Um four de reis e uma canção: é assim que vejo meu amigo Renato Carneiro Campos nas tardes de domingo nos verões do Recife, à sombra das mangueiras do seu sobrado da Rua das Pernambucanas, no bairro que tanto ama. Jogo alto no pôquer e alma aberta para o lirismo, uma canção cafona e um samba de partido-alto, uma imensa alegria de viver, no riso e nos ditos, um entranhado sentimento de região que se traduz nas iguarias que come, nas bebidas que bebe, nos artigos que escreve, nos sonhos que sonha, nas palavras que fala, nas pessoas que ama, nos quadros que contempla. Patriarca de pouca idade, barriga lógica, destemperos de linguagem, impiedade aparente com os inimigos, doçuras com os amigos, desabusado no protesto contra qualquer forma de intolerância.
É de vê-lo nas discussões literárias, extremado, dono de uma memória prodigiosa, irônico, pleno de humor, arrasador, quando perdido sempre dando a volta por cima (para citar Vanzolini que ele tanto ama) com um dito espirituoso, transformando a raiva no riso e o riso em ternura; é de vê-lo sisudo em reuniões oficiais, muito sociológico, competente e largado; é de vê-lo defendendo um amigo de qualquer acusação, a unhas e dentes, bofetadas e caneladas, de armas na mão; é de vê-lo atacando um desafeto, impiedoso, reduzindo-o ao clássico subnitrato de pó de vento, mas estendendo a mão imediatamente se o desafeto dele precisar; é de vê-lo desarmado, na rede larga, ao vento, barrigudo, dormindo o sono dos satisfeitos; é de vê-lo cômico, sisudo, chocarreiro, anedótico, grave, sofredor, professoral: condição do homem; é de vê-lo nas ingênuas mentiras propositais para o riso e nas sérias mentiras, que podem salvar amigos e pessoas; é de vê-lo de mãos estendidas pedindo para os outros; é de vê-lo nas citações – Balzac, Eça, Dostoiévski, Proust que as tem para todas as ocasiões; é de vê-lo também injusto, brigão, doido, ferino: condição do homem; é de vê-lo nos grandes defeitos, valentemente, que os tem grandes e não pequenos como os pequenos; mas sobretudo é de vê-lo fiel e na retranca da metralhadora na defesa de Soljenitzin ou de José da Silva, imprecando contra patentes e notáveis, notórios e excelências.
Acho que foi Hermann Hesse quem disse ter horror ao homem sem defeito. Séra um ser anódino, molusco, amorfo, aquele que não tiver pecados. O meu amigo Renato Carneiro Campos os tem, gordos e sazonados, pernambucanos da mata, mas as qualidades – ah!, as qualidades são, todas elas argênteas, luminosas, abertas como a infância, de valor puro como o tinido de um cristal. Já experimentei essas qualidades e só posso medir os meus amigos pelos benefícios que trazem e não por seus momentos de demônio. Quem não é anjo e demônio ao mesmo tempo?
Um four de reis e um copo de cerveja, nas festas; um folha de papel e uma máquina de escrever, na criação; um enjoo e um fastio quando o ambiente é medíocre; um berro e um salto, no protesto e na raiva; um dito e uma gargalhada, numa reunião; um desaforo e uma cuspida para os maus. É assim o meu amigo Renato: Bode, Pássaro, de repente Rio, às vezes Erva, outras Fruto, Campos de sobrenome, Carneiro de nome, na vida, na contradição, na vida, no amor e no ódio, na vida.