No conto Cohiba, da argentina Lucía Puenzo, Gabriel García Márquez aparece como personagem coadjuvante. É professor de um curso de roteiro para estrangeiros em Cuba. Nas suas poucas intervenções, cobra uma história de final mirabolante que seja dos alunos. A autora preferiu dispensar o primeiro nome e tratá-lo apenas por García Márquez. Sem o “Gabriel” – que lhe rendeu o famigerado apelido Gabo –, ele parece destituído de seu ethos biográfico, despersonalizado. É apenas uma sombra a exigir voos narrativos inusitados de jovens que não se impressionam com seu Nobel, sua Macondo ou seus 100 anos de solidão. Todos ali parecem não esperar tirar o substrato da escrita das aulas, mas do exotismo que pedimos e que o território cubano insiste em nos dar. García Márquez foi criado para ser um dos itens exóticos da narrativa, tal e qual o lusco-fusco de uma noitada no Malecón.
Ainda que tímida, a presença de García Márquez em Cohiba nos remete à dupla ligação intrínseca da literatura latino-americana com o Poder – crítica ferrenha/compadre de combate. E, se você olhar ainda mais de perto, subestimar Gabo, não querer mais escrever sobre o “coronel” como protagonista, querer despersonalizá-lo, é também lembrar sua importância, pedir benção às avessas. Talvez a própria Lucía não tenha (deliberadamente?) percebido que coadjuvantes costumam roubar a cena. Lemos melhor qualquer texto literário quando nos atemos ao que ficou de fora, ao ato falho, como no divã de um analista. A sombra – inicialmente ínfima – do escritor acaba lançando a narrativa de volta a uma tradição que já foi por diversas vezes tratada como ultrapassada. Mais uma vez aqui tratada.
É sintomático que o conto da argentina abra justamente a edição especial da revista britânica Granta, batizada de Los mejores narradores jóvenes em español. É a primeira vez que a publicação se debruça em autores que não são da língua inglesa. O marketing de lançamento lembrou seu lendário número de 1983, que revelou nomes como Martin Amis, Ian McEwan, Julian Barnes e Salman Rushdie. Talvez aqui esteja o próximo Mario Vargas Llosa, ou, quem sabe, o próximo (Gabriel) García Márquez, parece nos querer dizer essa lembrança. Segundo os editores, a ideia é atingir um público leitor crescente – hoje estima-se que 450 milhões de pessoas se expressem em espanhol. Para isso, foram reunidos textos de 22 escritores de oito países. A única exigência é que tivessem nascido depois de 1975. O marco temporal remete ainda a algumas efemérides: o fim da guerra do Vietnã, o início do crepúsculo das ditaduras sul-americanas e da Espanha e o retorno dos exilados. É incrível o quanto é impossível separar a literatura de língua espanhola de algum quadro político (voltemos outra vez ao “coadjuvante” de Cohiba), ainda que o prólogo da revista avise que nenhum dos selecionados tenha ambição de seguir uma carreira política. Ao menos por enquanto.
Nessa edição da Granta, para além do valor literário, dois detalhes nos chamam a atenção: uma espécie de apagamento da importância de Gabriel García Márquez (e de tudo o que sua geração representou) e uma atitude reverente ao escritor chileno Roberto Bolaño. É compreensível. Mercadologicamente falando, compreensível. Falecido em 2003, aos 50 anos, Bolaño devolveu um foco para a literatura hispano-americana que parecia apagada com o boom (o uso dessa expressão foi inevitável) dos autores orientais na década passada, fruto da curiosidade orientalista pós-11 de setembro e do esgotamento das fórmulas do realismo mágico. Não éramos mais interessantes, apesar de continuarmos a ser exóticos.
Nas últimas duas décadas, Gabriel García Márquez (vamos usar seu nome completo a partir de agora) tem se tornado uma sombra de si mesmo, talvez seguindo, visivelmente seguindo, as demandas de um mercado literário que exige extrair o máximo do que um dia ele fora. Mas não há mais fôlego. Sua biografia Viver para contar (2002) parou no primeiro volume, seus anos de formação, e nunca mais soubemos de uma possível continuação. O livro começa com o encontro do escritor, já adulto, num bar, com a mãe. Sem grandes explicações, ela simplesmente pede que ele a acompanhe à sua terra natal, Aracataca, para a “venda da casa”.
A casa só poderia ser uma: aquela que num passado distante pertencera aos avós maternos e onde Gabriel García Márquez vivera até os oito anos, território de lembranças e fantasmas que forraram suas obras iniciais, ganhando forma definitiva em Cem anos de solidão (1967). Durante a viagem de trem para a venda da casa, com a mãe agarrada a um rosário de três voltas, uma parada na frente da única fazenda bananeira do caminho que tinha por nome Macondo. De acordo com o escritor, ele nunca ouvira a palavra antes ser proferida, apesar de já tê-la usado em suas primeiras incursões ficcionais. Diz a lenda que o nome Macondo o fora revelado em sonho, tal e qual uma aparição religiosa.
Mesmo se não tivermos uma continuação de suas memórias (o que é plausível), Viver para contar já é suficiente: ele traz a gênese da formação de Gabriel García Márquez, o momento inicial onde ele se deparou com os trâmites do romance familiar que justificaria toda a sua obra restante. Isso nos faz lembrar a declaração de Juan Rulfo sobre nunca ter conseguido lançar outro romance depois de Pedro Páramo: “Meu tio morreu, era ele quem contava essas histórias”.
O romance best-seller Memórias das minhas putas tristes (2007) foi lançado em doses iguais de histeria de mercado e fria recepção da crítica. O escritor lançava mão de suas frases de efeito grandiloquentes (“No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem”, abre o livro), mas soava como um borrão de exotismo e de lugares comuns, uma paródia de si mesmo, e não conseguia rivalizar com A casa das belas adormecidas, de Kawabata, que abertamente o inspirou. Ainda assim, Memórias de minhas putas tristes foi a porta de entrada para toda uma nova geração conhecer o trabalho do escritor colombiano. Quem nunca lera Gabriel García Márquez acabou seduzido por sua escrita maravilhosa e barroca, mas os iniciados sabiam que algo havia dado errado, tal e qual um especialista distingue uma falsificação perfeita de uma obra real.
É curioso/sintomático a Granta com os novos autores de língua espanhola ser lançada ao mesmo tempo que o livro de discursos de Gabriel García Márquez, obra mercadológica, para suprir uma ausência irremediável. Possivelmente não teremos outro romance novo seu. Notícias são constantes de que ele estaria gravemente doente ou que, de fato, parou de escrever. Fica sempre difícil saber o que é boato, o que é verdade. Quando mal esperamos, um novo Gabriel García Márquez chega às livrarias, ainda que não seja totalmente novo, ainda que seja uma falsificação.
O Roberto Bolaño reverenciado na Granta (é possível reconhecer inúmeros textos que vampirizam sem dó o seu estilo) passa por um momento de superexposição. Em menos de um ano sua editora espanhola, Anagrama, lançou dois livros póstumos: o Terceiro Reich (publicado mês passado no Brasil pela Companhia das Letras) e agora acaba de sair na Europa Los sinsabores del verdadero policía, exercício de início de carreira, que não foi concluído. Ainda não sei a qualidade desse título, mas o Terceiro Reich é uma obra fraca, que traz um autor ainda aprimorando sua escrita, lançada no furor midiático de 2666 – eleito por várias listas como um dos mais importantes dos anos 00. É normal que se queira extrair o máximo do escritor, já que ele ajudou a recolocar a literatura de língua espanhola no centro da discussão outra vez, a ponto da Granta topar “falar” em outra língua. Mas, por outro lado, tamanha exposição acaba nos colocando diante de um labirinto de Bolaños reais e falsificados, tal e qual aconteceu com Memórias das minhas putas tristes.
Bolaño não pode mais ter o controle sobre o destino da sua literatura, tanto que 2666 deveria ter sido lançado fatiado, e acabou chegando às livrarias com monumentais 1.000 páginas (decisão acertada, no fim das contas). Gabriel García Márquez ainda pode controlar o critério de qualidade do seu trabalho. Mas talvez não esteja mais interessado, talvez queira apenas permanecer em nossas lembranças, ainda que no papel de um coadjuvante num conto satírico de uma jovem escritora, ou como seu personagem em O outono do patriarca: “Sabíamos que ele estava ali, sabíamos porque o mundo continuava, a vida continuava, o correio chegava, a banda municipal tocava a retreta de ingênuas valsas aos sábados sob as palmeiras poeirentas e os lânguidos lampiões da Praça de Argumas, e outros músicos velhos substituíam os músicos mortos”.