No fim dos anos 1950, a Turma da Mônica nasceu de um autor que, depois de ler a Luluzinha, viu uma oportunidade de fazer quadrinhos para crianças e ganhar dinheiro com isso. Em junho de 2009, somente no Brasil, a Luluzinha voltou às bancas em uma versão adolescente: Luluzinha teen é a nova graça da moça. Curiosamente, essa nova leitura da personagem clássica dos quadrinhos americanos acontecia pouco menos de um ano após um sucesso editorial nacional: a Turma da Mônica jovem. Passados mais de 50 anos desde que começou a publicar quadrinhos, Mauricio de Sousa faz o movimento inverso àquele dos tempos de jornalista à caça de novidade. Ele pauta o mercado, aponta certeiro para as oportunidades e cria novas demandas. Faz tudo isso tendo como linha de frente personagens que, a despeito dos trânsitos infernais, dos condomínios fechados e da violência urbana, nos confortam com esse estado de graça fictício de um bairro do Limoeiro, onde a brincadeira se encerra nela mesma, como se nossa infância pudesse se dar ao luxo de provar somente a cobertura do bolo. E em algumas páginas ela pode.
Para manter o açúcar desse caldo, o autor da poderosa marca da Turma da Mônica, presente em diversos produtos licenciados que vão de fraldas de bebê a sacos de maçãs, assumiu recentemente uma nova estratégia de negócios que merece ser observada de perto, e cujo resultado é a reconquista de um mercado que, no começo dos anos 00, parecia querer escorrer pelas suas mãos. O homem que não acentua seu nome paroxítono terminado em ditongo, e tampouco caminha a trilha do Z natural aos Souzas, sabe usar a diferença em benefício da semelhança. Depois de lançar a já citada versão adolescente da Turma da Mônica, ele começou a carimbar livros que reconstroem o universo de seus personagens clássicos em histórias que estão ajudando a recriar a Turma da Mônica numa versão ainda mais original e igual a ela mesma. Eleito este ano para a Academia Paulista de Letras, o pai dessas crianças imaginárias está retornando ao ponto de partida, e faz isso caminhando agora não apenas pelas bancas de revista, como pelas livrarias.
Lançado em 2009 como uma homenagem aos 50 anos de trabalho de Mauricio de Sousa, o projeto MSP 50 se transformou na menina dos olhos não apenas de seu editor e idealizador, Sidney Gusman, como do próprio Mauricio, que este ano vai lançar o terceiro e último volume do projeto, na Bienal do Rio de Janeiro. A ideia é simples: buscar 50 artistas, conhecidos ou ilustres anônimos, que usem os personagens do extenso universo da Turma da Mônica em histórias mais autorais. A notar que o advérbio que precede o autoral é usado como vírgula para o conceito implícito à palavra. Porque ao receber o convite para participar do projeto, cada autor está ciente de que precisa seguir alguns preceitos elementares aos mandamentos morais dos personagens em questão e escutam do editor Sidney Gusman dicas como: “Você vai ter toda liberdade pra criar dentro de alguns parâmetros. Por exemplo, você não pode matar, não pode fazer algo politicamente incorreto, não pode colocar personagens transando, não pode fazer um personagem falar a palavra ‘maldito’. E, claro, não pode colocar um personagem da Turma da Mônica falando ‘eu odeio minha família’”, entre outros tipos de ajustes nesse trabalho que, define Gusman, apenas “apara arestas”.
Quando questionado sobre que valores da Turma da Mônica são responsáveis por manter um interesse constante do público infantil em seus personagens (e estamos falando de várias gerações de leitores), o próprio Mauricio de Sousa responde: “São tantos os valores que é melhor começar pelo que não pode. Pelas coisas que devíamos evitar. E são poucas. Primeiro, é preciso ter ética no comportamento dos personagens, por isso não podemos colocar nas histórias de linha vilões irremediáveis. Nós não matamos ninguém. Muito raramente, aqui e ali, em uma ou duas histórias do Chico Bento houve a questão morte. Não colocamos nada que moralmente ou sexualmente possa gerar suscetibilidades. Não mexemos com religiões. E, na medida do possível, tentamos acompanhar o que acontece na sociedade em termos de costumes, hábitos e até modismos. Por exemplo, uma das coisas mais difíceis que enfrentamos nos últimos tempos aqui foi como vamos tratar, ou que palavras vamos usar, para descrever uma pessoa que hoje chamam de portadora de necessidades especiais. Como chamar o negro? É um afro-brasileiro, afrodescendente? Temos que ter cuidados no lado do comportamento e da ética sociais, nas questões étnicas e, na medida do possível, nossas histórias precisam ter um final bem resolvido. De preferência, cômico, alegre, gostosinho. Nós não temos, por exemplo, o que outros grandes estúdios do mundo têm, que é um livrão, com tudo que pode e não pode ser feito. Porque sempre que você escreve essa “bíblia”, vai se esquecer de alguma coisa. Em lugar disso temos uma orientação do que não deve ser feito. Se não esbarrar em violência, conteúdo sexual, religião, tabaco... há um mundo para escrever.”
Maior sucesso da editora Panini na Bienal de Literatura do Rio de Janeiro em 2009 e na Bienal de Literatura de São Paulo em 2010, o projeto MSP 50 vai chegando à sua terceira edição provando que nosso inconsciente apego a esses personagens moldados com características latentes (a gordinha dentuça tempestiva, o menino que fala errado, a gulosa, o sujinho, o caipira) cresce à medida em que reconhecemos nesses elementos simples o extrato da diversão despretensiosa. Nesse universo, os autores que são convidados a desenhar a turminha com seu próprio traço e roteiro acabam por reproduzir quase que organicamente as ideias por trás dos personagens em um dos momentos em que os gibis Mauricio de Sousa mais vendiam no Brasil: fim dos anos 1970 e anos 1980, época em que boa parte desses artistas lia a Turma da Mônica. É como se, no traço do outro, aquelas crianças que nos acostumamos a consumir voltassem a ser nossas.
Ora mais velhos, ora menos redondos, ora romantizados, o fato é que nas mãos de quadrinistas e ilustradores que passaram boa parte da infância lendo esses gibis, os personagens dos vários núcleos criados por Mauricio readquiriram a força de fazer derrubar muros com coelhadas. Sem discurso pronto ou informe oficial, as duas primeiras edições do MSP 50, mais a que estar por vir, se consolidaram como um ponto de sustentação ideológico de histórias acostumadas a sublimar sua própria ideologia familiar. Quando retomam os personagens da Turma da Mônica, muitas vezes adultos, os autores reafirmam os valores que, por trás dos planos infalíveis do Cebolinha, sempre estiveram presentes para criar um certo sentido de amizade quase utópica, mas de fácil e imediata identificação.
Coincidência ou não, o fato é que, depois que a Mauricio de Sousa Produções começou a expandir não apenas seus produtos, mas particularmente seu conteúdo para as livrarias, as revistas de série, tanto da turminha quanto da recente Turma da Mônica jovem, só viram suas vendas crescerem. Hoje, somente os gibis dos personagens clássicos estão próximos de atingir o melhor período de Mauricio de Sousa quando da época da Editora Globo: 3,5 milhões de revistas por mês. Não há nada comparável no mercado editorial brasileiro. Em outras palavras, pode-se dizer que, instituição nacional, a Turma da Mônica carrega o orgulhoso e informal slogan atribuído a Mauricio por quem costuma o mencionar: “O único que conseguiu ganhar da Disney em algum lugar do mundo”, expressão que se sente como axioma pelos corredores de sua empresa em São Paulo. Sabiamente, quanto questionado sobre alguma latente saudade que venha a sentir, tal como a saudade de alguns ex-leitores da Turma da Mônica, Mauricio, voz segura, sossegada e quase didática em seu espaçamento de palavras, diz: “Não tenho saudades de nada porque vivo o meu tempo hoje.”
E seu tempo de hoje está bem agitado para amanhã. Ciente do poder de alcance, tanto em faixa etária quanto particularmente em renovação da marca, Mauricio se cerca de profissionais experientes em um segmento tradicionalmente complicado do mercado editorial brasileiro: a venda de histórias em quadrinhos. Como assessor direto, ele tem agora José Alberto Lovetro, conhecido apenas como Jal, cartunista e cocriador do prêmio HQ MIx (o “Oscar” dos quadrinhos no Brasil) e, no planejamento editorial, chamou o já citado Sidney Gusman, jornalista premiado e especializado em quadrinhos, para assumir aquilo que seria estratégico na renovação de seu conteúdo. Os planos de Gusman não são modestos. Entre aqueles que já pode divulgar, estão os lançamentos previstos para 2012 de graphic novels (a roupagem literária que o mercado deu para os quadrinhos) com a Turma da Mônica, desenhados por alguns dos artistas que já passaram pelo dois primeiros MSP 50, mais a venda de um livro com profissionais da casa assinando roteiros e desenhos pela primeira vez não diretamente supervisionados pelo próprio Mauricio. Mas esses projetos ainda têm sua base fincada nos personagens da casa. O plano do jornalista é, em um futuro não tão distante, transformar o nome Mauricio de Sousa em selo para quadrinhos nacionais com ampla aceitação no lugar onde o valor literário dos quadrinhos sempre existiu: a Europa.
A poucos metros de distância da sala onde esse futuro começa a ser planejado, o “chefe” se mostra sereno. Como quem protege a fórmula da Coca-Cola, Mauricio não fala muito sobre as características prementes de seus personagens e sua realidade e tempo “líricos”, segundo o próprio. Durante a entrevista para o Pernambuco, ele pontua que há um caráter universal de histórias e, por isso, consegue vender a ideia da Turma da Mônica tanto no Brasil quanto na China, um de seus maiores mercados hoje. “Se você escreve sobre sua rua, escreve sobre o mundo, acho que um escritor russo disse isso”. Sabemos que o artista e empresário se refere diretamente a Leon Tolstoi, na clássica “ninguém se torna universal sem escrever sobre sua aldeia”, algo que, aplicado aos gibis da Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e Chico Bento, se configura na manutenção de uma literatura quase minimalista, não por sua economia de palavras, mas pela economia de complexidade que pode facilmente se desdobrar em barreiras linguísticas, comportamentais, morais e, portanto, comerciais. O bairro idílico onde as crianças brincam acima da grama verde e abaixo do céu azul é o marco zero para as emoções mais primitivas de um lugar e época que, mesmo não experimentado por muitos, é sentido como uma zona de conforto e descanso para várias gerações de brasileiros.
Leitor apaixonado de Monteiro Lobato, autor cuja obra foi recentemente avaliada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) como racista, graças aos valores atribuídos à cor de pele da famosa Tia Anastácia, Mauricio foi ele também alvo de críticas em 2010, num artigo do jornalista e pesquisador Dioclécio Cruz publicado no Observatório da Imprensa que conseguiu chamar atenção pelo uso de uma palavra que, segundo o pai da Turma da Mônica, é “palavrão” dentro de sua empresa. Sobre o tal do bullying, nova denominação para agressão infantil ao qual o autor do artigo acusa os personagens da turminha de praticarem, Mauricio tem só uma opinião: “Isso é bobagem, besteira, modismo. Devemos ignorar isso e exercitar um pouquinho a sensibilidade pra ver onde há exageros que podem, sim, estar no autor das ofensas. Se está faltando alguma coisa naquele que está agredindo, o problema não está nele, está na família, no meio. É preciso examinar se ele está agressivo porque estão sendo agressivos com ele.”
Cauteloso ao falar das histórias em quadrinhos sob sua guarda, o artista-empresário se protege como pode de algum eventual espinho no caminho. Faz isso ciente de que um de seus maiores mercados é o governo, independente de quem o assume - sim, porque Mauricio de Sousa foi um dos poucos autores nacionais a passar ileso pelo regime militar (ainda que, em algumas tiras, ele tenha feito sutis alfinetadas ao sistema, provocações que passaram despercebidas pelos censores). Vende bastante hoje para escolas públicas e sabe que é corresponsável pela formação de milhares de crianças que ainda o leem. Vive possivelmente um dos momentos mais prolíficos de sua companhia e, ao que tudo indica, tem um longo reinado no mercado editorial de quadrinhos brasileiros. No tempo e espaço líricos e apolíticos de seus personagens, se renova uma identificação com uma ficção que, quanto mais fragmentada nas mãos dos outros, mais consolidada se torna.
Carol Almeida é crítica de Cinema e mestra em Comunicação Social.
Leia mais:
Mauricio de Sousa: Como (des)construir o mito?, por Carol Almeida