“No princípio era o Verbo, e o Verbo era Deus, e o Verbo estava com Deus”. O primeiro versículo do livro de João, no Novo testamento, prega que o início de tudo está intimamente relacionado à palavra. Apesar de evocar, teologicamente, Jesus Cristo - o Verbo feito carne –, esse trecho faz referência direta ao primeiro livro da Bíblia, o Gênesis, no qual o Deus dos cristãos dizia: “Faça-se a luz: e a luz se fez”. Essas frases, no entanto, são mais do que profissões de fé de homens ávidos por espalhar a Palavra. Elas denotam o papel fundador que a palavra, ou o verbo – como linguagem - exerce no pensamento ocidental.
Segundo a herança greco-judaica na qual estamos imersos, o verbo (assim mesmo, em minúsculas) espalhou-se pelas criaturas e passou a mediar a experiência do homem perante o mundo. Esse é o exemplo mais próximo, mas não é o único. Os mitos fundadores das mais variadas culturas têm a palavra em alta conta, como potência criadora que serve para ordenar a vida. Vale lembrar também que as três maiores religiões monoteístas – Judaísmo, Cristianismo e Islamismo - têm como atributo central uma Palavra de caráter sagrado, revelada por Deus.
De acordo com as religiões, a palavra tem origem sagrada, mas ela se tornou poderosa por ser um triunfo da abstração humana. Suas várias dimensões passam pelo mágico, plástico, lógico, poético. Mesmo os analfabetos, incapacitados de compreender e utilizar os sinais gráficos de um determinado idioma, estão mergulhados no ato do discurso. Precisam usar outras expressões de linguagem verbal, que não a escrita, para se relacionar com o outro e com a sociedade na qual vivem. É a palavra que faz dos seres humanos “homens”.
Mas ainda há algo de essencialmente primitivo na junção arbitrária de partículas de traço e som, embora elas sejam decompostas e represadas em dicionário. “Por que uma pedra se chama pedra? Ninguém sabe. A palavra é uma forma de ação. Até nos contos de fadas, a trama se desenrola por meio de alguma evocação verbal, quando alguém fala, por exemplo, ‘abre-te, sésamo’”, lembra a professora de Letras da UFPE Nelly Carvalho.
Ela assinala que, em todos os idiomas, há uma categoria básica de vocábulos, que engloba os substantivos, adjetivos e advérbios. Por dizerem respeito às partes mais essenciais da vida humana, se tornaria impossível categorizar o mundo se elas não existissem. As outras classes dizem respeito às palavras de relação, que dependem de cada cultura. O que não muda, segundo a professora, é o poder que a palavra ainda exerce na sociedade contemporânea, onde a tecnologia e a superexposição a imagens fazem parte cada vez maior da experiência cotidiana. “Entre no Google e perceba que é com a palavra que tudo começa. Sem ela, é impossível achar o que se procura, mesmo que o resultado procurado seja uma imagem”.
A potência infinita do alfabeto como expressão do engenho e da arte foi lembrada pelo escritor português Gonçalo M. Tavares em sua passagem por Olinda, durante a última Festa Literária de Pernambuco (Fliporto). “Vejamos a frase ‘cão não morde’. O extraordinário, em termos de escrita, é que as partes c, a, o têm múltiplas possibilidades além de seu significado. Para quem não sabe ler o português, são letras; para crianças, são desenhos; para quem não está alfabetizado, são traços. Quando lemos, olhamos para uma figura, mas interpretamos aquilo como real. A leitura se faz justamente quando deixo de dar atenção às letras e passo a evocar uma imagem. É quase como um pensamento mágico”.
A PALAVRA E O SAGRADO
Nos ramos pentecostais e neopentecostais do cristianismo presentes no Brasil, a ênfase da experiência entre os participantes dos cultos é colocada nos resultados concretos da fé, no testemunho. O Verbo, para não se tornar “letra morta”, precisa atuar no mundo. É a isso que se dedica o ajudante de carpinteiro Emi Francisco do Santos, 38 anos. O operário da construção civil é frequentador assíduo de uma Assembleia de Deus próxima à sua casa, na comunidade do Bode, no bairro recifense do Pina. Sua rotina inclui idas diárias à igreja, mas é às segundas-feiras, das 19h às 21h, que ele espalha a Palavra de forma literal. Munido de caixa de som e microfone, o fiel se fixa em um ponto da comunidade e dá início ao “dia de evangelização”. Enquanto Emi faz sua pregação, a família e outros ajudantes – entre 20 e 25 por noite – distribuem até 500 panfletos com passagens da Bíblia, chamados de “literatura”. “Quando a gente prega, acontece algo diferente, não dá nem para definir. A gente sente a presença de Deus”.
A conversão de Emi, casado e com três filhos ativamente engajados na Assembleia de Deus, aconteceu há 13 anos, quando uma prima de sua esposa convidou o casal a abraçar sua religião. “Eu e minha esposa frequentávamos um salão de umbanda, mas aquela noite no culto me transformou”. Ele também chegou a organizar, junto com dois colegas, um culto evangélico no canteiro de obras onde trabalhava. As reuniões começaram com três membros e chegaram a atrair dez trabalhadores. O trabalho era interrompido pontualmente às 12h25, até ele ser transferido e deixar de participar dos encontros. “Chegamos a converter um colega durante o culto. Outro colega disse que a oração do nosso grupo foi tão forte que conseguiu curar o filho dele, que estava em casa, doente”.
Gonçalo M. Tavares defende que as palavras ditas sagradas, embora sejam passíveis de fornecer rico material conceitual à literatura, operam em um campo diverso. “A frase ‘mudar com Cristo’, por exemplo, não tem qualidade literária se for apreendida fora da religião. No entanto, ela resistiu ao tempo, e é justamente isso o que todo escritor almeja”. Em uma de suas obras Aprender a rezar na era da técnica (2007), o escritor lusitano diz ter partido do seguinte questionamento: “Será que, no século 21, temos que inventar uma nova oração para um mundo onde a técnica solapou a natureza ou as rezas antigas mantêm sua força?”.
Em alguns sistemas de crença, a palavra é tão poderosa que ela não precisa nem ser compreendida, apenas vista e mentalizada, para surtir efeito real. É a proposta da Cabala, sabedoria hebraica antiga que se tornou pop por abrigar legiões de celebridades e não exigir que seus seguidores abram mão de suas religiões de origem. Nela, Deus teria 72 “nomes”. As aspas são necessárias, pois seus seguidores postulam que esses “nomes” não são denominações da forma como nós conhecemos, mas sequências de três letras, atuando como um disparador de energias espirituais específicas. “Ao simplesmente olhar as letras, bem como fechar os olhos e visualizá-las, podemos conectar com essas frequências e com isso acender a chama do criador adormecida dentro de nós”, diz o site do Kabbalah Centre no Brasil.
O porta-voz da instituição, Yonatan Shani, afirma que tais letras, antes acessíveis somente a iniciados, “têm o poder de criar e controlar a realidade. Isso não tem nada a ver com religião organizada, são ferramentas que podem ser utilizadas na vida diária”. Porém, isso não significaria que as pessoas podem transcender os problemas cotidianos por meio da Cabala simplesmente recitando essas letras divinas. “A maioria dos seres humanos, quando não têm suas preces atendidas, acha que Deus não os ouviu. Não é que a pessoa tenha falado algo de errado, mas faltou conhecimento para fazer a palavra funcionar a seu favor. Há pessoas que tatuaram letras hebraicas no seu corpo e, por causa disso, acham que a vida vai mudar instantaneamente. Muitos também procuram a Cabala em busca de alguma espécie de magia, mas as palavras são meios, e não fins”.
A relação entre religião e palavra desce a minúcias delicadas quando se chega ao Islamismo. Os muçulmanos acreditam que o idioma árabe foi revelado ao profeta Maomé, ao longo de 23 anos, no livro sagrado da religião, o Alcorão. “A oração é feita apenas para Deus, sem intermediários. Então, no mundo inteiro, o seguidor do Islã é obrigado a ler e escrever o árabe para praticar a religião como se deve. Uma oração recitada em outro idioma não tem valor”, explica o sheik Mabrouk El Sawy Said, do Centro Islâmico do Recife.
Para os seguidores do Islamismo, o Alcorão é uma instituição, pois tem uma ação sobre espectros amplos de sua vida, com ensinamentos sobre dogma, moral e leis. Foi feito para ser recitado e memorizado. “É por isso que não há comparação possível entre o Alcorão e a Bíblia”, lembra Said. Mas, por terem um patriarca comum – Abraão – e por apresentarem escrituras sagradas, os cristãos, assim como os judeus, são conhecidos pelos muçulmanos como “Povos do Livro”. Para os islâmicos, o Alcorão é tão importante que a tradução dele para outros idiomas é entendida como uma pálida representação do sentido do livro original. “Há oito versões do Alcorão para o português, mas nenhuma delas é sagrada. Como foram feitas por mãos humanas, não são a tradução exata da palavra de Allah”, diz o sheik Said.
PALAVRA HUMANA, DEMASIADO HUMANA
É antigo o uso do adágio “tradutor, traidor” para designar o ofício de dar sentido em uma língua às palavras originadas em outra. A tradução, assim, se torna metáfora da imperfeição humana. O professor e tradutor Mamede Jarouche, premiado por verter o Livro das mil e uma noites do árabe para o português, defende a tradução como obra do instinto e do sentimento. Posição semelhante tem o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto. “Resumindo drasticamente minha posição: uma tradução perfeita sob todos os aspectos não existe. Por que exigir a perfeição só dos tradutores? Toda prática humana é falha, embora sempre almeje a perfeição. A tradução não é melhor nem pior que as outras”.
A palavra, de acordo com Jarouche, também é capaz de criar outros tipos de ponte, não apenas entre um idioma e outro, mas entre a humanidade e a barbárie. “Nas grandes cidades, quase sempre os ladrões dizem ‘não fale’, pois a palavra cria vínculos entre as pessoas. Se torna complicado você tentar manter uma conversação com um bandido, porque o modus operandi dele é a violência”.
Transcender a realidade através da literatura, da narrativa, é outra forma de manter a essência do ser humano. “A estratégia da personagem Sherazade, das ‘Mil e Uma Noites’, é o uso apropriado da palavra para a sobrevivência. Ao contar histórias por noites a fio a um rei traumatizado pela traição de uma antiga esposa, ela evita sua morte e, ao mesmo tempo, usa o verbo como instrumento de concórdia”, aponta Jarouche.
Gonçalo M. Tavares diz que a maior riqueza da linguagem é inventar mundos paralelos por meio da ficção. “Quando eu digo ‘ontem vi um elefante voar por cima da igreja’, eu crio um universo imaginário, impossível fisicamente, e isso mostra que é possível se abrir a um mundo que não vemos. Falar essa frase, a princípio, é um absurdo, mas é o que nos diferencia dos animais. Quem não gosta da ficção, do imaginário, limita sua cabeça ao mundo visível, e isso é empobrecedor”.
Na família de Emi, há outro caso de transformação pela palavra, mas por uma via diferente do sagrado. Para Ricardo “Kcal” Gomes, 37 anos, cunhado do operário e pregador, foi com a literatura que ele conseguiu chegar à abstração, em um local onde as necessidades mais básicas de sobrevivência estão sempre na ordem do dia. Também morador da comunidade do Bode, ele tornou-se conhecido por abrir uma biblioteca comunitária e por se apresentar como “traficante de livros”, em um lugar onde o verbo traficar era sinônimo apenas de conflito com a lei.
Kcal diz ter conhecido literatura aos 16 anos, ao encontrar uma caixa cheia de livros às margens do Rio Capibaribe, enquanto jogava bola. Dentro dela, havia títulos como A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, e A mão e a luva, de Machado de Assis. “Me apaixonei de cara. Virei fã de poesia, tanto que hoje escrevo meus versos e componho algumas músicas”. Aqueles eram os primeiros livros de um conjunto que hoje reúne 20 mil obras, adquiridas por meio de compra ou doações.
A primeira sede da biblioteca comunitária do Bode, batizada de Guardiões, foi improvisada na casa de Kcal, localizada em uma das palafitas que ainda hoje existem no local. O inusitado de sua história, pouco a pouco, se espalhou e chamou a atenção de jornalistas e autoridades, que passaram a cortejá-lo, oferecendo apoio a suas atividades. Daí veio a mudança para um espaço maior, batizado de Livroteca Brincante do Pina, reconhecida pelo Ministério da Cultura e inaugurada em 2009 como primeiro Ponto de Leitura do país. A vida do autodenominado agitador cultural ganhou até uma cinebiografia, chamada A mão e a luva – A história de um traficante de livros, rodada por um cineasta italiano chamado Roberto Orazi. “Ser alternativo, diferente do meu meio, era um defeito. Hoje tenho repercussão, visibilidade, amigos. As pessoas me respeitam, acreditam em mim. A livroteca é uma forma de libertação para a comunidade”. Para Kcal, a aceitação de seu trabalho se mede por passar imune a um constrangimento que atinge outros moradores. “Não sou revistado pela polícia há anos”.
Mas, mesmo depois de tanta exposição, houve uma reviravolta. Atualmente, a livroteca está em estado de hibernação, pois os convênios oficiais que a mantinham funcionando expiraram. O acervo compilado em 15 anos de militância literária está distribuído entre a casa de Kcal e a antiga sede da Livroteca Brincante, onde atualmente funciona um mercadinho. Frustrado com quem antes o paparicava, Kcal se queixa de que promessas têm validade curta, principalmente quando se trata de dinheiro público. “Acho que a palavra é forte quando usada com atitude. Sem atitude, ela fica ao vento”.
A PALAVRA COMO FIGURA
A noção de que a palavra vai além da união entre o som e o significado e apresenta uma dimensão plástica é contemplada de forma mais atenciosa tanto na civilização árabe quanto no Extremo Oriente, onde a caligrafia foi elevada ao status de arte. Os ideogramas chineses e japoneses expressavam conceitos, em vez de fonemas a serem reunidos de forma arbitrária ao longo do tempo. O orientalista Ernest Fenollosa (1853 – 1908) aponta que a notação chinesa, por exemplo, ia além de símbolos arbitrários; estava baseada num entendimento das operações da natureza. O “método chinês” se faz entender por meio de uma sugestão natural: a palavra “homem”, por exemplo, era representada por três traços – um “tronco” e duas “pernas”. A evolução da escrita oriental no tempo servia para estilizar os caracteres; a ideia central, no entanto, seguia preservada.
O designer, tipógrafo e professor universitário Leonardo “Buggy” lembra que é possível explorar novas possibilidades para a representação gráfica da escrita, ainda que seja utilizado o alfabeto fonético ocidental ao qual estamos acostumados. “As fontes alteram, sim, o significado do que é lido. Quando ainda era estudante de design da UFPE, fiz um trabalho na qual escrevi em uma belíssima letra cursiva as palavras ‘puta’, ‘corno’ e ‘viado’. Ou seja, a forma da palavra pode até contradizer seu significado”.
Em um mundo no qual a saturação de imagens virou tema recorrente, Buggy lembra das transformações da forma das palavras a partir do uso social da tecnologia. “Novos códigos emergem continuamente: hoje, se você entrar na internet e escrever com o Caps Lock ativado, parece que você está gritando. O jeito com o qual a palavra é escrita pode remeter a um tom de voz”.
É pela imagem, pelas figuras, segundo Gonçalo M. Tavares, que se pode promover uma reconciliação entre a palavra escrita e sua representação primitiva, o traço. Esse último elemento, que existe antes da palavra, está presente de forma central em duas das obras do escritor português: O senhor Swedenborg e as investigações geométricas e O senhor Valéry e a lógica. “Há todo um mundo infantil que se perde, quando começamos a ler e a abandonar o desenho em favor da linguagem escrita. O desenho é outra forma de pensamento, e há uma grande falha do conhecimento humano quando eles saem do mundo natural para se tornarem, muitas vezes, algo técnico. Um quadrado pode nos emocionar tanto quanto uma palavra”.
Isabelle Barros é jornalista e mestranda em teoria da comunicação.
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