Li O beijo da mulher-aranha, de Manuel Puig, no início dos anos 1990 e recém-chegada na faculdade, por indicação de um amigo. O livro era emprestado e ainda lembro da capa verde-azulada, com a imagem de uma moça loira ao volante usando um capacete bem justo e o título em letras finas e bastante alongadas. Mais tarde, vim saber que se tratava de um dos autorretratos da pintora Tamara de Lempika e a tipografia, desenhada em estilo Art déco.

 

Para mim, a cela entupida de fantasia e expiação compartilhada por Molina e Valentín e as reveladoras notas de rodapé que se prolongavam por páginas eram indissociáveis àquela capa. Revendo, no entanto, essa edição publicada pela Rocco em meados dos anos 1980, e já embotada por um certo ranço visual típico dos impressos de outrora, noto que os principais elementos – título, nome do autor e imagem – disputam desajeitadamente o olhar do leitor, que fica sem saber em que se concentrar primeiro. Não há hierarquia entre eles e a paleta tipográfica acaba sendo mal explorada. Um deslize de composição que nem a referência ao estilo dos anos 1930 e à misteriosa figura de Lempika, em alternativa a uma cinematográfica Sônia Braga de sobrancelhas aracnídeas, foram capazes de atenuar.

 

Faço esse preâmbulo pois há duas semanas trouxe para casa um exemplar de O beijo..., publicado em 2003 pela tradicional editora José Olympio, e ele aqui também não encontra sua melhor tradução visual. O verde permanece na capa, mais ácido, aplicado ao título, cujo desenho dos caracteres são um híbrido malsucedido de uma fonte sem serifa com uma caligráfica. Em complemento, sobre um fundo azul escuríssimo, se apoia uma pobre tarântula ilustrada, bem no centro do layout, entre o literal e o infantilizado, tudo o que esse livro não é.

 

Como outras três obras do escritor argentino incorporaram esse mesmo projeto gráfico – A traição de Rita Hayworth, The Buenos Aires affair e Boquinhas pintadas –, acabou-se enfileirando nas livrarias mais uma coleção cujas capas desmerecem o que está impresso no miolo. E frente a isso, vejo que tenho apenas duas opções: resignar-me diante da inadvertida tarântula ou torcer para que Puig tenha mais sorte dentro em breve e, com uma edição à altura reluzindo na estante, eu possa despachar o atual exemplar para o sebo mais próximo.

 

Sem, entretanto, ter a pretensão de ferver esse tema ao ponto das grandes angústias humanas, o mal da capa feia em Puig, e em qualquer outro escritor, não deve ser menosprezado. Ainda que para alguns não passe de mera frivolidade, a bela capa reverencia autor e leitor, o que denota um trabalho de edição no mínimo cuidadoso. Para além dos sortilégios que um layout caprichado possa exercer no campo de batalha que é uma livraria no domingo à tarde, um livro bem representado por sua capa é o mínimo que quem paga por ele deve esperar.

 

Dentre os mais atentos a esse fato está a legendária casa britânica Penguin, pioneira na publicação de clássicos a preço acessível, cuja extensa e emblemática produção de capas tornou-se objeto de estudo nos livros Penguin by design, de Phil Baines, e Penguin 75, de Paul Buckley.

 

Ano passado, por ocasião do aniversário de 70 anos da morte de F. Scott Fitzgerald, a editora resolveu homenagear o autor americano com uma série que figura como exemplo recente de capas sublimes para projetos de coleções e obras completas. Aqui o estilo Art déco também serve de fundamento estético, dessa vez inspirando as exuberantes padronagens que irão revestir as sobrecapas de cada um dos seis títulos reunidos, dentre eles O Grande Gatsby e Suave é a noite, encadernados em capa dura. A sofisticação do projeto se completa no uso do preto, branco, prata e dourado, combinados sempre dois a dois, e na simplicidade do layout, que reserva duas áreas retangulares, livres de grafismos, para a inserção do nome do autor e do título, em elegante tipo serifado em caixa-alta. Encantador, o conjunto de capas estabelece o tom da leitura logo de início, evocando com extremo bom gosto a glamourosa e festeira era do jazz, tão presente no imaginário do escritor.

 

Quem assina a concepção gráfica do projeto é a jovem designer inglesa Coralie Bickford-Smith, nem um pouco intimidada com o desafio de criar visualmente para textos consagrados, no qual é preciso agradar tanto às novas gerações de leitores quanto os fãs de longa data. Prova disso são duas outras notáveis séries que desenhou para a editora, Penguin classics e Great food, escritos antológicos cujas capas não só cumprem o expediente comercial de modernizar uma Jane Austin ou um Alexandre Dumas, mas que se configuram como peças de referência no âmbito do design editorial contemporâneo.

 

Em Penguin classics, uma poderosa combinação de cores e estampas elaboradas a partir de elementos gráficos inspirados nas histórias – a pena de pavão para O retrato de Dorian Gray, por exemplo – ganham textura e intimidade com o leitor através da encadernação em tecido das capas. Já em Great food, coletânea de receitas e contos sobre culinária e a vida saboreada na cozinha, cada livro tem a capa ilustrada com a porcelana típica daquele período, reunindo-se aí 20 belos padrões decorativos coroados com um afinado trabalho de tipografia para os títulos. Ambas as séries só fazem contar pontos para alquimia certeira baseada na apropriação do designer sobre as nuances do texto, senso estético, apurada pesquisa histórica e iconográfica e investigação dos processos de impressão disponíveis.

 

Ao observar tais interpretações gráficas, colocamos em foco a função do designer no trato da obra literária, a quem cabe converter em estrutura física e formas visuais a essência do manuscrito. Potencialmente criativa, o cumprimento dessa jornada se dá no embate entre uma linha mais autoral e independente, com maior possibilidade de experimentação e também de risco, e um caminho onde as restrições do departamento de marketing se impõem com mais vigor. Implicando num briefing pouco flexível, sem tanto espaço para a inventividade, embora muitas vezes garantia de ótimas vendas. Que o diga os diversos títulos expostos nas livrarias nos últimos tempos, do célebre romance inglês O morro dos ventos uivantes, de Emile Brönte, ao presumível A garota da capa vermelha, de Sarah Blakley-Cartwright e David Leslie Johnson, todos envergando capas devidamente “crepuscularizadas”.

 

Apostando numa composição de poucos elementos sobre fundo preto – uma maçã, uma flor, uma fita que se parte no ar e uma peça de jogo de xadrez – realçados pela cor vermelha, a série Crepúsculo não merece nenhum prêmio de excelência gráfica, mas contabiliza entre as razões de seu estrondoso sucesso uma identidade visual extremamente reconhecível e de enorme ressonância entre seu público-alvo. Em pouco tempo, tornou-se emblema do gênero fantasia adolescente e agora até mesmo a paixão desencontrada de Catherine e Heathcliff, escrita em 1847, está sendo publicada à luz (vermelha) do amor de Bella e Edward.

 

Os caminhos para se revitalizar a antologia de um grande autor, entretanto, vão além dos esforços para se adaptar aos cacoetes do último hype literário. A obra completa de José Lins do Rêgo, reorganizada e relançada em 2010 também pela José Olympio, casa do escritor desde os anos 1930, resgata a iconografia originalmente publicada, valorizando ilustrações que integram o primeiro time da herança editorial produzida no país.

 

De partida, a concepção gráfica da coleção ficou a cargo de Victor Burton, um dos mais renomados capistas brasileiros, em parceria com o designer Ângelo Bottino. Na base da composição estão desenhos em preto e branco de autoria do artista múltiplo Tomás Santa Rosa, criados para os livros de Lins do Rêgo quando publicados entre as décadas de 1930 e 1950. Em contraponto às ilustrações, áreas de diferentes cores em cada volume integram título e nome do autor, compondo o layout com simplicidade e lirismo. Uma merecida deferência à parceria entre os dois intelectuais paraibanos, cuja amizade e colaboração remonta aos tempos de juventude. “O mestre de desenho de capas passou a ser o maior intérprete de meus livros. As vinhetas de Santa resumiam a vida inteira de meus romances”, declarou Lins do Rêgo, em 1956, numa entrevista ao jornal O Globo. Com uma importante e diversificada produção no campo do design gráfico e editorial, a qual cada vez mais atrai interesse entre os pesquisadores da área, Santa Rosa desponta entre os poucos que souberam, com brilhantismo, fundir modernidade e brasilidade em suas capas e projetos gráficos.

 

Vale notar que as origens da capa ilustrada no Brasil dizem respeito às décadas de 1910 e 1920. Curiosamente menos vinculada ao livro de luxo, com papel artesanal e bem encadernado, e mais às edições populares, que através desse recurso ofereciam ao leitor uma compensação pelo acabamento e materiais de baixa qualidade. Até os anos 1930, o mercado editorial no país veria não só a generalização das capas ilustradas, como também as primeiras iniciativas de sofisticação do design das páginas internas dos livros e a implementação de diretrizes conceituais de identidade visual para os projetos de coleções.

 

No entanto, em paralelo ao estilo das ilustrações narrativas, como as criadas por Santa Rosa, capas com desenhos abstratos podem ser eloquentes na mesma medida. O designer Kiko Farkas não deixa dúvidas acerca disso na série de poesia contemporânea para a Companhia das Letras onde estão reunidos Zulmira Ribeiro Tavares (Vesúvio), Antônio Fernando De Franceschi (Sete suítes), José Almino (A estrela fria), Fabrício Corsaletti (Esquimó), Alberto Martins (Em trânsito) e Fernando Moreira Salles (A chave do mar).

 

Dono de vários prêmios Jabuti, Kiko também é reconhecido pela magnífica produção de cartazes que desenvolveu para a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP), parte deles compilada no livro Cartazes musicais. E como já era de se prever, nas capas para essa coleção de poemas, ritmo e harmonia foram manipulados com precisão pelo designer, extraindo um jogo de sensações a partir de limitada paleta de cores e rabiscos. No papel, traço, letra e matiz se envolvem de tal maneira, que deixa-se a impressão de que a própria capa é um verso.

 

A bela capa e o projeto gráfico apurado não devem ser vistos, contudo, como exclusividade do texto literário, embalando prosa e poesia, principalmente em suas versões mais sofisticadas. Defensor do livro enquanto obra de arte em plena emergência da produção em massa no período vitoriano, o designer britânico William Morris já afirmava que independente de sua temática e por mais despojado que seja, este pode e deve ser uma manifestação de total refinamento.

 

“O livro tende a ser um objeto belo, e o fato de hoje produzirmos livros em geral feios revela, receio, certa má intenção – uma determinação de desviarmos o olhar para nossos bolsos sempre que possível”, assim registrou Morris, no ensaio O livro ideal, de 1893.

 

Sei que pode parecer romântico evocar Morris quando a mais ambicionada experiência de leitura hoje em dia é a que se dá através da tela do Kindle e congêneres. Mas enquanto houver alternativa ao virtual, e os livros ainda forem um pouco como a gente, novos ou velhos, leves ou pesados, para consulta ou de cabeceira, companheiros ou esquecidos, inspiradores, empoeirados, que nossa história com eles mereça a melhor capa, a que sabe cortejar o texto e encarar com sensibilidade e inteligência o leitor.

 

Patrícia Amorim é professora de história do design e jornalista.

 

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