Ele tinha um amor de apache pelo Recife. E conhecia as veias abertas da cidade. Frequentava os melhores restaurantes, os melhores bares e gostava de cantar músicas românticas, as mais antigas, e os sucessos recentes de boa qualidade, sempre acompanhado por alguém que tocasse violão. Ouvia e contava piadas, que concluía com uma boa risada. Era um homem de hábitos demarcados, como são poucos.

Fazia-se solidário de todos os amores e de todos os encantos, assim como de todos os injustiçados. Encerrava uma rodada de bebidas, ou de piadas, cantando invariavelmente Bandeira branca, que repetia e repetia, até a exaustão. Era seu mantra. Mas não sei se ele queria paz, como diz a letra da canção. Talvez quisesse, mas sua paz era outra. Não era banal.

Relembrava todos os amigos, sempre com atenção e respeito. Escrevia crônicas com grande habilidade, situando-se entre os melhores do país. Publicada, a crônica se transformava em leitura obrigatória em lugares dos mais diversos, sobretudo em meio aos intelectuais, jornalistas e aspirantes a escritor. Ele sabia entender o que era o Recife, e o que Recife precisava ler sobre si próprio. Renato Carneiro Campos (1931-1977) escrevia como vivia e era isso que o tornava grande. Por isso, a leitura dos seus textos ainda assombra, como assombrava há décadas. Não envelheceu. E muito menos amarelou. Suas palavras, ainda que amareladas, nunca amarelaram. Não há bolor em suas ideias.

Foi ele quem entendeu que o Recife tem cor. Uma cor específica, de certas ruas, que ainda hoje a gente encontra. É só sair de casa que a vida pode amarelar. Quem esquece suas palavras? “Amarela é a cor das mesas, dos bancos, dos tamboretes, dos cabos das peixeiras, da enxada e da estrovenga. Do carro de boi, das cangas, dos chapéus envelhecidos, da charque. Amarelo das doenças, das remelas dos olhos dos meninos, das feridas purulentas, dos escarros, das verminoses, das hepatites, das diarreias, dos dentes apodrecidos.”

Pena que ele não é mais editado. Lembramos suas frases e máximas frequentemente, mas sem a ênfase do livro ali exposto na livraria, ali à mão, ficamos sem saber de onde mesmo nos lembramos daquilo. Renato, de onde mesmo, Renato? Quando você disse isso, Renato? E por quê? Nada o assombrava, nem mesmo as injustiças da ditadura. Estava sempre de plantão para defender os perseguidos. Nesse instante, falava alto, embora gesticulasse pouco. Dizia o que muitos não queriam ouvir, e o que os medrosos preferiam esconder. Muitas vezes telefonava para Gilberto Freyre, em plena madrugada, exigindo que ele tomasse alguma posição. Se tinha alguém que precisava tomar uma posição era Gilberto, mas como? Renato insistia e insistia.

Conta-se que evitou dezenas de demissões no então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, quando os militares encaminharam uma lista de nomes indesejados. Renato estava sempre atento. Amarela era a sua cor, a da atenção, de eterna atenção, que nos faz parar, refletir, antes de prosseguir ou desistir. A vida não admitia, nem admite, desavisados. Aqueles eram anos difíceis, de chumbo, como costumam dizer.

Costumava me procurar no Diario de Pernambuco, onde exerci várias funções, desde repórter a secretário de redação, quase sempre ao lado de Zenaide Barbosa, irrompendo na madrugada, antes do jornal rodar, aos gritos – “Carrerão, Carrerão” –, e dali saíamos parar rodadas de chope no Savoy, acompanhadas de bacalhoadas pela madrugada inteira. Falávamos de Literatura, sempre recomendava, entusiasmado (sempre entusiasmado, era um homem de ênfases), a leitura de Lord Jim, de Conrad, e Quarteto de Alexandria, de Durrel. Só dia claro íamos para casa e, pela manhã, voltávamos a nos encontrar no Joaquim Nabuco, onde ele começava e escrever a crônica da semana. Escrevia um primeiro parágrafo com esferográfica, num papel comum, depois mudava de mesa e escrevia outro parágrafo. Entre um e outro, contava e ouvia piadas, fazia breves discursos.

ENTRE ESCRITORES
A amizade era uma constante na vida de Carneiro Campos. Uma de suas marcas. Tinha muitos amigos e gostava de conservar as amizades. Entre as mais fortes, como o romancista Hermilo Borba Filho. Era de se esperar: grandes escritores se entendem bem juntos. Com Hermilo, conversava noites e dias inteiros. Entrava pela porta da cozinha e gritava “Hermilo, você me ama?”, mexia nos pratos do fogão e os dois começavam a rir. A conversa girava em torno de política e de literatura. E a cachaça, sempre era acompanhada por algum caju.

Certa vez, Hermilo concedeu uma inesquecível entrevista para Renato, com o título “Assim fala um escritor maldito”. Como a palavra “maldito” importa quando falamos de Literatura, não é? Para Renato, Hermilo era um “homem- -orquestra”. Dramaturgo, romancista, ensaísta e diretor de teatro. “É primeiro time em todas essas atividades”. Afetuoso, Hermilo escrevia louvações em suas colunas semanais do Diario de Pernambuco, ressaltando as qualidades dos amigos. Um deles, é claro, Renato. Republicamos aqui ao lado esse texto, publicado originalmente em fevereiro de 1974. Só um grande escritor para entender um outro. Não, melhor. Só um grande amigo para entender um outro.

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