Hallina Beltrão


“Eu que sempre considerei os discursos como os mais terríveis entre os compromissos humanos”. Essas são as primeiras palavras do novo livro de Gabriel García Márquez (Aracataca, Colômbia, 1927), uma obra que compila, paradoxalmente, 22 discursos proferidos pelo escritor colombiano, que, apesar de “não gostar”, escreveu uma porção deles. O título do livro, Yo no vengo a decir un discurso (em tradução livre: Eu não venho fazer um discurso), é uma frase de advertência retirada justamente de sua primeira fala pública, feita para seus colegas de colégio, aos 17 anos, na cerimônia de graduação no Liceo Zipaquirá, em 1944. Nesse texto, o então jovem Gabo já se mostrava infenso à oratória e às aparições públicas – formalidades que acabaram sendo constantes em sua trajetória de escritor premiado e de intelectual politicamente atuante. No entanto, mesmo em suas palestras mais recentes, García Márquez continua insistindo em que, sempre que tem que realizar tal sacrifício, o faz empurrado pelas circunstâncias ou por amizade.

Publicada inicialmente na Espanha e América Latina pela Editora Mondadori (ainda não há tradução ao português), essa nova obra reúne intervenções famosas do escritor, e também algumas desconhecidas pelo grande público. Os temas abordados por ele nos pronunciamentos selecionados são bastante variados: literatura, arte, política, jornalismo e ecologia estão entre os principais. Em Como comecei a escrever – conferência de 1972, que é muito utilizada por seus estudiosos e biógrafos e que já havia sido publicada no jornal El Espectador, de Bogotá –, descreve de forma bem-humorada a maneira fortuita com que se iniciou na literatura e, mais uma vez, comenta sua aversão a falar ante um público: “Eu comecei a ser escritor da mesma forma que subi neste palco: à força”.

Quando recebeu o importante Prêmio Internacional de Novelas Rómulo Gallegos, em 1971, por Cem anos de solidão, em sua fala de agradecimento, intitulada Por vocês, disse haver aceitado cometer dois pecados nos quais prometera não incorrer jamais: receber um prêmio e dar um discurso. Essas promessas seriam quebradas ainda algumas dezenas de vezes, como em suas Palavras para um novo milênio, em que reflete sobre sua ideia particular de um futuro desejável, pronunciadas em sua querida Havana (cidade onde possui uma mansão doada por Fidel Castro), durante o II Encontro de Intelectuais pela Soberania dos Povos de Nossa América, em 1985.

De particular interesse é seu discurso chamado Uma aliança ecológica da América Latina, em que mostra sua preocupação pelo meio ambiente, em Guadalajara (México), em 1991, e que culmina na criação do Grupo dos Cem, uma associação de artistas, intelectuais e cientistas comprometidos ativamente com a questão ambiental. Destacam-se ainda suas palestras sobre artistas e intelectuais que foram seus amigos, como Julio Cortázar, Álvaro Mutis (romancista e poeta colombiano) e Belisario Betancur (advogado, literato e político colombiano, que assumiu a presidência do País entre 1982 e 1986). Bastante atuais são também suas reflexões sobre jornalismo e comunicação realizadas durante a 52° Asamblea de la Sociedad Interamericana de Prensa (SIP), na cidade de Los Angeles, em 1996, nas quais ele deixa patente qual foi sua verdadeira escola de narrativa: o jornalismo e, mais especificamente, a reportagem jornalística. O nome do texto também revela sua paixão pelo ofício, Jornalismo: o melhor trabalho do mundo. Em 1997, fez o provocador discurso Garrafa ao mar para o deus das palavras, em que defendeu a aposentadoria da ortografia, no I Congreso Internacional de la Lengua Española, realizado em Zacatecas, no México; sobre sua Colômbia discorreu em A pátria amada ainda que distante, em Medellín, no ano de 2003.

Entre as conferências mais significativas compendiadas neste volume, encontra-se América Latina existe, proferida na Ilha de Contadora, no Panamá, em 1995, e que tem conteúdo fortemente político e crítico. Em 1982, em Estocolmo, quando recebeu o Prêmio Nobel, o escritor já havia falado publicamente sobre o mesmo tema num texto denominado A solidão da América Latina, que também está incluído na nova obra.

Fecha o livro o famoso discurso Uma alma aberta para ser preenchida com mensagens em castelhano, que fez em Cartagena de Indias, também na Colômbia, em 2007, na ocasião do IV Congreso Internacional de la Lengua Española, no qual recebeu homenagens por seus 80 anos e pelos 40 anos da publicação de Cem anos de solidão com uma edição comemorativa.

Em entrevista a respeito desse seu livro mais recente, García Márquez afirmou que a releitura e revisão desses textos, que estavam dispersos ou esquecidos, fez com que ele percebesse algumas coisas sobre as mudanças e evoluções de sua própria trajetória como artista. Afirmou que serviu ainda para deixar mais claro para ele que o alimento fundamental de sua literatura foi sempre a tentativa de compreensão, segundo suas palavras, “da índole do poder”. Nesse sentido, é importante estabelecer uma distinção fundamental entre o García Márquez romancista (que, apesar de irregular, escreveu obras excepcionais) e o García Márquez orador político, que, invariavelmente, transforma textos inicialmente argumentativos em uma forma híbrida entre a retórica panfletária carregada de ideologia e a narração de “anedotas” para agarrar e seduzir a plateia. O próprio Gabriel García Márquez acredita que os artistas como ele não são propriamente intelectuais, são somente “sentimentais”.

Obviamente, não se pode avaliar um escritor por uma obra dessa natureza – uma reunião de discursos esparsos cronologicamente, proferidos em ocasiões de maior ou menor importância, e que não contribuem com muita coisa nova sobre o entendimento de sua literatura. Contudo, a expectativa de uma nova obra de um prêmio Nobel de literatura sempre é grande no mercado editorial, e talvez seja esse, simplesmente, o motivo maior dessa publicação.


Eduardo Cesar Maia é mestre em teoria literária.


Trechos

América Latina existe

Fragmento do discurso pronunciado em Contadora, Panamá, em 28 de março de 1995

“O destino da ideia bolivariana de integração (da América Latina) parece cada vez mais semeado de dúvidas, salvo nas artes e nas letras, que avançam na integração cultural por sua conta e risco. Nosso querido Federico Mayor faz bem em se preocupar com o silêncio dos intelectuais, mas não com o silêncio dos artistas, que ao fim e ao cabo não são intelectuais, mas sentimentais. Expressam-se a gritos desde o Rio Bravo até a Patagônia, em nossa música, em nossa pintura, no teatro e nas danças, nos romances e nas telenovelas (...). São as formas de expressão popular mais simples e ricas do polilinguismo continental. Quando as integrações políticas e econômicas se cumpram, e assim será, a integração cultural será um fato irreversível. Inclusive nos Estados Unidos, que gastam enormes fortunas em penetração cultural.”

Como comecei a escrever


Fragmento do discurso pronunciado no Ateneo de Caracas, Venezuela, em 3 de maio de 1970

“Nunca pensei que pudesse vir a ser escritor, mas, em meus tempos de estudante, Eduardo Zalamea Borda, diretor do suplemento literário do El Espectador,de Bogotá, publicou uma nota em que dizia que as novas gerações de escritores não ofereciam nada (...). Veio-me, então, um sentimento de solidariedade para com meus companheiros de geração e resolvi escrever um conto, simplesmente para calar a boca de Eduardo Zalamea Borda (...). Sentei-me, escrevi o conto e enviei ao El Espectador. O segundo susto tive no domingo seguinte quando abri o jornal e, preenchendo toda uma página, estava meu conto...”



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