Nunca escrevi um livro, mas imagino a tristeza que seria autografá-lo numa noite e, tempos depois, descobri-lo intacto em um sebo, com meu carinho e minha assinatura e a quase certeza de que ele foi, apenas, folheado. Fernanda Young e Daniel Galera talvez sentissem essa tristeza, estivessem eles numa sexta-feira à tarde no Sebo Pinheiros, em São Paulo. Numa das primeiras páginas de Aritmética, da polêmica autora que posou nua outro dia, o fotógrafo J.R. Duran foi exaltado: “Duran, obrigada pela foto inteligente. Um grande retrato, para uma sempre inadequada escritora. Beijos, Fernanda Young.” Era 16 de abril de 2004, e, quase seis anos depois, sem riscos nem dobras, a obra repousava sobre um caixote de feira. Embaixo dele, constava um exemplar de Até o dia em que o cão morreu, do gaúcho Daniel Galera. “Para J.R. Duran, uma história de amor e perda. Um grande abraço, Daniel Galera”. Texto mais simples, que não demonstra uma relação maior entre o autor e o leitor. Mas, com ou sem apego, ambos os títulos foram parar nos fundos sem poeira de um sebo.

“Quando vejo dedicatórias, fico pensando: nossa, a pessoa comprou o livro, pegou um autógrafo e agora o vendeu por dois reais”, ri a simpática e solícita vendedora que tem um patrão com postura oposta à dela. Para evitar esse tipo de situação, jornalistas que cobrem literatura contam que o jornalista Elio Gaspari nunca autografa seus livros, mas sim um cartão, que é colocado dentro do exemplar. Consta que ele não quer correr o risco de constranger esse tipo de leitor (ou consumidor, apenas) que vai vender a publicação no sebo com o autógrafo.

Uma dedicatória evoca tanta coisa. O autor escolhe dedicar um livro a alguém – à família, ao grande amor, a outro autor que foi responsável pela sua própria descoberta. Em noites de autógrafos, este mesmo autor encara filas imensas (e dá graças a Deus, afinal ninguém quer um lançamento vazio), se desdobrando para criar frases que expressem alguma coisa de verdade. Outros se limitam a escrever um beijo, um abraço, formam a turma dos genéricos. Quem ganha livro de presente, às vezes encontra palavras de motivação, de agradecimento, de amor. Quem os ama de amor táctil, como disse Caetano em Livros, provavelmente enche as paredes de casa com um número cada vez maior de exemplares, muitos deles com palavras de carinho. Quem, por falta de espaço físico ou emocional, decide se livrar desses objetos fornece um material primoroso para quem os encontra em sebos, bibliotecas, terminais de ônibus.

No mesmo Sebo Pinheiros, um exemplar d’A montanha mágica, de Thomas Mann, guarda a inscrição: “A Renata, ‘um feitiço de simpatia’. Somos pouco visionários, talvez sabemos! O amor correrá e o beijo se disseminará célere de boca em boca”. Renata, tão querida, tão elogiada, precisava de uns trocados? Ou quis se livrar de uma história que não teve um final feliz? Em um exemplar de A maior verdade do mundo, de OG Mandino, José Luiz escreve para Liberty: “A felicidade não é um fim, mas um meio. Ninguém é feliz, para ser feliz, mas para fazer alguém feliz. Por tudo que você fez por mim neste ano. Por tudo que fizemos pela CEF. Muito obrigado”.

Foi por encontrar uma dedicatória que Shaun Raviv começou um grande projeto, o Book Inscriptions (www.bookinscriptions.com), que reúne na internet achados de vários lugares do mundo. Ele estava em um bar em Manhattan, Nova York, em 2002, quando encontrou um exemplar de The road to human destiny, de Mary Lecomte du Noüy, onde estava escrito “Joey, eu te amo tanto! Você ultrapassou a definição para tudo. Eu sempre vou apreciar nossos momentos orgásmicos (sic). Amor e resistência, Mark”.

“A dedicatória de Mark para Joey era tão forte que peguei o livro, que falava sobre um cientista na lista negra, e o li. Daí, alguns meses depois, eu estava numa loja de livros usados e encontrei outra dedicatória e pensei que seria um hobby divertido colecioná-las”, disse Raviv, em entrevista ao Suplemento. “Essas dedicatórias, que não devem ser confundidas com autógrafos de autores, são mensagem pessoais, escritas com caneta e foram dadas de presente. Algumas são tão pessoais que é quase impossível que elas tenham se separado de seus donos.”

O tipo de dedicatória mais comum que Shaun costuma encontrar é “Feliz Natal”, mas ele não fica com elas. “Fico apenas com aquelas que são diferentes. As mais valiosas para mim são aquelas tristes, que só podem ter sido escritas por pessoas que estavam muito agoniadas na época.” Como a que foi escrita por uma Annie no livro And spring shall come, de Walley Dean. “Candle Light, um pensamento especial para um alguém especial, que me faz brilhar e sorrir e sempre traz o melhor de mim. Uma espécie de inspiração. P.S.: Estou esperando que tudo dê certo. Eu sou do tipo preocupada! Cuide-se, ok?”

Uma outra é ainda mais enigmática e foi encontrada em um catálogo do College de Vermont, datado de 1970-1971. “Querida mamãe, esta pode ser a última vez que vocês todos me veem e isso é porque Debbie é louca e, se eu ficar por perto mais algum tempo, estarei na mesma condição que ela.”

“Um dos motivos porque eu acho a maioria das dedicatórias tristes é porque elas foram presentes em algum ponto, e as palavras escritas ali soam tão pessoais... E mesmo assim os livros foram parar numa loja de livros usados, numa esquina, numa venda promocional de bibliotecas”, analisa Shaun, que gosta de escrever dedicatórias especiais, na esperança de que as pessoas que presenteia fiquem com os livros.

ENCONTROS
Algumas dedicatórias conseguem fazer com que a leitura de um livro comece antes mesmo da primeira página. Foi assim com a jornalista Larissa Brainer, que encontrou pequenas histórias de amor em livros aleatórios.

A primeira estava escrita num exemplar de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, que ela encontrou na casa dos pais, em uma pilha de livros que seriam jogados fora. “Lala, este é um dia comum como qualquer outro, mas com uma grande diferença, pois estamos juntos, aqui e agora. Vitória, 12/06/82, Rivo”.

“O de Gabo herdei de meu pai. Anos antes de eu nascer ele pegou emprestado com uma amiga e nunca devolveu. Encontrei na estante, empoeirado. A dedicatória de Dia dos Namorados fofa me fez ter mais vontade ainda de ler o livro. Fora a coincidência do apelido da dona, que também é o meu. Fico imaginando como pode ter sido especial aquele 12 de junho de 1982 para minha xará. De vez em quando releio a dedicatória, para não deixar de lembrar que estar apaixonado faz parte do dia a dia também.”

A outra, escrita em Zen e a arte da manutenção de motocicletas, de Robert M. Pirsig, dizia: “Na verdade, eu comprei este livro para lermos juntos. Achei que você ia gostar do fato de podermos ler alguma coisa que tem a ver com os dois e discutir, etc. Mas agora o deixo com você; é para você, foi muito por você… Amor, Jô”.

“Alexandre, meu marido, comprou o livro pelo site Estante Virtual (www.estantevirtual.com.br), sem saber da existência da dedicatória. Quando o livro chegou, que ele leu, sentiu o baque. As palavras fazem a gente sentir a dor da despedida de quem escreveu essa dedicatória. E, ao mesmo tempo, me pergunto o que (todas as lembranças, emoções etc) levaria alguém a se desfazer de um livro com uma dedicatória assim.”

PRECIOSIDADES
Até que com frequência, Leandro Antoniasse, do Sebo Avalovara, encontra exemplares autografados pelos próprios autores. Dia desses achou um exemplar de Visão do paraíso autografado pelo autor Sérgio Buarque de Hollanda. “Era uma dedicatória simples, que dizia ‘um abraço cordial do amigo Sérgio’”, lembra.

O mineiro Carlos Drummond de Andrade é um dos campeões das dedicatórias. “Já ouvi histórias de que ele chegava a cobrar por algumas”, conta Antoniasse. Nas conversas com autores e frequentadores do sebo, o vendedor acabou descobrindo, também, que o dramaturgo Plínio Marcos fazia dedicatórias de acordo com seu público-alvo: “Para suas mulheres, amantes, musas, ele fazia textos imensos, às vezes incluía até uma poesia.” Outro que aproveitava o viés literário para um algo a mais era Jorge Amado. “Uma vez peguei um livro dedicado para uma certa Maria. Ele dizia que esperava que o livro chegasse à altura dela.”

O fetiche pelo autógrafo do autor transforma o sebo em parada estratégica para aqueles que querem tirar proveito da fama dos outros. “Um dia chegou um sujeito aqui querendo vender uma primeira edição de Grande Sertão: Veredas, supostamente autografada pelo Guimarães Rosa. Mas não era”, atesta Antoniassi – e ele sabia que não era porque já havia estudado todas as nuances da obra do autor e dele próprio durante as aulas no curso de Letras. “Quando falei que a assinatura não era do Guimarães, o sujeito ficou nervoso. Ele quis catapultar o preço e nem precisava, porque uma primeira edição já é valiosa.”

NA NOITE DE AUTÓGRAFOS
Para os autores, noites de lançamento de livro misturam prazer, ansiedade e dúvida sobre o que escrever para todas aquelas pessoas que formam a fila de cumprimentos.

“É sempre um momento tenso, mas também especial. O dedicado sempre espera ser tocado, e quem dedica sempre tenta ser tocante, em respeito e por afeto. Escrevo sempre o que sinto vontade de dizer na hora. Acho que o legal da dedicatória é falar banalidades, explorar o momento que aquilo está acontecendo porque a pessoa que guardar o livro vai lembrar com carinho depois. Se é amigo ou alguma pessoa íntima fica mais fácil, você pode usar as palavras e piadas particulares. Mas em regra geral o nonsense é sempre uma boa fonte de inspiração”, afirma a escritora Bruna Beber, autora de A fila sem fim dos demônios descontentes e Balés. “Se dedicar é um dom, acho que tem gente que não sabe escrever dedicatória e eu acho que sou uma delas. Ultimamente aprendi que você pode dedicar um livro escrevendo nele inteiro e não só no frontispício. Fica mais divertido.”

E as idas e vindas que um livro pode travar ao longo de sua vida útil, acabam gerando surpresas: “Outro dia aconteceu uma situação nova: eu reautografei um livro que já tinha autografado. Uma conhecida comprou meu primeiro livro num sebo e ele veio com a dedicatória da primeira compradora. Foi engraçado.”

Antes da noite de autógrafos, o autor enfrenta a decisão de dedicar seu novo livro a alguém, ou não. Bruna prefere não escolher alguém. Michel Laub, autor de O segundo tempo e Longe da água, fez isso apenas no seu primeiro livro. “Ali agradeci à família, à minha namorada na época, a todos os meus amigos, aos cachorros etc. Depois não fiz mais por várias razões – algumas de ordem particular, mas em geral porque não sentia que o livro tinha algo a ver com alguma pessoa em especial, ou que sem alguma pessoa o livro não existiria. Mas, casualmente, estou lançando um livro agora no primeiro semestre e vou dedicá-lo ao meu pai, que morreu no ano passado.”

Na noites de autógrafo, Laub opta por dedicatórias--padrão. “Não tento ser engraçadinho improvisando frases espertas na hora (quando tento, fica meio patético). Em geral estou um pouco nervoso, então não arrisco muito e faço uma dedicatória padrão, tipo ‘para fulano, com um abraço do Michel’. A dedicatória é uma síntese, e nunca fui bom nesse tipo de coisa.”

Postura oposta tem o ilustrador Rafa Coutinho, que sempre tenta fazer alguma coisa especial em seus livros, como Cachalote, em parceria com Daniel Galera. “Lembro muito de como me sentia quando era mais novo e ia nos lançamentos dos meus ídolos. Acho um ritual muito forte, esse de encontrar cara à cara com o autor e trocar com ele alguma coisa. E pra nós, autores, é o momento em que você finalmente vai sentir a reação do leitor ou futuro leitor. É claro que nem sempre rola, depois de 500 livros, a fila começa a ficar impaciente. Mas sempre dá gosto de pensar em algo pessoal”, diz. “Procuro fazer algo pra cada um. Pergunto se o cara já leu, se gostou de algum personagem em especial. E tem aquela coisa de ver a pessoa, sentir mesmo como ela está, tentar relaxar o sujeito também. Muita gente chega nervosa na hora do autógrafo, quer conversar um pouco. O autógrafo é uma desculpa pra gente se conhecer, acho.”

Se gosta do interlocutor, a escritora Ivana Arruda Leite, autora dos preciosos Hotel Novo Mundo e Alameda Santos, procura fazer uma dedicatória especial com alguma referência que lhe diga respeito. “Minhas dedicatórias são sempre exageradas e cheias de superlativos, principalmente depois do terceiro copo. Aí abundam beijos e amores pra todos. Agora, quando a fila está muito grande com pessoas que eu não conheço, depois de um tempo eu fico cansada e vai no automático.” Ela também costuma fazer dedicatória nos livros que dá de presente. “E o mais engraçado: assino com o nome do autor para aquela pessoa. Por exemplo: uma vez dei um livro do Amós Oz pra Andrea del Fuego e escrevi: ‘para Andrea, com meu respeito e admiração, deste seu fã Amós Oz’. Gosto de pensar no que significado que essas dedicatórias terão daqui a 100 anos.”

Mas Ivana não precisou esperar muito para saber o significado que uma dedicatória sua teve na vida de um leitor que foi ao lançamento do seu livro Ao homem que não me quis. “Quando o próprio chegou no lançamento e colocou o livro na minha frente, eu escrevi: ‘Este livro é pra você. Um beijo, Ivana’.” Na época, o homem em questão era casado, mas Ivana soube o que ele acabou fazendo com seu livro. “Ele arrancou a página da dedicatória para a mulher não ler e guarda o livro com ele até hoje. A mulher dançou logo depois.”

Daniela Arrais é jornalista.