Como lidar com um escritor de ideias abjetas, mas cuja obra pode ser considerada genial? Essa questão, com inclinações paradoxais, parece fustigar as mentes de leitores e intelectuais ao redor do mundo, provocando discussões profundas sobre a relação entre arte e sociedade, respeito e expressão. A última polêmica do dilema “Por que genial se racista? Por que racista se genial?” foi protagonizada pelo francês Louis-Ferdinand Céline. Morto em 1º de julho de 1961, o escritor teve o seu cinquentenário de morte excluído das celebrações oficiais da França, por conta de seu apoio ao nazismo. “Celebrar não é inocente” - foi o slogan de exclusão da efeméride das entidades judaicas.
Durante a ocupação nazista na França, Céline deu suporte à causa alemã, escrevendo inclusive três panfletos anti-semitas. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, ele foi acusado de traição pelo Estado francês e refugiou-se na Dinamarca, recebendo anistia da justiça francesa em 1951. Ao tomar conhecimento da lista de celebrações nacionais para o ano de 2011 na França, o presidente da associação judaica Fils et Filles de Deportés Juifs de France (FFDJF), Serge Klarsfeld, com apoio de outras entidades judaicas, exigiu que o cinquentenário de morte de Céline não fosse celebrado pelo Estado. O ministro da cultura, Frédéric Miterrand, acatou o pedido e, como resultado, nenhuma comemoração oficial celebrou a efeméride em julho passado.
“O anti-semitismo de Céline o descredita tanto como homem quanto como escritor. Nossa exigência me parece natural tendo em vista os escritos anti-semitas de Céline. Seu talento não deve nos fazer esquecer o homem que clamava pela morte de judeus durante a Ocupação. Que a república o celebre é indigno” – declarou Klarsfeld à imprensa francesa, questionando a “inocência” da celebração.
A vida de Céline se confunde com sua obra. Seu romance mais consagrado é um exemplo disso: Viagem ao fim da noite é carregado de referências autobiográficas sobre a participação do autor na Primeira Guerra Mundial. Lançando mão de uma prosa áspera e virulenta, o francês foi capaz de influenciar diversos escritores em todo o mundo, ultrapassando as fronteiras de sua própria língua. Ao colocar em perspectiva a personalidade e a obra de Céline, o pesquisador e crítico literário Luiz Costa Lima acredita que “se fosse para julgá-lo em termos éticos, o cara mereceria a pena máxima. Mas ser, como era, um notável escritor significa que, apesar de sua postura, apresenta um espectro da realidade de que, sem sua obra, no máximo apenas desconfiaríamos”.
Uma pesquisa informal realizada pelo jornal Le Fígaro revela que 65% dos seus leitores acham que o autor de Morte a crédito deveria ter os cinquenta anos de seu falecimento celebrado pelo Estado francês. O crítico e autor da biografia de Clarice Lispector, Clarice,, o norte-americano Benjamin Moser, alerta, todavia, para o teor político da decisão: “que se trata de uma lista do ministério da Cultura, ou seja, uma lista política, respondendo à pergunta de quem é que queremos como cara do nosso país”. Ele sugere ainda que a exclusão do nome de Céline reflete a questão: “Quais valores quer defender o Estado?”
Mas longe da oficialidade estatal, a efeméride não vai passar em branco. Colocado por muitos críticos ao lado de Marcel Proust no Olimpo dos grandes escritores franceses do século 20, Céline teve suas correspondências com o jornalista Paul Bonny vendidas por R$ 83 mil num leilão que reuniu, entre originais, objetos pessoais e ilustrações, 250 peças relacionadas ao artista. Ainda este ano as livrarias francesas recebem diversos lançamentos bibliográficos. Dentre eles o mais festejado é a biografia Céline, escrita por Henri Godard, professor da Sorbonne e especialista na obra de Céline. Em janeiro, quando foi anunciada a decisão do ministério da cultura francês, o cineasta Jean-Luc Godard publicou um artigo no jornal Le Monde afirmando que “Céline, pela inovação que ele proporcionou à prosa francesa, pelo seu gênio cômico e pela expressão que ele soube dar às duas guerras mundiais, tinha de fato um lugar nessa lista em 2011”. Godard finaliza refletindo sobre os códigos de valores oriundos das criações artísticas e a moral, ressaltando que casos como o de Céline nos obriga a aprofundar nossas reflexões sobre a relação, por vezes contraditória, entre esses códigos.
PALAVRAS TROCADAS
A recente querela francesa deixa claro o quanto reflexões sobre a relação entre arte e moral são cada vez mais frequentes no campo literário. A sociedade está aprendendo, na prática, a lidar com o fato de que nem todos os ídolos são heróis e nem tudo na arte propulsiona um desenvolvimento social. Na literatura norte-americana, Mark Twain foi o centro da berlinda. Seus mais famosos livros, As aventuras de Tom Sawyer e As aventuras de Huckleberry Finn, foram re-editados num único volume com a troca da palavra “nigger” (sinônimo pejorativo de negro) por “slave” (escravo). O vocábulo, que aparece 219 vezes em Hucleberry Finn e 4 vezes em Tom Sawyer, foi completamente banido da nova edição lançada pela NewSouth Book, que elimina também a palavra “injun” (termo pejorativo para índio).
O responsável pela revisão, Alan Gribben acredita que dessa forma o livro poderá ser acolhido por um número maior de pessoas. Especialista na obra de Twain e professor de inglês na Universidade de Auburn, Gribben já vinha fazendo leituras públicas nas quais efetuava a troca, recebendo com isso uma resposta positiva do público. Uma pesquisa realizada pela Harris Poll, contudo, revela que apenas 13% dos americanos entrevistados apoiam a alteração do vocabulário utilizado por Twain.
Em meio a toda essa polêmica, uma questão permanece sem resposta: será que o autor concordaria com a troca? Nascido na Flórida em 1835, Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, foi criado dentro do conservadorismo sulista numa época em que a expressão “nigger” fazia parte do vocabulário habitual. Os livros “censurados” tomam como inspiração a própria infância do autor, à beira do Mississipi, refletindo modos e costumes da época. As aventuras de Huckleberry Finn foi considerado por Ernest Hemingway como a base da literatura americana moderna, mas isso não foi suficientemente relevante para impedir que o livro acabasse pouco a pouco sumindo dos currículos escolares por conta do teor ofensivo da palavra “nigger”. Mesmo a imprensa americana, ao tratar da polêmica, procura evitar o termo, preferindo muitas vezes chamá-lo de “the ‘n’ word” (a palavra n) devido à agressividade do vocábulo.
“Essas coisas (sexistas, racistas, homofóbicas, anti-semitas) sempre tinham-se falado nos Estados Unidos, como no Brasil ou em outro país qualquer. Mas, de repente, a sociedade mudou e hoje em dia, nenhum americano andaria falando este tipo de coisas, mesmo quando as acha. O que é uma enorme diferença com a geração dos meus pais. E, para mim, uma mudança positiva”, observa Benjamin Moser.
Gribben conta ainda que, antes da publicação, já havia sido procurado por diversos professores que gostariam de tratar desses livros em suas aulas, mas que sentiam que não podiam, “pois esse tipo de vocabulário é realmente inaceitável na sala de aula”. Segundo ele, a nova edição das obras se apresenta como uma alternativa para os professores que não trabalhavam a antiga versão, e para os leitores de um modo geral que viam na palavra “nigger” uma barreira para compreensão do valor e importância da obra de Twain. Entretanto, a jornalista, especialista na Semana de 22 e biógrafa de Monteiro Lobato, Márcia Camargos, pondera que “se você elimina os pontos de atrito, higienizando uma obra, ao retirar dela a palavra ‘preto’ ou ‘nigger’, por exemplo, você está traindo o autor, desprezando a inteligência e infantilizando o público leitor. Pior: estará tirando da literatura o seu status de obra de arte, transformando literatura em produto de consumo, embalado de acordo com as mais recentes normas de conduta ditadas pelo politicamente correto em vigência”.
EMÍLIA E O RACISMO
A adequação de clássicos da literatura às salas de aula também esteve no foco das discussões recentes no Brasil. Em outubro do ano passado o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou no Diário Oficial da União um parecer sugerindo que o livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, não fosse distribuído às escolas públicas, ou, se fosse, que uma nota explicativa sobre o teor racista da obra fosse incluída. Escrito em 1933, o romance conta uma das aventuras da turma do Sítio do Picapau Amarelo. No livro, a negra Tia Nastácia é comparada a uma “macaca de carvão”. Em outro momento, sob a ameaça de um ataque das onças pintadas Emília diz: “ uma guerra das boas. Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia, que tem carne preta”. Segundo a autora do romance Um defeito de cor, Ana Maria Gonçalves, “a compra e distribuição gratuita nas escolas públicas de ensino fundamental e médio do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto da Igualdade Racial e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”.
Para além da questão legislativa, Moser alerta ainda que “ler Monteiro Lobato como um escritor inocente para criancinhas ignora que ele era uma pessoa fortemente politizada e os livros dele também”. A publicação recente de cartas pessoais deixa evidente o pensamento racista do criador de Emília, que nas correspondências chega a lamentar a ausência de uma versão da Ku Klux Klan no Brasil e faz uma defesa entusiasmada das ideias eugenistas do racismo científico.
Em junho passado, o CNE decidiu rever o seu parecer inicial atendendo pedido do ministro da Educação, Fernando Haddad, e passou apenas a recomendar a contextualização dos autores e dos livros, em particular daqueles que foram escritos num período em que ainda não se discutia o preconceito racial. O MEC prevê para este semestre a distribuição de um livro que oriente os professores de escolas públicas na adoção dessa abordagem. Nascido sete anos antes da abolição da escravatura, Lobato reflete valores sociais de mais de um século atrás. Para Márcia, co-autora da biografia Monteiro Lobato: furacão na Botocúndia, a utilização do livro em escolas públicas é uma forma de trazer um tema indigesto para o centro do palco. “Naquela época Lobato não poderia colocar a Emília dizendo coisas como ‘Minha companheira afro-descendente’ para Tia Nastácia” – explica Márcia – “na sala de aula, o professor deve lidar com estas questões e perguntar quantos negros estão estudando hoje no ensino fundamental e nas universidades. Aproveitar a polêmica suscitada pela obra de Lobato para debater o papel e o lugar do negro na sociedade brasileira hoje, tentando decifrar o que mudou de lá para cá”.
Uma questão parece implícita nessa discussão: o escritor, ou o artista de maneira geral, deve tomar certas precauções ao expor suas opiniões numa obra? “Se o autor estiver escrevendo um livro que vai – ou tem o potencial para – ser adotado como material paradidático, há que se ter uma série de cuidados, sim. Principalmente se esse livro é para o público infanto-juvenil, crianças e adolescentes em processo de formação identitária”, acredita Ana Maria. Para além do livro didático voltado para formação, entretanto, os cuidados devem ser outros, pois “o autor precisa de toda a liberdade do mundo para criar personagens, fatos, dilemas, disputas e etc.” pontua Márcia.
De acordo com o escritor e jornalista Ruy Castro o posicionamento ideológico, político e social de um artista não deveria condicionar o acesso à sua obra de maneira alguma. Autor da biografia O anjo pornográfico, sobre Nelson Rodrigues, ele lembra que “enquanto foi vivo, Nelson foi perseguido pela direita e pela esquerda e, no fim, só pela esquerda. Mas, depois de sua redescoberta nos anos 1990, ele ficou tão acima de qualquer posição política que deixou de ser julgado por isto” – o que nos faz pensar sobre o papel que as circunstâncias sociais exercem nessa discussão. Afinal, como coloca Márcia, “a riqueza de qualquer clássico reside também na sua possibilidade de suscitar o debate a partir de uma determinada realidade retratada pelo autor”.
A controvérsia em torno da obra de Lobato gerou uma discussão fervorosa, envolvendo questões como censura e liberdade de expressão. Bacharel em filosofia e doutorando em letras da PUCRS, onde desenvolve uma pesquisa que relaciona engajamento político e literatura, Pedro Mandagará pondera que no caso de Lobato “não houve ‘censura’, mas uma recomendação de contextualizar a ideologia racista, o que representa tanta interferência na obra quanto as notas de rodapé que explicam quem são os contemporâneos de Dante queimando no Inferno. E deve se levar em conta que a discussão é sobre o uso de verbas milionárias do MEC destinadas à compra de livros – ou seja, sobre como se deve usar o dinheiro público”.
Para Ana Maria o que foi visto durante esse debate foi uma polarização de dois grupos sociais: “de um lado, imensa parcela da sociedade brasileira, escondida atrás de brados do ‘patrulhamento politicamente correto’, brigando pelo direito de continuar desrespeitando; e de outro, crianças negras em sala de aula sentindo-se constrangidas e desrespeitadas através de expressões claramente racistas”.
POLITICAMENTE FALANDO
Politicamente correto é a expressão que paira sobre todas essas polêmicas literárias. A origem do termo remonta aos Estados Unidos no final da década de 1980: “Era um xingamento lançado pela parte mais republicana, reacionária e racista da nossa sociedade, que em curto tempo convenceu muita gente de que a nação estava caindo nas mãos de uma turma estalinista que não queria deixar ninguém a liberdade de falar”, afirma Benjamin Moser. O escritor explica que a utilização do termo começou como uma reação a uma transformação que teve início nas universidades na década de 1960 – quando o movimento dos direitos civis dos negros e o feminismo começaram a questionar a pequena quantidade de obras representativas das minorias nos currículos escolares e universitários.
“Às vezes havia certo exagero nisso, mas a ideia foi a de fazer, com a literatura e com a educação nacional, uma sociedade mais abrangente, que levasse em conta as diferentes experiências de que foram feitas a nossa nação. E havia uma reação intensa de oposição”, conta Benjamin. “Hoje em dia, é muito normal incluir vozes de diferentes grupos e de diferentes países. O fato de eu poder publicar nos Estados Unidos uma biografia de uma mulher judia de Pernambuco é em grande parte graças a este movimento de inclusão”, completa o autor referindo-se à escritora Clarice Lispector.
Nas últimas décadas a discussão sobre o politicamente correto ganhou força também no Brasil e provocou reações extremas. A própria elaboração desta reportagem sofreu o desconforto da utilização da expressão – que, refutada por alguns e demonizada por outros, mexe em feridas ainda sensíveis. Costa Lima acredita que “o politicamente correto é a maneira mais atual da velha hipocrisia humana”. O crítico defende que a questão se manifesta na linguagem usual, haja vista a cartilha de termos politicamente corretos lançada durante o governo Lula, pela falta de desenvolvimento de um senso crítico pelas coletividades. “Em vez de desenvolverem-se políticas anti-racistas ou contra a homossexualidade, coíbe a linguagem e, então, parece que se crê que falar em ‘afro-americano’ ou em ‘repúdio à homofobia’ é suficiente para que se aceite a diferença de cor ou de preferência sexual”, argumenta Costa Lima.
Claro que a discussão do politicamente correto ultrapassa o campo literário. Segundo Pedro Mandagará o que podemos observar é a existência de “um movimento crescente de defesa do suposto direito de pessoas externarem opiniões preconceituosas e homofóbicas, em nome de um conceito equivocado de liberdade de expressão”. O pesquisador refere-se, principalmente, a casos que envolvem o “humor politicamente incorreto” e reações públicas de repúdio a conquistas das minorias, como a legalização da união homoafetiva. “Não acho que exista um cerceamento politicamente correto, e que o que há é bem o contrário: o ressurgimento de forças conservadoras (Reinaldo Azevedo, Ali Kamel), alinhadas a um certo niilismo de apartamento do humor das velhas classes médias (CQC)”, completa o pesquisador.
Fellipe Fernandes é jornalista.