de externo à própria acumulação se impunha a ela. A proibição da usura, na cristandade medieval, expressa bem esse ponto; uma restrição e codificação das transações monetárias advinda de um código religioso exterior à própria dimensão econômica.[nota 4]

No capitalismo, tudo se passa diferentemente. Temos aquilo que Deleuze e Guattari chamam de o “horror aos fluxos descodificados”. Os fluxos são substituídos por uma axiomática que torna tudo, através do capital, passível de equivalência generalizada; todo código, agora, está dentro da dimensão econômica e nada lhe escapa. Da religião à família, da arte ao uso dos recursos naturais, a equivalência abstrata na axiomática deve fazer tudo apropriável sob a forma do capital. Quantificação, em um horizonte ilimitado, de todos os fluxos que devem ser capturados e “congelados” sob a forma sempre expandida do capital.

Por isso, o capitalismo é da ordem de uma desterritorialização inaudita, que, no entanto, requer sempre a sua própria reterritorialização. Desterritorialização, para Deleuze e Guattari, significa a introdução de uma diferença e de um devir; um novo patamar de variação, um novo limite, uma “fuga” em relação aos territórios constituídos. Os códigos delimitam territórios existenciais, geográficos, humanos — o capitalismo arrasta a todos. O conceito de linha de fuga expressa precisamente esta tendência de toda formação social a variar e a se transformar; e tal como uma pintura clássica, que se estrutura partir do seu ponto de fuga e das linhas que para lá convergem, as formações sociais se distinguem pelo seu modo de lidar com a linha de fuga. O capitalismo, diferentemente das sociedades que o precederam, não nega a linha de fuga. Ele precisa dela, se alimenta dela, sempre a seguindo — até determinado ponto.

O capitalismo requer a novidade e a diferença; novos produtos, novas fontes de recursos, novos consumidores, novos estilos de vida, cada vez mais comércio e mercados mais e mais abertos. Porém, no mesmo movimento, precisa capturar aquilo que libera, circunscrever os limites da novidade e da diferença. É necessário reinscrever e reterritorializar, seja através do Estado ou de outro mecanismo, os fluxos que decodifica. Muitas vezes, intervêm “neoarcaísmos”: valores ou formações pré-capitalistas como horizonte de reterritorialização visando compensar e aprisionar aquilo que foi liberado. O capitalismo, assim, se dá neste jogo de reterritorialização e desterritorialização. Por esta razão, os autores identificam a esquizofrenia como limite do capitalismo. Na esquizofrenia, os fluxos estão decodificados e não há identidade, sujeito e objeto; a esquizofrenia, enquanto processo, é a desterritorialização última e não reterritorializada, e, enquanto tal, aparece como a tendência, sempre repelida, do próprio capitalismo.

Os dois tomos de Capitalismo e Esquizofrenia são, sem dúvida, uma dura crítica ao capitalismo. Mas, mais profundamente, esta série é uma obra antifascista. O fascismo é o antagonista privilegiado do pensamento de Deleuze e Guattari, e, em termos de servidão voluntária, é paradigmático. É um movimento de massas na qual as próprias massas clamam por obediência e escravidão — não só dos outros, mas de si mesmas.

O desejo, como vimos, é indeterminação. E enquanto tal, pode desejar a sua própria repressão. Toda codificação do desejo e a sua decodificação capitalista não são outra coisa; em um caso, o desejo se volta contra si mesmo na inscrição identitária do código; no segundo, ele se libera em novos investimentos, sempre renovados, para, em seguida, ser reinscrito em uma reterritorialização. Se o fascismo é o inimigo privilegiado de Deleuze e Guattari, o grande antagonista da sua filosofia, não é apenas porque é paradigmático da servidão — mas porque guarda o maior de todos os perigos, o “grande Desgosto”. O fascismo, para Deleuze e Guattari, é uma linha de fuga convertida em linha de abolição — uma revolução revertida na qual a potência do Novo se coloca a serviço do Mesmo e, assim, o desejo (que é criação e produção) nada mais produz além de seu próprio aniquilamento. O fascismo é um niilismo realizado[nota 5]: vontade de tudo destruir, a morte de si que passa pela morte do outro.

O que ocorre com o desejo para ele se torne paixão de abolição e nada além? O desejo fascista é molecular; começa em pequenos focos — “que pululam e saltam de um ponto a outro, em interação”[nota 6]— até ressoarem conjuntamente em representações ou movimentos molares. Antes de tomar o Estado, de se submeter ao imperium de um líder, ele se faz em uma linha molecular que gradualmente se molariza. O fascismo não começa nos grandes líderes, mas no ressentimento que se espalha, nos ninhos de vingança que ele gesta, nas linhas de fuga que ele traça pouco a pouco ou nas que ele parasita devagar. O fascismo é uma serpente de mil cabeças e é chocado em mil ovos.

Tudo começa pelo ressentimento. Maria Rita Kehl, em sua obra sobre o tema,[nota 7] descreve o ressentimento como uma “revolta submissa”. O ressentido sofre com a posição que ocupa na vida social; sofre por não estar no topo, sofre por não estar entre aqueles que dominam. Mas, se ele se revolta contra o mundo, não obstante, continua acreditando nos valores que governam este mundo. Revolta-se contra a sua posição na vida social, mas é incapaz de se revoltar contra seus valores. Investe seu desejo no mundo que o exclui; é incapaz de, diante do seu próprio sofrimento, libertar seus investimentos desejantes do mundo que o oprime.

O ressentido não tem a coragem de criar, está acostumado apenas a remoer, a se contorcer diante da ofensa vivida, jogando sal na ferida enquanto procura quem culpar pelos seus males. Quando cria, esconde que cria e afirma: “isto é eterno, é a ordem do mundo, a ordem da natureza”. Não conseguindo esquecer, ele não tem a plasticidade necessária para uma verdadeira criação; sua criação amargurada se volta contra a vida, procurando criar valores em nome dos quais, em sua pretensa eternidade, todo desejo deve se curvar. Por isso, o ressentimento expressa a fixação dos investimentos desejantes; o desejo que perde a sua elasticidade na medida em que se volta contra si enquanto produção e criação.

O fascismo, certamente, começa no ressentimento, mas vai além. O ressentido é passivo e melancólico — ele não luta, ele remói e rumina. É apenas conservador e engessado, não consegue sair do lugar. O fascista é diferente: o fascista quer destruir o mundo. Da melancolia ao ódio; do ruminar ao vômito. O seu ressentimento torna-se vingança sem fim. Se o ressentido, em sua revolta submissa, continua acreditando nos valores do mundo que o oprime, só tem uma opção diante de si: o problema não são os valores, mas a sua degeneração, a sua corrupção. Daí a palingenesia — vontade de renascimento — que Roger Griffin soube muito bem caracterizar como núcleo das ideologias fascistas.[nota 8] O fascista quer destruir, até a última pedra, o mundo que existe, não para criar um outro mundo, mas para encontrar por debaixo dos escombros o mundo que ele julga perdido. Por isso, o fascismo é uma revolução conservadora. Não se trata, na revolução fascista, de criar um mundo novo, mas de fazer renascer um mundo perdido; não a criação de novos valores, mas o renascimento de valores tomados como eternos.

É por esta razão que Deleuze e Guattari nos dizem que o fascismo se dá em uma linha de fuga. Tal como uma força revolucionária, capaz de arrastar a sociedade em um devir imparável, o fascismo é uma desterritorialização. Mas esta potência de desterritorialização, do desejo em sua linha de fuga, é posta a serviço de uma reterritorialização inaudita — e, aqui, a palingenesia. O capitalismo é o que tornou o fascismo possível e este pode ser visto como o seu caso extremo. No fascismo, trata-se de reterritorializar a partir da desterritorialização em um movimento de reterritorialização ilimitada. Não há nada por debaixo dos escombros, então, sempre será necessário cavar mais, destruir mais. O desejo que deseja a sua própria opressão, no fascismo, diferentemente do que se passa com os códigos, deseja no ilimitado.

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Para Deleuze e Guattari, o Estado é, essencialmente, uma forma de interioridade. É um aparelho de captura. Constitui-se na captura dos fluxos, cria um novo código sobre os códigos das “comunidades primitivas” e só existe nesta interiorização mesma. A fórmula do Estado, para Deleuze e Guattari, é “comparação direta, apropriação monopolista”.[nota 9] Dois movimentos que vêm juntos: apropriar e comparar — comparar através da apropriação e apropriar através da comparação. Por exemplo: os fluxos de mercadorias, heterogêneos, são apropriados por meio do imposto estatal na mesma medida em que se tornam comparáveis, mensuráveis, pela moeda — e, neste sentido, o Estado, mesmo antes do capitalismo, já opera por desterritorialização e decodificação (limitadas). O mesmo, para Deleuze e Guattari, se passa com a terra e com o trabalho. Um critério através do qual tudo deve ser comparado e apropriado nesta comparação mesma. O Estado tem, assim, uma relação íntima com o primado da identidade e, segundo Deleuze e Guattari, ele não é só uma organização política, mas uma “forma” que está na vida social tanto quanto no pensamento. Esta forma é a elevação de um princípio ou critério identitário e a distribuição hierárquica a partir deste critério. É a forma-Estado que opera quando nossas sociedades ocidentais tomam o “homem-branco-hétero-proprietário” como padrão do que é ser humano, distribuindo as demais identidades em uma hierarquia dada a partir deste critério.

Por sua vez, a máquina de guerra é um conceito analiticamente oposto ao de Estado e expressa a pura exterioridade em relação à sua captura. Algo inapropriável dentro do Estado ou aquilo que, de fora, ainda não foi apropriado. Deleuze e Guattari nos falam dos nômades, mongóis e hunos, às margens dos grandes Impérios e sempre em uma relação tumultuada com eles. Mais ainda, a máquina de guerra diz respeito aos ameríndios. Com Pierre Clastres,[nota 10] descobrimos que eles dispõem de uma formidável máquina de guerra voltada à interdição do surgimento do Estado, máquina que opera por impedir a decodificação dos fluxos, a concentração de poder e a concentração de riqueza.

As revoluções começam a partir de máquinas de guerra. Elas traçam uma linha de fuga que pode arrastar o Estado, a vida social ou nós mesmos, enquanto indivíduos singulares. Um partido revolucionário é uma máquina de guerra. Uma obra de arte pode ser uma máquina de guerra — se ela for capaz de traçar uma linha de fuga suficientemente potente para desterritorializar o cânone ou o pastiche em uma aventura ao mesmo tempo contra o clichê e contra o vazio. A literatura pode fazer uma máquina de guerra e o consegue quando faz a própria língua gaguejar, quando nos faz estrangeiros na nossa própria língua. Contra a forma-Estado e a sua interioridade, eis a máquina de guerra enquanto exterioridade e reinscrição do novo.

A máquina de guerra não tem a guerra como fim; ela apenas encontra a guerra diante do Estado e conquanto interiorizada pelo Estado sob a forma das instituições militares. Interiorizada pelo Estado, a máquina de guerra adquire objetivos e ganha a guerra como seu objeto privilegiado. Como colocou Carl von Clausewitz em uma fórmula célebre: “a guerra é a continuação da política por outros meios”. Deixada por si mesma, a máquina de guerra é uma figura de dispersão e nomadismo que não tem razão para se voltar apenas para o conflito armado como seu fim privilegiado.

No fascismo, temos uma máquina de guerra; mas ela se dá interiorizada pela forma-Estado. É uma máquina de guerra no seio da captura estatal e que, de dentro do Estado, é regurgitada por ele e procura tomá-lo por completo. O critério de distribuição identitária — a própria forma-Estado — é o que o fascista tem como horizonte último das suas aspirações ao ilimitado: a palingenesia, mais uma vez. Na sua linha de fuga desgovernada, o fascismo precisa ir sempre além e quando a máquina consegue conquistar o Estado, quando todos os focos moleculares ressoam juntos nesta conquista, ele perde toda a raison d’Etat — a noção clássica de que o Estado serve à sua própria preservação.A guerra não é mais a política por outros meios, mas um fim que vale por si mesmo. Não há mais razão de Estado, não há mais preservação do Estado. O Estado nazista, por exemplo, não servia a si mesmo, mas ao Partido como máquina de guerra e a guerra era seu único fim. Tomado pela sua forma de exterioridade, entregue à linha de fuga revertida, o Estado se torna suicida. Deleuze e Guattari trazem o telegrama 71 de Hitler: “se a guerra está perdida, que pereça a nação”, o que segundo os autores, expressa o movimento “no qual Hitler decide somar seus esforços aos de seus inimigos para consumar a destruição do seu próprio povo, aniquilando os últimos recursos de seu habitat, reservas civis de toda natureza (água potável, carburantes, víveres, etc.)”.[nota 11]

O Estado suicidário é o ápice de um movimento que começa no desejo. O desejo que se nega ao desejar a sua própria repressão, o ressentimento que se espalha no nível molecular como uma peste, ressoando em mil focos e traçando uma (ou várias) máquinas de guerra sobre a linha de fuga. E, quando conseguem conquistar o aparelho de Estado, põem a potência dele contra si mesmo em um Estado que trabalha para a própria destruição. Estado suicidário, niilismo realizado.

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Poderíamos encontrar todos estes elementos que vimos, formulados por pensadores de franceses há 50 anos, no Brasil contemporâneo? O bolsonarismo, como movimento político, é fascista — pelo menos, no sentido de Deleuze e Guattari. O que não quer dizer, por certo, que todo eleitor do Bolsonaro é fascista; nos referimos àquele núcleo duro, sempre difícil de estimar. Neste núcleo, encontramos tudo o que vimos: o ressentimento, a linha de fuga, a máquina de guerra e, na medida do seu poder, o projeto de um Estado suicidário.

O bolsonarista é um ressentido. A crise de 2015 e 2016, na esteira da que começou em 2008 em todo o mundo, levou muitos a perderam qualidade de vida. O neoliberalismo, enquanto regime político, econômico e subjetivo, opera uma nova desterritorialização no capitalismo mundial — a tão falada “globalização”. Este contexto de fungibilidade generalizada, precariedade e flexibilidade laboral, arrastou as economias mundiais e as vidas que se desenvolvem seu seio e no Brasil não foi diferente. Diante dela, os germens do fascismo foram plantados. A linha de fuga do capital, realizando uma nova onda de desterritorialização, produziu a contrapelo o desejo de sua reversão na forma de uma “reterritorialização” radical de horizonte palingenético – vontade de renascimento e de retorno, de fixidez e identidade. Vemos isso quando eles nos falam de “Deus, pátria, família” ou dos “velhos bons tempos da ditadura, quando meninos usavam azul e meninas usavam rosa.”

Se a culpa da crise é inequivocamente da desregulação neoliberal e daqueles que lucraram com isso, os valores neoliberais não foram afetados como se imaginaria. O ressentido, diante do mundo globalizado, ainda acredita no capital como valor último e no mérito como critério de distribuição, ainda investe seu desejo na figura do “empreendedor” e vê como justa a riqueza dos senhores do mundo. Assim, o que se passa para que ele esteja mal como está? É necessário achar um culpado vicário e aqui entra aquilo que Rodrigo Nunes chamou com precisão de “confusão entre perda de direitos e perda de privilégios”.[nota 12] Após uma década de relativos ganhos para minorias (LGBTQs, negros, mulheres), privilégios antes incontestes foram enfrentados. E diante da crise econômica, o fascista, ressentido pela perda de direitos e do seu antigo status, ao permanecer investido nos valores deste mundo e incapaz de desejar o diferente, só poderia atribuir a culpa desta perda de direitos à perda (relativa) dos seus privilégios raciais e de gênero. O imaginário de uma corrupção moral como causa de todos os males, a sensação de decadência, de “tem que acabar com tudo isso que tá aí”, foi se espalhando pouco a pouco sob signo desta confusão entre direito e privilégio, construindo esta grande revolta submissa do homem-hétero-branco. De pouco a pouco, até a sua cristalização na figura de Jair Bolsonaro, ela foi se espraiando pela vida social brasileira. Parafraseando Deleuze e Guattari, poderíamos dizer que, para entender onde começou o bolsonarismo, seria necessário ver em que momento o senhor branco de meia-idade fez a piada do pavê e ninguém riu.

O bolsonarismo, de fato, possui uma máquina de guerra ou mais de uma. Não só aquilo que chamamos de “bolsonarismo” pode ser tomado em si mesmo como uma máquina de guerra, mas ela mesma opera a partir de diversas máquinas. As milícias virtuais, com seu funcionamento relativamente orgânico; (certas) igrejas neopentecostais que, diferentes entre si e distribuídas de forma rizomática, ressoaram e ainda ressoam conjuntamente no bolsonarismo. As Forças Armadas, instituições de Estado, foram objeto de diversas tentativas de cooptação que visavam desinteriorizá-la e fazer delas uma máquina de guerra a serviço do bolsonarismo — o mesmo valendo para as polícias. Não sabemos em que medida este esforço foi bem-sucedido e veremos nos próximos anos a extensão desta intentona.

Mesmo que a captura do aparelho de Estado pela máquina bolsonarista tenha sido limitada, ainda assim tivemos nossa própria prova de um Estado suicidário, como notou Vladimir Safatle.[nota 13] A gestão da pandemia, os esforços sistemáticos de espraiamento do vírus por parte do atual presidente e dos seus seguidores, consistiu em um movimento de indiscriminada distribuição da morte: não matar um grupo ou outro, mas matar todo e qualquer um. E aqueles bolsonaristas que se uniram a este intento, estavam colocando suas próprias vidas a serviço da morte. Expunham-se ao vírus para que ele circulasse. Nada disso precisou ser objeto de uma representação consciente. A lógica ali manifesta — “os mais fortes sobreviverão, não devemos deixar de sair para preservar os fracos” — já é expressão do “grande Desgosto”, do desejo fascista que antecede qualquer representação e interesse. Tivemos uma mostra do que seria o Estado suicidário bolsonarista, mostra essa que deixou cerca de 700 mil mortos e deixaria muito mais se a captura do aparelho de Estado brasileiro tivesse sido completa.

A máquina de guerra bolsonarista, de fato, falhou em tomar por completo o Estado e subverter a sua raison d’État aos seus próprios fins. Tivemos um governo fascista que não logrou criar um regime fascista. Mas ela não foi eliminada. Não sabemos o que sobrará dela após a derrota do (em breve) ex-presidente Bolsonaro e os clamores golpistas que tomaram o país parecem indicar que ela permanecerá muito ativa.

Por fim, a grande lição que devemos tirar de O anti-Édipo não se mostra nada reconfortante. Os autores mostram como não será através das urnas que o fascismo será derrotado. Afirmar que o fascismo é pré-individual, inconsciente, que não se rege por interesses, nos leva a concluir que definitivamente não basta vencer uma eleição. Tampouco bastar prender o líder fascista e seus sicários. O fascismo permanecerá para além de Bolsonaro, talvez, com novos líderes, com novos delírios, novos “arcaísmos” a serem reterriorializados. Ouviremos, por muitos anos ainda, este mesmo grito: “menos direitos, mais polícia!” e, a cada vez, repetiremos a pergunta de Deleuze e Guattari: como podem lutar pela sua servidão como se lutassem pela sua liberdade?


NOTAS

* A grafia do termo anti-Édipo, por escolha editorial, segue a que foi adotada pela Editora 34, que publicou o livro.

[nota 1]. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34, 2011; p. 46-47. Tradução de Luiz Orlandi.

[nota 2]. O anti-Édipo, p. 47.

[nota 3]. O anti-Édipo, p. 43.

[nota 4]. Ver Guillaume Sibertin-Blanc, Politique et État chez Deleuze et Guattari: Essai sur le materialisme historico-machinique. Paris: PUF, 2013.

[nota 5]. Deleuze e Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2 – vol. 3. São Paulo: Editora 34, 2012; p. 104. Tradução: Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik.

[nota 6]. Mil Platôs – vol. 3, p. 84.

[nota 7]. Maria Rita Kehl, Ressentimento. São Paulo: Boitempo, 2020.

[nota 8]. Roger Griffin, Fascism. Oxford: Polity Press, 2018.

[nota 9]. Aspas de: Deleuze e Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2 – vol. 5. São Paulo: Editora 34, 2012; p. 122. Tradução: Janice Caiafa e Peter Pál Pelbart.

[nota 10]. Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado: Pesquisa de antropologia política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. Tradução de Theo Santiago.

[nota 11]. Mil Platôs – vol. 3, p. 105-106

[nota 12]. Rodrigo Nunes, Do transe à vertigem: Ensaios sobre o bolsonarismo e um mundo em transição. São Paulo: Ubu, 2022.

[nota 13]. Vladimir Safatle, Bem-vindo ao estado suicidário. São Paulo: n-1 edições, 2020. Ensaio disponível em: www.n-1edicoes.org/textos/23.

 

Mat. Capa 3 Maria Júlia Moreira dez.22