A imagem para o disco Bandeira de São João, o segundo da Trilogia das festas brasileiras, veio de uma matéria na revista Veja. Havia sido encontrado nos porões de um ministério em Brasília um painel gigante de Alfredo Volpi, feito sob encomenda para a Companhia de Navegação Costeira. Em péssimo estado de conservação, ele fora dobrado e guardava as marcas dessa insensatez. Quando botei os olhos sobre o quadro, vi que possuía os símbolos para representar as 12 músicas do disco. Abstrato, sugeria a bandeira brasileira com o verde, o azul, o amarelo e o branco, mas com uma risca vermelha e um círculo metade preto, quebrando a ordem e o progresso. Um semilunar amarelo atravessava-o de um canto a outro. Achei perfeito para um disco que exaltava a festa de São João num contexto universal, sem cair em armadilhas popularescas.
Entreguei a proposta à agência de publicidade. Impossível, me falaram. Como vamos fotografar uma obra danificada? Por sorte, alguém da equipe tinha conhecimento de um Estudo para painel da costeira, uma tela pequena, igual à que eu desejava. Ela pertencia a um colecionador de São Paulo e agora precisávamos da autorização do pintor e do proprietário da obra. Volpi cedeu, mas o colecionador só aceitava que um único fotógrafo entrasse na sua casa: Rômulo Fialdini. Voltamos ao zero. Felizmente, Zoca Madureira acabara de fazer um livro com o fotógrafo, sobre danças populares brasileiras, em que fui colaborador. Porém Fialdini vivia pelo mundo e nunca parava no Brasil. A produtora me alertou que eu havia estourado os prazos e o disco não ficaria pronto para o mês de junho. Argumentei que não se tratava de música junina e sim do ano todo. Não abri mão da pintura de Volpi. Resumindo: o disco foi lançado no final de outubro.
Sempre acompanho o trabalho dos capistas e ilustradores, mesmo quando assino contratos reconhecendo ser isso função exclusiva da editora. Uma boa capa ajuda a vender. A poetisa Mariana Ianelli confessou-me ter comprado Livro dos homens pela capa laranja, com um desenho parecendo um ideograma chinês, que na verdade é um ferro de gado. Faca, ilustrado por Tita do Rêgo Silva, também da Cosac Naify, causa impacto. Mesmo quem desconhece o autor e o conteúdo do livro, compra-o como um objeto de arte.
Jorge Luis Borges achava que um mau título poderia condenar um livro. Vale a mesma observação para as capas? Num tempo em que a imagem muitas vezes prevalece sobre o conteúdo, ou funciona como primeiro atrativo, as editoras investem no trabalho dos capistas, diagramadores e ilustradores, principalmente nas obras voltadas para o público infantil e juvenil. Elas sabem que nas livrarias abarrotadas de títulos, o primeiro olhar do leitor comum, que compra ao acaso, é para a capa mais atraente. O jogo não vale nem para o consumidor de best-sellers – que importância possui a capa de Ágape? Nenhuma. É suficiente a estampa do padre Marcelo Rossi –, nem para o leitor esclarecido, aquele que procura um livro específico. Mesmo este, afeito ao conteúdo do que irá ler, não deixa de criticar uma edição ruim.
Mariana Newlands conseguiu sintetizar o conteúdo do romance Galileia com a imagem de uma casa em ruínas, os cômodos invadidos por areia. Já em Retratos imorais Rodrigo Rodrigues buscou o efeito contrário: a antítese entre a imoralidade sugerida pelo título e a santidade de um homem entrando no mar. Ao lado dele, uma escada suspensa no nada, faltando um degrau. Em Galileia o desconforto é causado pelo quase excesso e em Retratos imorais pela falta ou minimalismo.
Editoras buscaram parcerias com artistas plásticos, com alguns excelentes resultados. Mas, nem sempre uma boa imagem é garantia. O quadro que causa espanto na parede de uma galeria pode resultar inexpressivo num livro. O olhar do capista enxerga efeitos além da representação chapada de uma pintura ou fotografia. Ele é um tradutor, ou transcriador do texto de um livro, em imagem. Um parceiro que ajuda e engrandece e, algumas vezes, atrapalha.
Ronaldo Correia de Brito é autor de Retratos imorais
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