O sol está quente, fervendo. No trânsito engarrafado, uma carrocinha com papelões é guiada por crianças. Em mesas amarelas marcadas de cigarro, três homens tomam cerveja em copos americanos. Pessoas se amontoam numa parada de ônibus: calças jeans e o peso do suor no colarinho manchado. Na calçada, do outro lado da rua, um rapaz dorme na sombra. O poste repleto de papéis gastos alerta: Madame Marlene resolve seus problemas. Um gol cinza escapa por pouco de uma colisão contra os gelos baianos, enquanto um motorista escuta atento ao programa de Geraldo Freire. É, o Recife pode até ter mudado, mas a cor permanece igual, Renato. Ainda podemos emoldurar tuas palavras nos nossos porta-retratos: a capital é a mesma rosa amarela que você fotografava décadas atrás. Contudo, é necessário saber olhar para poder encontrá-la, caro cronista, pois as molduras mudaram. Teu Recife cresceu, extrapolou fronteiras e, coagido por cercas elétricas, caminhou entre becos sem asfalto rumo à modernização do século 21. Agora já chegamos ao ano em que completarias 80 verões encharcados de suor e, apesar das mudanças, ainda podemos enxergar o amarelo do teu tempo nas entranhas da cidade.

Não é fácil entender como funciona essa tua geografia. À medida que vamos mergulhando nas tuas crônicas, entrevemos uma espécie de codificação da cidade que poderia ser identificada como uma identidade cultural recifense. Poderia, mas estaríamos simplificando conceitos e realidades. Afinal, tu mesmo publicastes, num longínquo domingo de 1972 que “ser autenticamente recifense é muito complicado, um mistério muito grande, apesar de alguns considerarem uma mágica besta”. Com o passar dos anos o mistério só se intensifica. O desenvolvimento urbano tem modificado nossa paisagem de tal forma que teu Recife precisa ser re-localizado dentro da quantidade de cidades que agora habitam esta mesma urbe.

Assim como tua geografia resiste, a metrópole de Gilberto Freyre também permanece cheia de pudores: avenidas inteiras de grandes prédios envidraçados e portões eletrônicos que, substituindo os antigos casarios, compõem uma cidade cheia de reservas. Somadas às heranças da aristocracia açucareira, ilhas de ferro e concreto constituem um Recife que conserva o desejo insensível de se modernizar: a expressão máxima do desespero pelo novo são dois prédios que posam como alienígenas em meio aos antigos armazéns. Shoppings sobre manguezais, asfalto cobrindo a área da praia e 20 e tantos andares de corredores tapando a vista do mar. “A busca frenética de originalidade, de ser novo, é uma das coisas mais velhas da humanidade”: eles ainda não entenderam aquilo que há 40 anos você já tentava lhes explicar e procuram soluções rasas para levar de volta a capital ao posto de terceira cidade do País. De aposto em aposto, ganhamos o título da cidade com a maior vontade de estar entre as maiores da América Latina.

Dessa maneira, o Recife que tu teimavas em retratar foi pouco a pouco acossado por muros altos e calçadas estreitas. Espremido, teve que se disfarçar para sobreviver, tornar-se invisível. Hoje tua capital já não tem fronteiras definidas em cartório: foi empurrada para a periferia e passou a dominar outras cidades da região metropolitana. Olinda, Paulista, Jaboatão, Camaragibe, Cabo... Todas elas, paisagens amarelas. A cor de tuas crônicas está nos pelos que a mulata doura com coca-cola na Praia de Rio Doce, no metrô pichado em que uma senhora gorda dorme a caminho de Tejipió, nas folhas secas que o homem pesca do mar cansado em Barra de Jangada, no copo de pinga que um descamisado bebe numa esquina de Maranguape 2, na caixa de bananas estragadas da feira de Cavaleiro. É nessas cidades vizinhas, para onde o Recife estende suas asas, que jaz a maior parte dos últimos quintais da metrópole. Aqueles quintais de verdade, com saguis pulando entre as plantas mais altas e com chão de terra batida, onde nascem pés de jaca, acerola, jambo, fruta-pão e tamarindo. Junto com os terraços eles estão em extinção na capital, Renato, começam a virar artigo de colecionador.

Mas restam recantos na cidade do Recife onde também podemos encontrar o suor da realidade que retratavas. Como nas ladeiras dos morros onde crianças brincam ao lado de córregos malcheirosos, ou na primeira ponte de concreto da Ilha de Deus, ou nas placas desbotadas, queimadas pelo sol, na Avenida Norte. É no centro, contudo, que o povo se reúne como força de resistência para mostrar que a capital também lhes pertence. Sem medo de expor seus poros dilatados de calor, marcham em exaustivas multidões, apropriando-se daquelas ruas e indiferentes a qualquer chama de progresso que atrapalhe a jornada. Para ir ao centro do Recife é preciso enfrentá-los, mas o confronto tem vitória garantida: todos aqueles que ali pisam são subjugados e viram apenas mais um componente da massa amarela, tua gente. Aquelas são as últimas ruas da cidade onde os pés valem mais que as rodas: em oposição às avenidas desertas de pedestres e entupidas de automóveis que se multiplicam no resto da metrópole, o centro é território de quem anda a pé. Lá trabalham, compram, bebem e depois pegam o ônibus de volta para casa. No fim do dia, a Avenida Conde da Boa Vista se enche de olhares cansados que saltam às janelas dos veículos à procura de espaço, banhados pelo calor de um dia inteiro. Há aqueles recifenses que, sem caminhos para percorrer a pé, nasceram com outra percepção de tempo. Para eles tempo gasto nada tem a ver com distancia percorrida, mas com momentos de espera: esperam um elevador, esperam o táxi, esperam uma carona, esperam o fim do engarrafamento, esperam voltar cedo do trabalho pra correrem numa esteira. Essas pessoas, ao contrário das pernas que enchem a Rua das Calçadas, suam apenas entre os quatro espelhos de uma academia de ginástica. O teu Recife, ao contrário, sua no trabalho e na bodega da esquina, sem pudor de existir.

Ah, caro cronista, teu tempo amarelo foi fonte de inspiração para um cinema que partilha contigo a forma de olhar uma realidade que nem todos sabem como enxergar. “O pudor é a forma mais inteligente de perversão”, problematiza o cineasta Cláudio Assis no seu filme Amarelo manga. O longa-metragem retrata as esquinas do centro onde podemos ver o teu povo de estômago e sexo suando entre a morte e o prazer. Foi assim que tua geografia entrou neste século, emoldurada em telas grandes. O filme foi visto por milhares de pessoas que foram tocadas com a versão atualizada da tua cidade. É, Renato, uma das coisas que aconteceu desde suas crônicas dominicais foi o surgimento de uma plateia, admiradora dessa tua maneira de olhar o Recife. Agora podes ficar sossegado, tu não és o único cavaleiro da triste figura nesta terra “trituradora de Quixotes, onde Dulcinéias zombam do seu fidalgo ridículo e da sua loucura itinerante à procura de grandeza”. No entanto, ainda há moinhos a serem derrubados: apesar dessa tua legião de seguidores, não há uma só publicação de tua autoria nas prateleiras das livrarias. A última edição de Sempre aos domingos, livro-guardião de teu espírito, foi publicada pela editora Bagaço em 2006. Lá se vão cinco anos e uma geração precisa ser despertada pelo teu olhar.

Tantas coisas aconteceram nesse tempo que a contemporaneidade de tuas palavras torna-se cada vez mais impressionante. Talvez essa atualidade seja resultado de um esforço bem sucedido de tentar enxergar o cerne das coisas. Talvez seja porque tu, de fato, desvendasses o mistério. Enfim, só nos resta continuar a ler tuas fotografias e imaginar o que dirias diante de inventos que caracterizam tão fortemente nossa época, como o carrinho de CDs piratas, a câmera fotográfica digital, o celular, a internet. São tantas as criações pós-modernas que poderíamos até pensar que estamos bem longe do teu Recife de saudades e maledicências, com rios transformando-se em esgotos e incontáveis submocambos erguidos entre verminoses e enxadas. Mas basta um pouco mais de clareza no olhar para perceber que as novidades servem, no fim das contas, para retocar o amarelo que preenche a paisagem da nossa capital. Te garanto, meu caro, pressionada entre o novo e o antigo, Recife continua sendo “uma cidade que pede mais embriaguez, que boemia”.

Fellipe Fernandes é escritor e jornalista.