interna 5 Karina WEB

“A ditadura foi a disco music. Estava no lugar errado no momento errado”

Fabián Casas, em Os Lemmings e os outros (tradução de Jorge Wolff)


Quando ele me toma em seus braços. E fala baixinho. 
Eu vejo a vida em cor-de-rosa. Ele me diz palavras de amor. Palavras de todos os dias. E isso mexe comigo... Esta é uma tradução simplificada, daquelas que encontramos no Google, de um trecho da letra de La vie en rose, talvez a canção francesa mais famosa do século XX. Em geral, interpretada com ar solene, cerimonioso, que apaga a sua alegria moldada em fôrma de orgasmo, as suas palavras de todos os dias. Podemos arriscar que a cantora e modelo jamaicana Grace Jones ‒ nome que inspira imagens do jet set NY-Paris, da boate Studio 54 e o acesso a todas aquelas grifes impossíveis ‒ foi quem melhor soube extrair a joie de vivre a atravessar La vie en rose.

A versão de Jones aparece em seu álbum de estreia, Portfolio, lançado em 1977. São sete canções típicas da fase imperial das discotecas nos Estados Unidos e também contemporâneas das ditaduras na América Latina. Portfolio é composto de música para balançar e aproximar os corpos. Corpos, na maioria das vezes, de homens gays, que viviam uma onda de liberação sexual, a ideologia de prazer a todo custo dos clubes noturnos, antes da chegada da aids e de todos os seus significados e desdobramentos terríveis. Jones interpreta La vie en rose (o grande hit do disco) como num transe. Em alguns momentos, “esquece” o francês, que parece não dar conta do seu sentimento, e o mistura com o inglês. Desafina, berra em êxtase, enquanto um violão à bossa nova tenta em vão acompanhar sua escalada impossível.

Um crítico chegou a escrever que o impacto da versão de Jones é que ela cantava como um homem atraindo outros homens. Uma imagem que também pode evocar a ideia de uma arapuca, a boca aberta gigante a atrair suas vítimas.

Grace Jones e sua La vie en rose são personagens de uma das narrativas mais poderosas do escritor chileno Pedro Lemebel (1952-2015), La música y las luces nunca se apagaron, publicada em sua primeira reunião de crônicas, La esquina es mi corazón (1995). O texto trata do incêndio da boate Divine, na cidade chilena Valparaíso, ocorrido em 1993, e que se tornou marco do chamado período de transición a la democracia, após quase duas décadas da ditadura militar (1973-1990). E também um símbolo da resistência LGBTQIAP+ no país, que persiste lembrado a cada novo aniversário das mortes. Foram 16 vítimas no incêndio, que na época teve como laudo da polícia um acidental curto-circuito. O caso da boate Divine é um perfeito exemplo da recorrente zona cinzenta entre crime e acidente, típico do apagamento e da violenta queima de arquivo dos regimes fascistas.

Segundo a crônica de Lemebel, o DJ da Divine estaria tocando La vie en rose na versão de Jones no momento em que começam a alertar fuego, fuego na pista de dança abarrotada, típica de uma madrugada de sábado. ¿Dónde? Aquí en mi corazón, teriam respondido os primeiros a ouvir o alerta da tragédia em curso. Mas não demorou muito até que a piada “se transformasse em inferno”, aponta o autor. Não dá para dizer com certeza se Lemebel sabia a trilha sonora exata do momento em que o fogo se alastrou. Mas retomar um ícone da disco music num momento tão trágico não é uma escolha aleatória.

A disco music e sua cultura se espalharam na América Latina, naquele final dos anos 1970, como um contraponto alienante ao mapa arrasado por regimes ditatoriais. Era o exílio na pista de dança. E a utopia de dançar, e amar, por noites e noites a fio. Para os que conseguiram fugir, a pista de dança se armava, de preferência, num país distante. Bem distante. Assim fez Stella Manhattan, protagonista do romance homônimo (1985) de Silviano Santiago que, na primeira página do livro, incha e desincha os pulmões para sentir entrar todo o reconfortante ar poluído da Nova York onde se exilara. Aqui no Brasil, a novela Dancin’ days (1978-1979) monopolizava a audiência com suas imagens de discotecas lotadas ao som de um refrão irônico (para usarmos um eufemismo) diante da realidade de então ‒ “Eu quero ver esse corpo/ lindo, leve e solto”. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, no Brasil foram reconhecidos 463 corpos, entre mortos e desaparecidos, durante o regime militar.

No Chile, os Chicago Boys vendiam sonhos importados e estampados com marcas de Adidas e de jeans Calvin Klein de segunda mão (como assinala Lemebel em sua crônica sobre a boate Divine) para a classe média, que preferia se alienar ao terror de Pinochet. No 11 de setembro (data fatal para a história chilena) de 1980, um plebiscito aprova o texto de uma nova Constituição, que mantém o poder do ditador por mais oito anos. No mesmo ano, Grace Jones se apresenta na TV chilena como a grande atração do programa Vamos a ver. Jones canta La vie en rose para um auditório composto pela elite do país (a performance inteira da cantora está disponível no YouTube).[nota 1]

Durante a ditadura, programas de auditórios como Vamos a ver e Sábados gigantes tornam-se uma espécie de marca de propaganda do regime (inclusive a inscrição no más Sábados gigantes pode ser encontrada ainda hoje nas paredes das principais cidades do país). Eram o pão envenenado e o circo servidos na sala de estar.

Talvez o DJ da Divine não estivesse tocando La vie en rose naquela noite de 4 de setembro de 1993, mas o espectro dos anos 1970, e de todo extermínio dos anos 1970, ainda estava muito fresco para não reaparecer. Para alguns, a vida poderia parecer um technicolor em cor-de-rosa, mas em algum momento os espinhos das rosas iriam emergir e furar a carne. “As papoulas também têm espinhos”, avisa Lemebel no título de uma crônica sobre um homem gay assassinado após transar com um garoto de programa.

E é justamente o impasse da cultura pop e da sua exigência de consumo desenfreado em contextos tanto de desigualdade extrema quanto da ditadura em meio aos desejos dos corpos e do desaparecimento dos corpos, e também os descompassos de quem deveria estar à esquerda, mas acabou agindo como aqueles situados à direita, as duas das forças motrizes da obra do escritor e performer chileno. Encurralado pela direita assassina e a esquerda machona, Lemebel posicionava sua escrita, e seu coração, numa esquina para observar melhor.

“Lemebel resgata dos porões do horror do regime militar o grito dos detidos, desaparecidos e torturados. Através de sua escrita furiosa, podemos escutar o grito das crianças de rua e o riso alegre da festa travesti que abala os rígidos pilares da hipocrisia”, aponta a pesquisadora chilena Alejandra Rojas C., que foi também amiga do escritor.

No primeiro semestre deste ano, a obra de Lemebel passa a ser publicada no Brasil, pelo selo Zahar, do grupo Companhia das Letras, da forma ampla que merece (N.A.: em 2014, ainda com o autor em vida, editei pela Cesárea, editora independente de e-books, uma pequena reunião de suas crônicas, em tradução de Alejandra Rojas C., com o título Essa angústia louca de partir). O primeiro a chegar às livrarias é Poco hombre, com tradução de Mariana Sanchez, um vasto apanhado da sua produção como cronista.

Está acertado ainda o lançamento do único romance do autor, Tengo miedo torero (2001), que foi transformado em filme, dirigido por Rodrigo Sepúlveda, em 2020. Tengo miedo torero deve chegar às livrarias apenas em 2024.

O lançamento de Lemebel no Brasil nos faz pensar no enorme mosaico literário que tem sido feito para tentar dar conta das experiências vividas ‒ e apagadas ‒ em meio aos regimes ditatoriais na América Latina. E de como sua voz ecoou alto para ser ouvida em meio ao terror.


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“Cheguei à escrita sem querer. Eu ia em outra direção, queria ser cantora, trapezista ou uma índia pássara trinando para o crepúsculo. Mas a minha língua se enrolou de impotência e, em lugar de claridade ou emoção letrada, produzi uma selva de ruídos. Não fui ‘musiqueira’ nem cantei no ouvido do sistema para que lembrassem de mim à destra do paraíso neoliberal.” (Pedro Lemebel)[nota 2]


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A literatura latino-americana, desde a segunda metade do século XX, tem armado uma espécie de bestiário para dar conta do que foram as ditaduras, que se alastraram como recorrentes pandemias. A cada década, os autores latino-americanos elaboram novas formas de narrar o horror. Ao menos três símbolos persistem nessa (re)escritura, ainda que as gerações se afastem, ainda que os perfis dos narradores mudem drasticamente. Temos sempre os personagens fantasmagóricos que insistem em não ser esquecidos, o perigo do possível agente duplo e a zona cinzenta do túmulo vazio.

O colombiano Gabriel García Márquez (1927- 2014) escreveu um dos títulos mais célebres desse bestiário, O outono do patriarca (1975), espécie de longo poema em prosa sobre a solidão que acompanha o poder e, obviamente, a ilusão deste poder jamais acabar. O ditador no romance de García Márquez é, ele próprio, um fantasma que teima manter sua condição de Eu-supremo mesmo que seu tempo tenha (oficialmente) passado, como a ilustra aseguinte passagem que nos apresenta ao personagem: “Sabíamos que ele estava ali, sabíamos porque o mundo continuava, a vida continuava, o correio chegava, a banda municipal tocava a retreta de ingênuas valsas aos sábados sob as palmeiras poeirentas e os lânguidos lampiões da Praça de Argumas, e outros músicos velhos, substituíam na banda os músicos mortos”.[nota 3]

Em vez de fundidos, poder e solidão no romance de García Márquez apostam corrida lado a lado. Uma corrida que ressoa bem familiar para nós brasileiros desde o segundo turno da última eleição presidencial.

No final dos anos 1990, o chileno Roberto Bolaño (1950-2003), um dos grandes divulgadores da produção de Pedro Lemebel (“Lemebel é o maior poeta da minha geração”, celebrou Bolaño), ajudou a renovar o bestiário com uma retomada irônica dos romances noir em obras como Estrela distante (1996) e Os detetives selvagens (1998). É de Bolaño também, no conto O Olho Silva, a frase que se tornou célebre para pensarmos o signo geracional deixado pelos regimes ditatoriais: “Mas da violência, da verdadeira violência, não se pode escapar, pelo menos não nós, os nascidos na América Latina na década de cinquenta, os que rondávamos os vinte anos quando morreu Salvador Allende.”[nota 4]

Da produção mais recente, podemos destacar o romance Nossa parte de noite (2019), da argentina Mariana Enríquez, que descreve uma dinastia de seres vampirescos ligada à alta casta da burguesia naquele final dos anos 1970; e Garotas mortas, romance de não ficção de Selva Almada, que relata uma série de feminicídios ocorrida nos anos de transição para a democracia durante a mais recente ditadura da Argentina. Na cena final desse livro, a narradora, ao sair de um cemitério, escuta alguém chamando o seu nome. Mas decide não voltar para averiguar se estava imaginando coisas ou se alguém de fato a convocara. E arremata: “Dizem que quando a gente sai de um cemitério, não deve olhar para trás”.

O Brasil tem importantes contribuições para a diversidade desse bestiário. Tanto no romance distópico Não verás país nenhum (1981), de Ignácio de Loyola Brandão, quanto nos contos que guardam aquele fiapo de noite mal dormida noqueer Morangos mofados (1982), de Caio Fernando Abreu (1948-1996). Um livro repleto de frases que guardam uma chave ambígua, que podem ser sussurradas/ proferidas tanto para um amante quanto para um possível informante do regime.

O livro de Caio Fernando Abreu tem início com um diálogo que parece dito em código, um código onde ninguém mais se entende: “A: Você é meu companheiro. B: Hein? A: Você é meu companheiro, eu disse. B: O quê? A: Eu disse que você é meu companheiro. B: O que é que você quer dizer com isso?”. Segundo a crítica Regina Dalcastagnè (UnB), em artigo no Pernambuco de outubro de 2022, a produção brasileira mais recente se concentra tematicamente numa luta contra o esquecimento e contra o insulto que é esquecer: “Desde 2014, com a entrega dos relatórios da Comissão Nacional da Verdade, o tema voltou com mais força ao campo literário brasileiro, após um período de relativa estagnação. Algumas obras já fora de catálogo foram relançadas e muitos outros livros apareceram, trazendo seja a perspectiva de quem ‘esteve lá’, seja o olhar daqueles que herdaram o sofrimento”, destaca.

Em meio a esse tamanho bestiário, a escrita de Lemebel se sobressai como um canto insistente a nos assaltar. Um canto com o exagero, o humor e o rancor de quem se alimentou dos boleros ou da trama da vida como bolero violento. Na crônica A cidade sem você, o narrador-Lemebel retrata uma relação platônica com um dos poucos membros do Partido Comunista do Chile que não se importava de ser visto ao lado de uma notória maricona (o preconceito contra a condição LGBTQIAP+ era um dos pontos em comum da direita e da esquerda).

A relação vivida pelos dois, das noites de militância compartilhadas ao desaparecimento desse companheiro (“Nunca mais soube de você, talvez escondido, arrancado, torturado, trucidado ou desaparecido no pentagrama impune e sem a música do luto pátrio. Alguma coisa me diz que foi assim.”) são narrados em diálogo com um sucesso da cantora italiana Mina, Città vuota (Cidade vazia): “Quem poderia pensar então que você seria uma alma penada pelo resto da minha vida, como uma música boba, como uma canção vulgar, daquelas que as tias solteiras e as mulheres bregas escutam. Canções que embalavam os folhetins que uivavam em algum programa radial. Era tão estranho que você gostas se dessa melodia água com açúcar, você, um garoto daquela escola pública onde cursávamos o Ensino Médio em pleno governo da Unidade Popular”.[nota 5]

Os anos se passam, o companheiro some, Pinochet cai, o corpo do companheiro não aparece e a notícia de que ainda resta um corpo a ser encontrado não emerge nos noticiários. Tudo some, menos o refrão de Mina a atormentar: “Mas a cidade sem você... meu coração sem você...”.

A voz que cantou o horror de resistir no Chile após aquele 11 de setembro de 1973, foi vítima de um câncer de laringe. Como o próprio Lemebel fazia questão de lembrar, sobrevivera à aids, mas não sobreviveria ao câncer. Uma cirurgia na laringe, realizada em 2012, danificou sua voz, justamente quando ela estava sendo “reunida” para a edição de Poco hombre, lançada originalmente em 2013.

O editor espanhol Ignacio Echevarría comenta, no prefácio da antologia, essa relação entre a voz e a escrita do autor: “Porque costuma-se pensar que os escritores escrevem em silêncio, a partir do silêncio, mas Lemebel escreve com a voz, pela voz, a partir de sua voz. Sua escrita – convém destacar em primeiríssimo lugar – é substancialmente falante. O que não significa que imite a oralidade, a fala corrente. Não se trata disso, pelo menos não exatamente. Trata-se, antes, de uma escrita toda ela transida de voz, empenhada tanto em dar voz como em ser voz ela própria. E empenhada também em fazer-se ouvir”.[nota 6]

E quando não era ouvido, Lemebel pontuava que se utilizava de um outro instrumento para espalhar seu (em sua própria definição) humor proletário: “Escrevo a unhadas.”

Um dos ecos mais fortes que chegam para mim hoje da sua voz ‒ e das suas unhadas ‒ estão numa lembrança-necrologio do filósofo espanhol Paul B. Preciado, que chamava Lemebel de “minha mãe travesti”. Estavam os dois juntos observando o Pacífico, e Preciado decide comentar a paisagem citando uma frase de Gilles Deleuze (1925-1995): “O mar é como o cinema, uma imagem em movimento”. Ao escutar a citação pomposa, o chileno não se aguenta em si. Vira-se para Preciado e quebra o devaneio com aquele seu jeito mordaz, quase escrevendo ali mesmo um dos seus textos: “Não se faça de intelectual, machinho. A única imagem em movimento é o amor”.[nota 7]

Penso nessa frase e logo sobe outra voz, a de Mina, a nos avisar, como os créditos de algum filme antigo:

“Mas a cidade sem você... meu coração sem você...”.

 

NOTAS

[nota1] Ver: youtube.com/watch?v=2_2KJB6NBSI&t=1136s

[nota2] Tradução de Alejandra Rojas C.

[nota3] Tradução de Remy Gorga Filho.

[nota4] Tradução de Eduardo Brandão.

[nota5] Tradução de Alejandra Rojas C.

[nota6] Tradução de Mariana Sanchez.

[nota7] O texto completo está em Necrológio aos berros para Pedro Lemebel, publicado em Um apartamento em Urano (Zahar, 2020; tradução de Eliana Aguiar).

 

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