Abertura Ariano MatheusMelo

Ao enxergar a arte como um acerto de contas com a realidade, ainda muito jovem, o escritor Ariano Suassuna (1927-2014) foi impelido a lançar-se na criação de seu universo mítico: sob suas visagens, o mundo assumia a forma de um circo, por onde desfilavam personagens a desafiar a crueza dos dias. Passados nove anos de sua morte, completados em 23 de julho, as figuras que compõem a sua criação seguem em cortejo, ocupando as múltiplas faces de um picadeiro literário, em diversos gêneros: poesia, teatro, romance, ensaio.

Os meses finais de 2023 e também o ano de 2024 anunciam colheitas que vão além dos livros, com ainda mais luz sobre sua arena circense, a partir da nova adaptação para o cinema tendo como guia a sua obra mais conhecida, o Auto da Compadecida; a exposição que circula pelo Brasil, desde o início de 2022, chega a Pernambuco em outubro deste ano, reunindo peças de arte e encontros de música, dança e debates para celebrar o Armorial, movimento liderado pelo escritor em 1970, cujo cerne é a criação de uma arte erudita a partir das raízes populares da cultura brasileira.

Se pujança se mede também com lançamentos literários, a Editora Nova Fronteira, que publica a obra de Ariano Suassuna desde 2016, faz balanço para aquilatar o que já chegou às prateleiras: diversos relançamentos e nove obras inéditas − sete peças e dois romances − incluindo o livro ao qual o autor se dedicou durante mais de trinta anos, tido como uma espécie de testamento literário, o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores.

Entre as novidades, a mais recente é História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão, apresentado em dois volumes: Ao Sol da Onça Caetana e As Infâncias de Quaderna. A obra retoma os relatos de Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, narrador do Romance d’A Pedra do Reino, em novos depoimentos feitos ao Juiz Corregedor. No prefácio da obra, Carlos Newton Júnior − professor, poeta, ensaísta e exímio especialista na obra de Ariano, com quem trabalhou e conviveu por quase trinta anos − explica que ela foi originalmente pensada como o segundo volume de uma trilogia, iniciada com A Pedra do Reino, “de título tão extenso quanto os dos extensos romances que a comporiam − A Maravilhosa Desaventura de Quaderna, O Decifrador e a Demanda Novelosa do Reino do Sertão”.

Ainda no prefácio, ele esclarece que ganha ainda mais força, n’O Rei Degolado, a “fusão de realidade e fantasia que serviu de matéria para a realização de A Pedra do Reino. A narrativa ficcional se apresenta como um amálgama bastante complexo de fatos históricos, lenda, mito e memória, sendo esta última, certamente, o elemento predominante na sua composição − tanto a memória pessoal do autor quanto a memória familiar que lhe foi transmitida, ora menos transfigurada no processo de criação literária, em Ao Sol da Onça Caetana, ora mais, em As Infâncias de Quaderna”.

Desde 2014, Carlos Newton assumiu, a convite da família Suassuna e atendendo ainda a um desejoexplícito do escritor, o papel de decifrador de centenas de manuscritos deixados por Ariano. “Quando ele se encantou, a família me pediu para fazer um projeto editorial que levasse em conta as obras já editadas e as inéditas, que eu conhecia muito bem, a partir da leitura dos originais”, explica.

Além da responsabilidade de editar obras de um autor não mais presente entre nós, Carlos Newton aponta seu principal desafio, sabendo-se que Ariano corrigia e refazia, muitas vezes, as suas criações: “O maior desafio se encontra na fixação de textos que ele deixou em datiloscritos e manuscritos, e muitas vezes com variantes. Qual a variante mais recente? Até que ponto determinada observação em manuscrito, à margem de um datiloscrito sem rasuras, seria, de fato, encampada pelo autor? São questões muito delicadas, que procuro solucionar levando em consideração nossas inúmeras conversas ao longo de quase trinta anos”.

Ele também ressalta que, sob o ponto de vista do resultado editorial, ter a coordenação artística de Manuel Dantas Suassuna, artista plástico e filho do escritor, e os projetos gráficos assinados por Ricardo Gouveia de Melo, que também conviveu e trabalhou com o autor, “são uma preciosidade à parte, pois ressaltam o valor visual do universo de Ariano e consequentemente ajudam o leitor a penetrar de modo mais profundo no universo mais especificamente literário”.

Manuel Dantas Suassuna coordena, junto com a mãe, Zélia Suassuna, as quatro irmãs, dois dos sobrinhos e a colaboração de Carlos Newton, as decisões sobre a perpetuação da obra do pai. Acredita que, assim, está seguindo o caminho que ele gostaria que fosse trilhado? “Acredito que sim”, responde Dantas. “Em 2013 (ano em que Ariano sofreu um infarto), tive uma conversa com ele, planejamos tudo o que deveria ser feito após a sua partida, depois do encantamento. Então, penso que ele esteja feliz, sim, com a forma com a qual está sendo tratada a sua obra, os encaminhamentos e escolhas que vêm sendo feitos.”

E segue, detalhando a maneira como são encaminhadas as questões: “A maior responsabilidade é dar uma unidade à obra dele − era esse seu maior desejo. É, então, o que nos desafia e nos move também. A gente tenta ao máximo ser guiado pelo pensamento dele. Mas, lógico, tivemos que assumir, seguir as nossas ideias, ter uma independência diante das demandas que vão aparecendo. Obviamente não é a cabeça dele mais que está gerindo, é a nossa”.

A Editora Nova Fronteira celebra os resultados das escolhas e decisões da família Suassuna e seu consultor, levando ao mercado literário um acervo que vai sendo revelado dia após dia: “Já sabíamos que Ariano é um autor muito querido do público. Mas é surpreendente notar como, a cada título que editamos, inédito ou não, há uma procura grande, a ponto de as primeiras tiragens se esgotarem muito depressa”, reflete Janaina Sena, editora da Nova Fronteira e uma das responsáveis diretas pelas publicações ligadas a Ariano. “E os novos livros impulsionam também a venda dos lançados anteriormente. Há ainda os que são adotados em escolas, o que mostra que existe uma renovação constante do público leitor e admirador da obra de Ariano.”

Perguntado se consegue escolher algo a ser destacado entre as novas publicações, Carlos Newton prefere enfatizar a obra como um conjunto. “Considero a obra, como um todo, uma preciosidade. Ariano conseguiu construir um universo mítico e poético absolutamente pessoal, o que é uma das coisas mais difíceis no campo da arte. Todas as suas peças de teatro, seus poemas, seus romances etc. acabam formando uma obra só, uma única e grandiosa ‘Ilumiara’, para usar um termo do próprio Ariano”, define. “Agora, do ponto de vista editorial, de 2014 para cá, a maior preciosidade é, sem dúvida, o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, obra que ele considerava uma espécie de súmula de tudo o que realizou no campo da arte.”

Para 2024, a luz do circo literário de Suassuna se voltará para a sua poesia, resgatando, assim, algo que o autor considerava o âmago de toda a sua criação. “Sou um poeta desconhecido. Mas, na literatura que me entusiasma, a poesia é sempre o chão sagrado no qual a prosa Armorial viceja”, repetia. “Considero a minha poesia, que é praticamente desconhecida, a fonte profunda de tudo o que escrevo, inclusive no teatro e no romance.” A poesia é ainda o gênero responsável pela sua estreia na vida literária, com a publicação do poema Noturno, no Jornal do Commercio, em 1945, quando o autor tinha 18 anos.

A única publicação que revela quantidade significativa de poemas de Ariano Suassuna já tem quase 25 anos; foi organizada por Carlos Newton em 1999 e publicada pela Universidade Federal de Pernambuco. A edição, uma antologia poética, está esgotada.

Agora, Carlos trata de reestruturar o material, fazendo correções, atualizando poemas − uma vez que Ariano reescrevia, como já mencionado, as próprias criações −, incluindo alguns que seguem inéditos até hoje. “A grande dificuldade, no caso, é com o número de variantes, pois Ariano era um perfeccionista autodeclarado. Não me preocupo com uma antologia crítica, pois não trabalho para especialistas. Não tenho interesse em mostrar, por exemplo, o processo de construção de um poema, passo a passo. Meu objetivo é com o leitor de poesia”, afirma Carlos.

Na publicação de 1999, a produção poética de Ariano foi agrupada em cinco partes principais: O Pasto Incendiado, Odes, Vida-Nova Brasileira, Poemas Iluminogravados e Outros. A edição que vem sendo preparada para 2024 promete incluir ainda as iluminogravuras, peças de arte criadas por Ariano nas quais surgem unidos seus poemas e gravuras. A importância das artes plásticas, tão presentes em sua criação, segue ganhando mais luminosidade a cada dia, referendando-o, também, como artista visual.

A vocação para os desenhos e as gravuras pode ser confirmada na Exposição Movimento Armorial 50 anos. Pensada para celebrar as cinco décadas do movimento liderado, em 1970, por Ariano Suassuna, a mostra estreou em dezembro de 2021, em Belo Horizonte − a pandemia forçou o adiamento da abertura. Desde então, circulou pelo Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília e pousou em Campina Grande, na Paraíba, estado de nascimento do escritor, em agosto deste ano.

“A importância da obra de Ariano é que ela nos faz olhar para nós mesmos enquanto nação; nossas singularidades, nossa cultura e as belezas de sermos tão diversos. E, com isso, valorizar o que temos de melhor: a cultura, as artes e o povo brasileiro”, define Regina Rosa de Godoy, idealizadora da exposição. “Foi uma emoção e uma honra muito grande conseguir trazer a Armorial 50 para o Nordeste, começando pelo estado natal de Ariano, e seguindo para Pernambuco, onde ele viveu a maior parte da vida. Estamos em negociações para que as obras do Movimento Armorial sigam para outros estados do Nordeste e depois, quem sabe, para fora do Brasil.”

Quase 300 mil brasileiros já passaram pelos salões da mostra. Em Campina Grande, ela deveria ser encerrada em agosto; foi prorrogada por mais dois meses. No dia 18 de outubro, a Armorial 50 chega ao Museu do Estado de Pernambuco, justamente na data em que, em 1970, um concerto e uma exposição de arte marcaram o lançamento do movimento que propôs a criação de uma arte brasileira erudita, a partir das raízes da cultura popular do país.

Sob sua lona imaginária, o circo suassuniano segue adiante, tocado pelos frutos de suas próprias criações: “O circo é, portanto, uma das imagens mais completas da estranha representação da vida, do estranho destino do homem sobre a terra. O Dono-do-Circo é Deus. A arena, com seus cenários de madeira, cola e papel pintado, é o palco do mundo, e ali desfilam rebanhos de cavalos e outros bichos entre os quais ressalta o cortejo do rebanho humano − os reis, atores trágicos, dançarinas, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós”, definiu Ariano.

Vale ainda reparar nos versos compostos em martelo-gabinete e martelo-agalopado que concluem cada uma das cartas apresentadas no Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores:

“Pois é assim: meu Circo pela Estrada. Dois Emblemas lhe servem de Estandarte: no Sertão, o Arraial do Bacamarte; na Cidade, a Favela-Consagrada. Dentro do Circo, a Vida, Onça-malhada, ao luzir, no Teatro, o pelo belo, transforma-se num Sonho – Palco e Prelo. E é ao som deste Canto, na garganta, que a cortina do Circo se levanta, para mostrar meu Povo e seu Castelo.”

O AUTO DA COMPADECIDA 2
O ano de 2024 marcará uma década de ausência física de Ariano Suassuna. Também celebrará os 25 anos da estreia da primeira adaptação para a televisão do Auto da Compadecida, obra em três atos, escrita por um jovem de 28 anos em 1955, a partir da recriação de histórias encontradas em folhetos da literatura do cordel − justamente o exercício prático das ideias que defenderia com o lançamento do Movimento Armorial, a ser criado 15 anos depois.

Ariano demorou a chegar à televisão: só em 1994, satisfeito com os encaminhamentos e soluções do diretor Luiz Fernando Carvalho, por quem tinha profunda admiração artística, ele permitiu que a sua peça Uma Mulher Vestida de Sol chegasse às telas da Rede Globo − havia recusado diversas propostas anteriores da emissora, que vinham sendo feitas desde a década de 1970. Baseando-se no romanceiro popular nordestino, o texto fora escrito em 1947 como a sua primeira obra dramatúrgica.

Em relação ao Auto da Compadecida, se hoje a peça é um êxito de crítica, arrebatamento de público, conhecida por brasileiros de todos os lugares e idades, não foi assim no princípio: a montagem estreou no Recife, no Teatro de Santa Isabel, em 11 de setembro de 1956, com quase nenhum público. Encenada pelo Teatro Adolescente do Recife, sob direção do pernambucano Clênio Wanderley (1929-1976), chegou a ser suspensa, no terceiro dia de apresentação, por falta de público. “Na primeira noite tinha metade da plateia; na segunda, metade da metade. Na terceira, preferimos suspender”, lembrava Ariano.

A consagração chega em 1957, no Festival de Amadores Nacionais, promovido pela Fundação Brasileira de Teatro no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, quando a encenação leva três prêmios: Melhor Espetáculo, Melhor Diretor (Clênio Wanderley) e Melhor Atriz (Ilva Niño) e elogios veementes da crítica especializada. Segundo Sábato Magaldi, é “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”. Sobre a apresentação no Rio, Ariano relatava: “Ao final, fomos muito aplaudidos. O público subiu nas cadeiras, que eram de madeira, e batiam nelas os pés, em sinal de aprovação”, dizia, lembrando um momento considerado por ele como dos mais marcantes de sua vida.

As gravações da próxima versão do Auto, sob direção de Guel Arraes e Flávia Lacerda, foram marcadas para 20 de agosto; os ensaios começaram em julho. “É um lindo desafio. O que me acalma e conforta é que a equipe de roteiristas do Auto 2 é a mesma que trabalhou com a Ariano para fazer a adaptação da obra do mestre na primeira versão da obra”, analisa o ator Matheus Nachtergaele, intérprete do personagem João Grilo, e um dos poucos a falar sobre a nova encenação.

A assessoria de Guel e Flávia informou que ambos estavam muito envolvidos e “concentrados na finalização do roteiro e na pré-produção do filme”, o que os impediria de dar entrevistas sobre o assunto. Sabe-se que a dupla Grilo e Chicó deve ter a companhia de personagens clássicos da literatura mundial, informação reforçada na fala de Nachtergaele. “Essa equipe maravilhosa, composta por Guel Arraes, João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado utilizou, desta vez, os mesmos procedimentos que Ariano utilizava nas suas escrituras, indo beber em fontes longínquas da nossa cultura ocidental para basear as novas aventuras de João Grilo e Chicó. Isso nos dá uma cama confortável e nos compromete com a maneira de fazer arte que Ariano propagava, homenageava e exercia. Buscar profundamente as nossas raízes para nelas plantar nosso futuro.”

Diferentemente da primeira versão, a cidade de Cabaceiras, no Cariri paraibano, não será cenário para as gravações; a equipe não informou onde serão feitas. Além do ator que interpretará João Grilo, estão confirmadas, no elenco principal, as participações de Selton Mello (Chicó) e Taís Araújo, com a missão de assumir a Compadecida, papel reservado a Fernanda Montenegro na primeira versão.

A versão de Guel Arraes também chegou ao cinema. Antes dele, duas outras adaptações foram levadas à tela grande: Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), dirigida por Roberto Farias, e A Compadecida (1969), primeira versão para o cinema, sob a direção de George Jonas, com figurinos criados por Francisco Brennand especialmente para a montagem.

A primeira publicação do Auto da Compadecida saiu em 1957 pela Editora Agir, selo que em 2002 foi incorporado à Ediouro; a obra passou, então, a sair pela Nova Fronteira, do mesmo grupo editorial. Desde então, 66 anos depois de sua estreia em livro, a editora, que não divulga os números acerca das obras publicadas, vem fazendo reimpressões e novas edições periodicamente. Apenas a lançada em 2018 já registrou 25 reimpressões. “As anteriores também tiveram várias reimpressões, além de uma edição comemorativa (quando completou cinquenta anos), edições de bolso e e-book. E em todos os formatos o livro sempre tem um desempenho excelente”, revelam os responsáveis pela Nova Fronteira.

Nachtergaele finaliza comentando a responsabilidade que o aguarda: “Fazer o João Grilo de novo é uma grande emoção. Há uma responsabilidade bonita para com todos, para com o Ariano, mas também e talvez principalmente para comigo, porque um personagem do tamanho de um arquétipo como o do João Grilo, o Arlequim brasileiro, tão perfeito, tão já eterno antes de eu sequer conhecê-lo”, define. “Quando esse tipo de personagem chega para você é um grande gozo. E ele voltar para você 25 anos depois é um gozo com grandes responsabilidades e um grande desafio: superar as emoções que esse reencontro causa e conseguir fazer de novo o bailado bonito e técnico de entendimento da artesania do texto e do arquétipo do malandro sobrevivente brasileiro nos tempos de hoje. Isso tudo com esse novo corpo que eu tenho agora, aos 55 anos.”

Ele também questiona: “Qual é esse novo ritmo? Até que ponto a aventura é mais mental e menos física? O Arlequim vai se mover com tanta agilidade ou é o pensamento que vai ser mais rápido? Com tudo isso eu estou lidando agora, e com o desejo profundo de devolver para o Brasil o carinho imenso que esse país dedicou ao Auto da Compadecida desde sempre, mas especialmente durante esses 25 anos, desde a estreia da nossa série [de TV; o filme do Auto sairia no ano seguinte]. Acredito que será uma grande homenagem, no fundo de tudo, ao Ariano, principalmente”.

É pertinente afirmar, por fim, que Ariano gostava demais do resultado de ver na tela o seu Auto dirigido por Guel Arraes e, principalmente, do alcance de sua obra desde então. Reverenciava tanto que não fazia qualquer referência à ausência do palhaço-narrador da obra e a ele tão caro − confessadamente um palhaço frustrado. “Tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um mentiroso, um professor, um cantador sem repente e um profeta”, sentenciava.