“Pertenço àquela parte da humanidade — uma minoria em escala planetária, mas creio que maioria entre meu público — que passa boa parte de suas horas de vigília em um mundo especial, um mundo feito de linhas horizontais onde as palavras se sucedem uma por vez, onde cada frase e cada parágrafo ocupa seu posto estabelecido: um mundo que pode ser muito rico, quem sabe até mais rico que o mundo não escrito, mas que de todo modo requer um ajustamento especial para se situar dentro dele.”
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“Quando me afasto do mundo escrito para reaver meu lugar no outro, naquele que costumamos chamar o mundo, feito de três dimensões, cinco sentidos, povoado por bilhões de nossos semelhantes, isso para mim equivale a repetir todas as vezes o trauma do nascimento, a dar forma de realidade inteligível a um conjunto de sensações confusas, a escolher uma estratégia para enfrentar o inesperado sem ser destruído.”
Nada melhor do que começar este pequeno dossiê sobre Italo Calvino com um parágrafo do próprio escritor. O trecho citado é parte de uma conferência lida na Universidade de Nova York, em 30 de março de 1983. Integra o livro Mundo escrito e mundo não escrito, publicado no Brasil, em 2015, pela Companhia das Letras, na tradução de Maurício Santana Dias.
Já no começo desse seu texto nota-se que o autor inclui-se naquela ‘tribo’ de escritores para escritores. Trata-se, no entanto, de muito mais. Quem diz escritor diz, inevitavelmente, leitor, e este tem um papel – inclusive no sentido dramático – do maior interesse na obra de Calvino. De tal modo, que serviu de tema para um livro inteiro de Maria José Calvo Montoro: El problema del lector en la narrativa de Italo Calvino.
Se não para de crescer o interesse pelos livros de Calvino, talvez uma das causas seja a de que tanta é a importância da imaginação nos seus escritos, que o leitor é sempre convidado a estimular a sua. Uma grande recompensa para quem se nutre da alta literatura como de um maná.
Desde há muito Baudelaire definiu esse leitor irmanado com o autor e, sob vários aspectos, seu ‘igual’. Calvino, porém, é de um tipo particular. Como se fosse já um clássico, transcorrido menos de meio século ainda de sua morte. Esse ‘clássico’ talvez um tanto quanto paradoxal, por hipermoderno, mais até do que pós-moderno, vanguardeiro, tardou a ter os seus livros traduzidos no Brasil. Mesmo que a notícia da sua fama e o reconhecimento do seu valor remontem aos anos 1950, foi quase no fim do século XX que, finalmente, os brasileiros começaram, de fato, a lê-lo profusamente – em Portugal isso aconteceu muito antes.
O suplemento Letras e Artes, do jornal carioca A Manhã foi um dos primeiros a mencioná-lo no país. Um exemplo é esta nota de 8 de fevereiro de 1953:
“La formica argentina, de Italo Calvino é uma novela impregnada pela atmosfera de Kafka: a história simples de um jovem par que vai habitar uma casa infectada de insetos, tornando-se dura e lenta a sua adaptação nesse ambiente. Há muito simbolismo nessa história, mas não bastante para empanar-lhe o frescor e verossimilhança. O desespero dos heróis diante dos detalhes de natureza grotesca produz um efeito cômico apreciável.”
Calvino, ao comentar essa história, quebra as ilusões de quem nela vê um mundo fantástico: “é o relato mais realista que escrevi na minha vida; descreve com absoluta exatidão como se deu a invasão de formigas argentinas nas lavouras de San Remo e em grande parte da Riviera di Ponente na época da minha infância, anos vinte e trinta”.
Nas páginas seguintes, o leitor tem um conjunto de reflexões e interpretações inéditas e exclusivas em torno de Italo Calvino, no seu centenário de nascimento. Abre-se com uma síntese das celebrações que estão a ocorrer na Itália, na colaboração especial do poeta e tradutor Alípio de Carvalho Neto. Ele também brinda o leitor deste jornal com suas versões da poesia de Calvino, quase de todo desconhecida nestes trópicos. Como também as revelações em torno de que sua “iniciação” no mundo das artes deu-se no desenho, não nas palavras. Algo que termina por fazer, ao menos nesta particularidade, próximo de um episódio biográfico quase idêntico em Gilberto Freyre. De Gilberto é o termo tríbio, aplicado a tempo; na sua homenagem a Calvino, o poeta Alípio retoma esse neologismo.
Há autores cujas obras são belas e originais nos textos e nos títulos escolhidos. É o caso de Italo Calvino. Por isto tão aliciante e fácil costuma ser parafraseá-lo. Quem conhece bem suas “cidades invisíveis” encontrará uma releitura inusitada de sua ideia nos desenhos de Guazzelli. No âmbito de um mergulho, digamos, mais “filosófico”, situa-se o artigo do romancista e tradutor israelense Ioram Melcer. Às famosas “seis propostas”, ele acrescenta uma sétima, em rigorosa associação com a contemporaneidade.
Vertente menos conhecida de Calvino é a sua integração ao grupo Oulipo, que está comentada pela ensaísta Zuleide Duarte.
A contribuição mais acadêmica vem do professor Luiz Ernani Fritoli, professor da Universidade Federal do Paraná. É da autoria dele a tese Italo Calvino e Osman Lins: da literatura combinatória ao hiper-romance. Selecionamos um trecho dessa abordagem, que, além da originalidade, pode servir até para uma antecipação das comemorações do centenário de nascimento de Osman, a completar em julho do próximo ano. Em Pernambuco a aproximação Calvino/Osman também foi feita num trabalho acadêmico: em 2003, por Cristina Almeida, na dissertação Paginário: A imaginação crítica em Osman Lins e Italo Calvino.
As efemérides terminam por dar uma razão irônica àquela boutade de Fernando Pessoa sobre as biografias em que só há duas datas: da nascença e da morte. Há certamente uma terceira, e a ela se reporta este breve dossiê: da ‘renascença’, de estimular novas leituras e releituras de um escritor. Neste caso específico, quem sabe sirva também como uma nota de rodapé ao Pasquim, no obituário “Abotoaram”: “Ítalo Calvino, 62 anos, que não gostava de livro direitinho com começo, meio e fim. A vida foi lá e tocou-lhe, direitinho, um começo, meio e fim”.