Ricardo Moura

“Não é a geografia, não é a arquitetura, não são os heróis…, muito menos a crônica de costumes ou as imagens criadas pela fantasia dos poetas: o que define uma cidade é a história de seus crimes”. Assim como apontou o narrador de O senhor do lado esquerdo, premiado romance de Alberto Mussa, os poetas podem mesmo não conseguir definir uma cidade, mas são eles alguns dos responsáveis por abrir infinitos portais para tentarmos decifrá-la. E a nós.

 

Conhecida pelas águas que a cortam em espécies de ilhas, costurada por pontes, manguezais, ornamentada por favelas, espigões, casarios coloridos, casas sem reboco, lajes, postes, fiação elétrica aparente, ruas estreitas chamadas de avenidas, becos, morros, carros importados, botecos, engarrafamentos, carroças, praias, maior shopping da América Latina; narrada por Gilberto Freyre, Joaquim Nabuco, Capiba, Carlos Pena Filho, Ascenso Ferreira, Alceu Valença, Manuel Bandeira, Antônio Maria e Chico Sciense, Recife também se define por personagens que sobrevivem sem holofotes, flashes ou alarde nas colunas e redes sociais, se equilibrando nas beiradas das periferias, que podem ser visitadas sob a segurança do Google Maps.

 

Um dia, um desses personagens estava fazendo sua pequena revolução em frente ao Centro de Artes e Comunicação da UFPE, distribuindo seus jornais poéticos, quando passou por lá um apressado Cláudio Assis, que, apontando para ele, disse: “Vou fazer um filme sobre você”. O cineasta pernambucano referia-se a Febre do rato, produção que foi exibida em alguns festivais de cinema em 2011 e que agora tem projeção comercial prevista para o mês de março. A obra — seu terceiro título ambientado no Recife — conta a história de um poeta marginal tentando sobreviver num bairro pobre da cidade e utilizando sua poesia contra as mazelas sociais e políticas.

 

Zizo, o protagonista do filme, foi inspirado em Zizo, poeta e desenhista recifense, que, desde o início dos anos 1970, cria zines com poesias, textos e desenhos próprios e também de outros autores locais. Ele foi “muso inspirador” para a concepção do papel interpretado pelo ator Irandhir Santos, mas o roteiro não é, de forma alguma, uma cinebiografia sua. “Algumas pessoas pensam que Febre do rato conta a minha história. Chegam a perguntar coisas como, ‘Zizo, você ficou nu?!’”, diz, a respeito da cena em que o poeta da ficção despe-se em plena Rua da Aurora, no bairro central da Boa Vista. “Não, de jeito nenhum!”, garante sorridente o discreto anarquista, que, segundo sua sobrinha Patrícia Lima, depois da sessão première no festival Janela Internacional de Cinema, em 4 de novembro do ano passado, veio no ônibus, de volta para casa, divertidamente preocupado com sua reputação, porque nunca usou, ou usaria, uma caixa d’água no quintal como espaço para momentos de intimidade e, muito menos, suas namoradas eram, ou seriam, mais velhas que ele.

 

“Eu também jamais subiria em um carro e declamaria poesias no megafone”, revela, lembrando de uma das cenas impactantes de Febre do rato, no qual ele fez uma “ponta”. “Talvez esse seja mais o perfil de Miró”, cita o aclamado poeta, com visível respeito e estima. “Miró é performático, é um ator, é o Othelo do Recife”. Apesar de festejar o sucesso do artista da Muribeca, Zizo tem ressalvas quanto à recepção do mercado editorial à poesia marginal. “Eles não são respeitados e jamais serão. Há um apartheid nessa área, pois existe ainda muito preconceito. O poeta marginal é como se fosse um grafiteiro, aos olhos de algumas pessoas”, avalia.

 

Mesmo não narrando a história de Zizo, nascido José Maria de Lima Filho, o filme traz algumas semelhanças com sua vida. Ele também mora com a mãe no subúrbio da cidade, teve amores complexos, idealizou musas, foi e é contra qualquer ditadura, está cercado de amigos que lhe admiram, tem uma profunda dedicação ao trabalho de fazer panfletos poéticos e escreve poemas, mesmo que poucos e curtos — ao contrário dos caudalosos, que foram escritos pelo roteirista Hilton Lacerda e declamados por Irandhir Santos. “Gosto de recitar poesias curtas para poder sair de cena logo. Dizem que o artista tem de ir aonde o povo está, mas eu sou exatamente o contrário. E a criação também não deve depender do povo”. Um exemplo dos breves textos zizonianos - “Uma porta conforta/depois da surpresa.../sou sua presa/tesa, acesa pelo acaso” — mostra sua afeição pelo ritmo rápido das rimas.

 

Inspirado pela leitura de autores como Florbela Espanca, Graciliano Ramos, Osman Lins, Augusto de Campos, Edgar Allan Poe, Borges, Garcia Lorca, Zizo começou a fazer os seus primeiros poemas, e pelos traços e figuras de Ziraldo e Henfil, como a Graúna, passou a encarar com mais afinco o talento para desenhar.

 

Certo dia, resolveu somar essas duas paixões na concepção de zines para divulgar sua produção e a de outras pessoas que não encontravam oportunidade para uma publicação, digamos, formal. Vieram diversos jornais, feitos com vários colaboradores, entre eles, Em Tempo, Movimento, Palco Aberto, Revolução, A Mosca, O Barato da Patota — “Ninguém vinha pra cima de nós por causa do nome que era idiota”, conta Zizo, que chegou a ser ameaçado de prisão, na década de 1970, mas, por sorte, escapou ileso.

 

E aqui vale um parêntese: não se sabe se era por causa do regime militar, mas as ruas do Recife não contavam com jornais de poesia. E mesmo os que surgiam eram raros e interruptos. Nos anos 1980, na “época da abertura”, teve o Balaio de Gato, e, na década de 1990, De Cara com a Poesia.

 

As publicações de Zizo costumavam ser produzidas com folhas de papel carbono e mimeografadas, e circulavam em faculdades. No começo da década de 1990, ele lançou o Cacos e Caos, que, rebatizado de Caos, vem sendo distribuído até hoje.  O jornalzinho é confeccionado com verbas próprias e sem patrocínio, e montado de forma artesanal, com colagens de recortes de textos e imagens, para, enfim, ser xerocado — isso em plena era dos webzines, dos blogs, do Twitter e do Facebook (!). Desta forma, Zizo mantém essa cultura de zines, com “diagramação” de aspecto eighty, sem defender uma estética específica, sem fazer ode ao vintage ou ao retrô, mas apresentando algo que é apenas fruto do simples fato dele não ter — e não usar — computador.

 

Respirando o mesmo ar do mundo dominado por aparelhos touch screen e incontáveis xingue-lingues, o nosso incomum personagem ignora até mesmo uma simples troca de e-mails. Ele possui correio eletrônico, mas não o utiliza. Quem o acessa é a já citada sobrinha Patrícia, com quem o poeta mora junto à mãe no bairro do Cordeiro. Dali, Zizo costuma pegar ônibus para resolver problemas da casa e manter seu ofício de editor alternativo.

 

Trajando tênis, camisa preta, calça jeans e mochila nas costas e exibindo um cabelo meio grisalho de franja, daqui a três anos, ele, hoje com 62 anos, poderá desfrutar das benesses dos cidadãos da terceira idade, como o acesso gratuito aos transportes coletivos, o pagamento de meia entrada em shows e a entrada em fila preferencial, mas terá um pouco de dificuldade para convencer as pessoas a respeito da sua idade. Como se não bastasse o look jovial, seu riso sapeca ainda lhe confere um jeito de menino danado.

 

Atualmente sem carteira assinada, ele já trabalhou na Reitoria da UFPE e na saudosa livraria Livro Sete, onde era o vendedor que, às vezes, fazia vista grossa para pequenas lacunas deixadas nas prateleiras por estudantes necessitados. Atualmente, seu trabalho consiste em ser autor de publicações alternativas, e sua mente está cheia de ideias e projetos, como a estreia da revista em quadrinhos da Sue, personagem que vai ganhar um curta-metragem intitulado Suprema insanidade, com previsão de lançamento em 2012. Sue é apenas um dos diversos “filhos” de Zizo, assim como Pixota, Vovó Lúpia, Boy Lero e Beleléu. “Ela é uma transgressora, do começo ao fim. Foi feita como uma colcha de retalho de várias figuras femininas e tem um pouco de alter ego do autor. É uma personagem atemporal”, avalia Patrícia.

 

Para Zizo, que viveu, pelo menos, quatro décadas fazendo o que chama de “poesia política”, o país melhorou em alguns aspectos, mas a corrupção, para ele, piorou, assim como a violência nas ruas. “E o caos continua”, diz, fazendo uma sutil propaganda de sua publicação e brincando, como sempre, com as palavras, o que se pode conferir nos poemas espalhados em muitas de suas publicações (“Uma sinfonia/em sintonia/com tua nua anatomia/Vais, menina, assim/à sina traquina”).

 

Nessa entrevista ao Pernambuco, concedida em sua casa, ele recordou pessoas que o ajudaram, de diversas formas, em vários momentos de sua carreira, e fez questão de mencioná-las, como Ângelo Monteiro, Luiz Carlos Monteiro, Juracy Andrade, Amin Stepple, Expedito Tenório, Marcus Pedrosa, Anchieta Antunes, José Gomes, Roberto Borges, Danielle Romani, Luiz Momesso, Marcus Accioly, Wilson Vieira, Erickson Luna e até mesmo o editor deste suplemento, Raimundo Carrero.

 

As fotos para ilustrar esta matéria foram feitas inicialmente na varanda da casa de Zizo, onde ele, sentado ao chão, estava cercado por exemplares de seus pequenos jornais (a maioria, apenas uma rara unidade amarelada de cada edição). Nesse momento, eu e o fotógrafo Ricardo Moura avistamos uma caixa d’água vazia no quintal da residência e não resistimos em tentar fazer uma brincadeira visual, com o entrevistado saindo desse gigante recipiente vazio. Então, entre bananeiras, mangueiras, galinhas e um galo bicando o chão, o poeta anarquista encarnou seu papel de protagonista e distribuiu mais um exemplar de seu sorriso bondoso e zen.

 

Zizo, o personagem real e extemporâneo, que ainda merece um filme — e agora parafraseio o narrador do romance citado na abertura deste texto — talvez nunca teria existido a “não ser na cidade a que” pertence.


Confira a nossa segunda matéria de Capa: “Marginal” ou o heroísmo de se dizer livre