Como a literatura tem nos mostrado, nossa vida é determinada por escolhas. Macunaíma passou por baixo do arco-íris. Tieta voltou para sua cidade natal. José Arcádio resolveu que ali era um bom lugar para fundar Macondo. Ulisses se levantou da cama aquele dia. Macabea quis atravessar a rua. Através de decisões, por vezes banais, vamos traçando um caminho. Como não existem mapas nem fórmulas é normal sentir-se perdido diante da infinidade das possibilidades oferecidas. Por isso, às vezes é preciso alguém que seja capaz de nos mostrar onde está a luz. Esse é o papel do guru. Função, aliás, que está na origem da palavra: uma das etimologias do termo guru, que em algumas culturas designa professor, explica que em sânscrito uma das sílabas da palavra significa luz e a outra escuridão. Os gurus estão aí, portanto, para iluminar nossas vidas, nos afastar da sombra e nos guiar pelo caminho da luz.
Mas questões, antes tão definidas como luz e sombra assumem também um grau de relatividade num mundo onde pensar como o outro é essencial para se respeitar a diversidade. Assim, tornam-se diversos os faróis e variadas suas luzes. A palavra necessária para te levar à luz pode vir de alguém, ou algo, muito distante da imagem cristalizada do guru de turbante que transcende a existência terrena. Então como encontrar e reconhecer aquele que vai te levar à iluminação?
Quando tinha 30 anos, Maristela Lupe entrou numa crise existencial. Entre dúvidas e questionamentos pessoais, ela precisou de uma mudança drástica. Resolveu procurar um novo caminho, uma nova forma de viver. Tentou diversas filosofias alternativas e nada parecia funcionar, não foi fácil encontrar um modo de vida que lhe empolgasse. Até que deu de cara com a ioga e mergulhou de cabeça em sua prática e filosofia. Nesse mergulho, acabou tomando contato com os ensinamentos de dois gurus, que logo reconheceu como mestres. “Tive acesso aos ensinamentos de Sri Aurobindo e Mirra Alfassa em um retiro e daí em diante compreendi a importância e o valor de reconhecer os ensinamentos dos mestres. Um guru autêntico promove verdadeiramente o crescimento pessoal e espiritual do discípulo. Os ensinamentos que ele transmite são para nos libertar de nossos condicionamentos errôneos”. Hoje com 43 anos, Maristela, que conta algumas visitas à Índia no passaporte e diversos cursos no currículo, tem um centro onde dá aulas de ioga e meditação no Recife.
A filosofia da ioga era o eixo que Maristela procurava. A busca teve origem pessoal, procurou porque acreditava que precisava de algo que não estava encontrando em lugar algum. Mas nem todos têm consciência dessa necessidade. É isso que as investidas midiáticas de guias como Deepak Chopra tentam nos dizer. Aqui no ocidente os gurus ficaram famosos por oferecer eixos e rumos para os que andam apressados em meio às avenidas materialistas. Essa imagem do exótico mestre indiano, um sábio de roupas leves e soltas, começou a ser forjada deste lado do planeta no final da década de 1960. Foram os garotos de Liverpool os primeiros a se encantar com a prática da meditação transcendental e emprestaram seus holofotes para um indiano de barba longa e cabelos compridos. Para muita gente, Maharishi Mahesh Yogi, o indiano que abriu os caminhos espirituais dos Beatles (morto em 2008, aos 91 anos), continua sendo a personificação da figura do guru. A partir dele, uma enxurrada de guias espirituais foi importada, todos prometendo a mesma paz de espírito, felicidade e por vezes sucesso.
Dessa linha descende Deepak Chopra. No ano em que lançou o primeiro livro, no entanto, ele rompeu oficialmente com Maharishi, disse que o mestre indiano cerceava sua liberdade de expressão. A partir dali a relação dos gurus com a mídia deixou de ser passiva e os guias espirituais passaram a ter uma participação cada vez mais sólida na cultura pop.
A silhueta do guru reapareceu recentemente no best-seller de Elizabeth Gilbert. Em Comer, rezar e amar, a escritora norte-americana relata como deixou pra trás uma depressão, herança de um divórcio e de um relacionamento desastroso, viajando pelo mundo à procura de um novo rumo. No livro, Elizabeth explica o conceito de guru empregando também a referência à luz e à escuridão, quebrando o preconceito que muitas leitoras tinham com a ideia de um mestre espiritual como um ser inacessível que fala através de metáforas. “Para nós ocidentais é difícil entender e mais difícil ainda aceitar um guru. Nossos olhos não enxergam fundo o suficiente e isto é um grande obstáculo quando se trata de identificar um verdadeiro mestre”, pondera Maristela.
Basta pararmos um pouco pra refletir sobre a função do guru, entretanto, que constatamos que o caminho para luz não necessita passar pela oração ou meditação. As palavras que nos ajudam a fazer nossas escolhas podem vir de fato de qualquer lugar. A jornalista americana Wendy Shanker, por exemplo, encontrou seu caminho com ajuda da diva Madonna. Fã da musa pop desde a infância, Wendy acaba de lançar o livro Are you my guru? How medicine, meditation and Madonna saved my life (Você é o meu guru? Como medicina, meditação e Madonna salvaram a minha vida). Ela conta como sua relação com a cantora a ajudou a lidar com umarara doença autoimune e, entre coreografias e roupas de couro, guiou seu modo de ver a vida. “Um guru é como um pai que cria uma criança para que ela floresça sozinha. Que valores Madonna nos transmite? Poder feminino, consciência corporal, tolerância religiosa e sexual, ciclos de imperfeição e sucesso e desenvolvimento do self”, explica a jornalista num artigo publicado ano passado no The Guardian.
“Nos dias atuais, onde em grande parte tudo se tornou um produto de consumo, a escolha de um mestre tornou-se tarefa complicada. Cada um terá de batalhar por esse conhecimento e com sinceridade no propósito certamente descobrirá seu caminho e seu mestre”, alerta Maristela, reformulando aquela velha máxima “quem procura acha”.
Mas na maioria das vezes não é preciso nem procurar, basta reconhecer. Luiz Otávio Pereira, 34 anos, não estava muito satisfeito com o emprego que tinha há cerca de três anos. Jornalista por formação, Luiz Otávio sempre esteve mais interessado em trabalhar com o cinema, mas na época era impossível viver só da sétima arte no Recife. Pra pagar as contas se viu obrigado a aceitar um trabalho que não lhe dava tanta satisfação pessoal. Mas não reclamava muito, foi levando as coisas como podia. Até que se deparou com uma entrevista de Fiona Apple.
Ele sempre gostou da cantora norte-americana. Acompanha sua carreira desde o lançamento do primeiro álbum, em 1996. O fato de terem a mesma idade, além da admiração pelo talento dela, aumenta a proximidade entre eles. Entraram juntos na vida adulta e acreditam que as coisas são bem melhores aos 30 que aos 18. Em determinado momento da entrevista, o repórter perguntava à cantora sobre o motivo de ela ter passado tanto tempo sem produzir e sem fazer shows. Fiona respondeu apenas que não estava fazendo nada porque não queria. “Ela disse que só tinha pensado em parar, queria viver um pouco sua própria vida sem precisar se preocupar em produzir. Eu achei isso massa, porque é exatamente assim que tem que ser. Ninguém tem que fazer nada só porque se sente obrigado”. Luiz deixou o emprego, voltou a morar com os pais e passou a se dedicar exclusivamente ao cinema. Hoje assina o roteiro de algumas obras da safra recente do cinema pernambucano e se prepara para dirigir um curta-metragem no início de 2012.
Assim como a música, a literatura tem oferecido ao longo das décadas mestres capazes de iluminar os caminhos. Oswald de Andrade, anos após sua morte, foi capaz de servir como farol para toda a geração tropicalista. No fim da década de 1960, Manifesto antropófago é apropriado e reinventado por uma nova leva de artistas e intelectuais. Ainda hoje as ideias de antropofagia cultural fazem parte da filosofia criativa do Teatro Oficina (remanescente da efervescência tropicalista). O encenador José Celso Martinez Corrêa, diretor do grupo paulista, ocupa ele mesmo o papel de guru para diversos atores que o tomam como mestre na vida artística. Casos como o de Zé Celso não são incomuns. Bob Dylan é outro exemplo claro de alguém que se divide nos papéis de discípulo e mestre. Ainda que seus ensinamentos não sejam transmitidos de maneira explícita, Dylan já soprou no vento muitas respostas (que às vezes vieram na forma de perguntas). E, por sua vez, resolveu conhecer o mundo a partir da leitura do livro Bound for glory, do cantor folk Woody Guthrie, e das palavras apressadas e ritmadas de Jack Kerouac - o beatnik que iluminou várias gerações a pegar a estrada com o seu On the road.
Ao abrirmos nossa percepção para a observação daqueles que dissipam as sombras, podemos chegar a uma cadeia sem fim de gurus e discípulos. Por isso Maristela não duvida: “Todos nós um dia fomos ou seremos professores de alguém”. Uma coisa é certa – seja seu guru um guia das estrelas de Hollywood, um ermitão hindu ou uma estrela da música pop: as respostas nunca vão vir prontas. “Eu pessoalmente acredito que seguir os ensinamentos de um guru é um processo muito individual. Ter o mérito de reconhecer um mestre e receber ensinamentos nos leva a reconhecer o sagrado que habita em nós”, diz a professora. Saber até que ponto o seu guru é apenas um espelho que reflete suas próprias angústias e revela as respostas que já estão em você, contudo, não importa. O que está em jogo de verdade é saber quantos passos ele te faz caminhar. Porque, mesmo que não haja respostas, sempre haverá um caminho para ser percorrido.
Fellipe Fernandes é jornalista.
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