É possível que Machado tenha tido uma vida de monótona a chata. Mas não vamos exagerar de cara: talvez seja razoável dizer que ele teve uma vida discreta. Fofocas e lendas a seu respeito sempre nos perseguem. Uma das mais famosas fala, pelo menos, de um triângulo amoroso, envolvendo outro escritor famoso. Carlos Heitor Cony, por exemplo, conta, em longo artigo, que a mulher de José de Alencar teve um filho de Machado de Assis. Chamava-se Mário de Alencar e pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Coisa de pai para filho.

Machado de Assis sempre soube usar, e muito bem, o dom do mistério, que rondou sua obra, desde o subestimado Helena, por exemplo. Neste romance, as relações entre a protagonista e o pai se mantêm misteriosas até as páginas finais. Mais tarde escreveria a Missa do galo, que veio a se constituir num conto antológico , sem esquecer, é claro, o discutido e polêmico Dom Casmurro. Todos envoltos na dúvida, essa permanente companhia machadiana.

Sabe-se, por exemplo, que ele escrevia, inicialmente em jornais para moças. O que o obrigava, no século 19, a usar a sutileza e a elegância, além do mistério para fazer “passar” seu olhar sui generis sobre o mundo. No fundo, ele sabia que precisava melhorar muito. Veio a famosa crise dos 40 anos. Mas que crise é essa? Dizem os seus biógrafos que Machado tinha constantes surtos de tristeza e melancolia – que hoje aprendemos, enfim, a chamar de depressão – , sofria da vista e queria mais consistência na obra. Foi Carolina quem o ajudou. E daí saiu um novo Machado, mais técnico, aproveitando os seus melhores dons. Feito o dom do mistério – que Lucchesi chama de o dom do crime.

Passou a ler os ingleses com mais insistência. Dom Casmurro, por exemplo, deu-lhe o completo amadurecimento. É o romance, por assim dizer, digressivo. A ponto de usar um narrador – conforme afirma Fernando Sabino- com função. De digressão. Sabino identifica no romance, pelo menos, dois narradores – Bentinho, narrador oculto, e Dom Casmurro – narrador digressivo. Por isso mesmo, a narrativa torna-se cada vez mais misteriosa. Misteriosa a narrativa, misterioso o Machado.

Além disso, usou a estratégia do Otelo, de Shakespeare, invertendo a posição dos personagens. Bentinho, e que deveria ser Otelo, para a estrutura interna da obra, passa a ser Iago, para enganar e seduzir o leitor. Não permite que Capitu se defenda, nem lança luzes sobre o comportamento dela através de outros personagens. Assim ela se transforma em personagem de criação indireta, ou seja, personagem que só pertence a Bentinho. Fora dele, ela não existe. Como ela não se defende, nem outro personagem pode defendê-la , o mistério se aprofunda. O leitor torna-se vítima de Bentinho/ Iago e não de Bentinho/Otelo como é de se esperar. É preciso lembrar, ainda, que o nome de Bentinho é Bento Santiago.

Perceba-se, dessa maneira, que Machado tinha o dom do mistério, mas tratava-o com consciência técnica. Nada espontâneo, intuitivo, mágico. Sabia como tratar cada coisa conforme a necessidade. Para isso, estudou muito e contou com a ajuda de Carolina, que, entre outras coisas, revisava os seus textos.

Para quem viveu entre tantas mulheres, a maioria ficcionais, o escritor não precisava de muito. Não é fácil conviver com Capitu e Conceição – personagem de Missa do galo –, dormindo e acordando com seus mistérios e sinuosidades.

Marco Lucchesi abre o seu primeiro romance O Dom do crime com uma digressão que aborda, justamente, a saúde do Bruxo do Cosme Velho ou do personagem central, como sabermos quem é quem? Ah, esses mistérios de Machado: “O doutor Schmidt de Vasconcelos sugeriu-me um livro de memórias. Seria uma forma de não deixar em branco o meu passado, além do benefício de espantar os males das velhice. Não todos, que são muitos, alguma parte, talvez, algum resíduo. Decidi seguir o seu conselho, não sem temores e incertezas, diante de um passado cuja imagens se revelam confusas, imperfeitas, como se fossem um mosaico inacabado, ninguém do que fui ou deixei de Ser. Procuro abrigo à sombra das estantes. Cheias de livos e remédios, filosóficos e alopáticos. Meu pobre estômago em pedaços, ou rins alquebrados, os olhos míopes ou astigmáticos. Sinto uma forte atração pela homeopatia, argumento de peso para me libertar do alto custo dos venenos ministrados pelo doutor.”


O livro
O Dom do crime
Editora Record
Páginas 160
Preço R$ 29,90