A técnica confessional da tetralogia Um cavaleiro da segunda decadência, de Hermilo Borba Filho, é muito bem realizada, erguida a partir de depoimentos escritos com absoluta qualidade e sem excessos — apesar da presença do sexo em quase todas as páginas. Mestre na arte de escrever, Hermilo Borba Filho estabeleceu um projeto literário humano, político e cultural, em que trabalhou quatro décadas, variando de pontos de vista, embora com um olhar político encravado em Pernambuco e nos seus personagens. Não abriu mão da crítica áspera, da ironia e, não raras vezes, da contundência para realizar a sua obra intelectual mais importante. Tinha o fôlego de quem conhece os caminhos ásperos que é preciso percorrer num projeto ficcional.

 

Marcado pela literatura de língua inglesa, sobretudo a norte-americana, a partir de nomes como Henry Miller e Eugene O’Neill, procurou no primeiro a sua melhor companhia para atravessar o caminho da obra e com ele travou um longo e belo diálogo. Hermilo foi buscar em Lawrence Durrel, autor de O quarteto de Alexandria, a frase que daria título à sua tetralogia. Em O’Neill encontrou inspiração para o título do primeiro dos quatro romances: Margem das lembranças. O’Neill é autor de um peça teatral admirável chamada À margem da vida. Mesmo assim, Hermilo foi sempre independente, dono dos seus próprios caminhos. Nenhuma imitação, nenhum plágio. Todo escritor, naturalmente, tem os seus padrinhos ou companheiros de viagem, desde Virgílio e Dante. Ariano Suassuna sempre teve confessa admiração por Cervantes e por Dante, além dos românticos alemães e pelos mestres da prosa russa do século 19.

 

Hermilo começa Margem das lembranças, a primeira das mil páginas que compõem a tetralogia, colocando-se numa balança e diz que, no final, espera ser julgado pelos homens e por Deus por tudo que está escrito, verdadeiramente, mesmo quando recorre a uma invenção para melhorar a narrativa ou para diminuir os seus pecados. Tudo isso numa linguagem aberta, com mais verdades do que metáforas, frases de quatro ou cinco linhas, ou todo um parágrafo, sangrando, sem se esconder, desde os episódios da adolescência envolvendo a diretora da escola em Palmares até a prisão, no Recife, nas páginas de Deus no pasto, durante os anos de chumbo do Golpe Militar. Há frases que podem ocupar um capítulo inteiro, com alternâncias de tempo e de espaço. Um estilo literário extremamente denso e rápido, às vezes mudando de episódio na mesma frase ou no mesmo parágrafo. Assim realiza aquilo que podemos chamar de episódios sobrepostos — ou seja, vários episódios ao mesmo tempo numa narrativa vertiginosa e muito bem cuidada.

 

Outra técnica que HBF adotou desde o primeiro momento foi a de usar uma epígrafe em cada capítulo, logo abaixo da numeração. O segundo volume chama-se A porteira do mundo, e encontra Hermilo no Recife até a viagem a São Paulo, para onde se deslocou movido pelas perseguições políticas, local do terceiro livro, O cavalo da noite. Aí passa a dirigir grandes grupos nacionais de teatro e tem uma vida noturna mais sôfrega. Segue-se Deus no pasto, mas sem alterações estilísticas. Mantém-se fiel ao leitor, à obra e a ele mesmo desde o princípio. Sem concessões e sem recuos. Aí ele introduz uma nova técnica: insere no texto geral trechos do diário de Túlio Carelli. As últimas páginas deste romance são páginas de mestre, em que o autor olha pela janela do presídio para admirar a chuva fina e a campina lá fora. Questiona a presença de Deus, pergunta pela intervenção divina naquele momento doloroso, naquele instante em que o homem é colocado diante de sua própria dor, diante do seu abismo. Mas o Hermilo religioso também está ali, o convertido que clama pela presença do Senhor, que espera sobretudo pela iluminação.