Entrevista com Heliana Conde

Quando iniciou sua pesquisa a respeito do filósofo e especificamente quando começou seu interesse pelas viagens do mesmo?
Sou psicóloga e leio Foucault desde o início dos anos 1980, quando comecei a participar de grupos e organizações bastante críticos dos percursos históricos dos saberes e práticas psi – Psicologia, Psicossociologia, Psicanálise -, inclusive (ou especialmente...) no Brasil. Depois disso, jamais abandonei os textos do filósofo e, embora não o tenha conhecido “em corpo”, suas intervenções no campo político-cultural atraíram minha atenção mediante a leitura das biografias escritas por Didier Eribon e David Macey. Através delas, “descobri” as cinco visitas feitas ao Brasil, abordadas por esses biógrafos, como era de se esperar, de modo extremamente sucinto. Na década de 1990, passei a me dedicar à História da Psicologia no Brasil, sempre investigando os “contradiscursos” e “contrapoderes” que propiciaram/propiciam alguma “respiração” no âmbito psi, que é hegemonicamente regulador, normalizador, controlador, invalidador das camadas populares etc. Depois de defender minha tese de Doutorado (USP) sobre a História da análise institucional no Brasil, comecei a me perguntar por que não me voltava para a presença de Foucault em nosso país, visto que ele era, a essa altura, a principal ferramenta de que eu lançava mão para minha forma de “escrita da História”, meus cursos na UERJ e, inclusive, minhas ações eventuais fora da Academia. Elaborei então um projeto voltado tanto à presença do filósofo em nosso país — as cinco visitas, pouco exploradas também por autores brasileiros — quanto aos efeitos e ressonâncias de seu pensamento em diferentes disciplinas — psicologia, história, sociologia etc. — e práticas — movimentos sociais, imprensa alternativa, educação etc. Intitulado Michel Foucault no Brasil: presença, efeitos e ressonâncias, ele está em andamento, tendo começado em 2009. Trabalho com fontes escritas — bibliográficas, artigos na grande imprensa e imprensa nanica, atas de reuniões universitárias, livros e teses brasileiros sobre Foucault etc. — e entrevistas sob o paradigma da história oral — com pessoas que tiveram contato com Foucault no Brasil e/ou usam a “caixa de ferramentas” foucaultiana na academia ou fora dela.

 

Depois de 1965, Foucault veio mais quatro vezes seguidas ao Brasil nos anos 1970. Sua não vinda nos 60, além de 65, tem relação com um período mais intenso de ditadura militar (68, AI-5 etc)?
É um pouco difícil responder a essa questão, mas as características da primeira visita e a própria trajetória de Foucault podem fornecer algumas luzes. Em 1965, veio a convite de Gerard Lebrun, professor francês que estava na FFCL-USP como parte da “missão francesa” que vigorava desde a fundação da Universidade — época, os anos 1930, em que vieram, por exemplo, Fernand Braudel e Claude Lévi-Strauss, antes de se tornarem famosos. Em 1965, Foucault dificilmente seria “suspeito” aos olhos dos militares. Estava terminando de escrever seu livro As palavras e as coisas e muitos o identificavam com o Estruturalismo, que, embora tivesse seus praticantes marxistas, era predominantemente visto como quase o oposto desse último. Foucault já escrevera História da loucura, é claro, mas o livro, de 1961, não teve impacto político até que fosse descoberto, exatamente a partir desses meados dos anos 1960, pelos antipsiquiatras ingleses (Laing, Cooper etc.) e pela psiquiatria democrática italiana (Basaglia). Sendo assim, o nome “Foucault” não teve problemas com a Ditadura em 1965, mas o curso que ministrava na USP à época foi interrompido devido às ações dos militares — estes vigiavam a USP, bastante combativa, e ainda situada então na Rua Maria Antônia. Com 1968 e o AI-5, de certo aumentou a vigilância sobre professores estrangeiros no Brasil. Paralelamente, sob o efeito do “ano das barricadas”, também os caminhos de Foucault se transformaram. Em 1969, ele dirigiu o Departamento de Filosofia da Universidade Experimental de Vincennes, permanentemente em luta com o governo francês. E desde seu ingresso, em 1970, no prestigiado Collège de France, passou a ter fortes vínculos com os movimentos sociais de defesa dos imigrantes, dos prisioneiros etc, dentre os quais se pode destacar a fundação, em 1971, do GIP (Grupo de Informação sobre as Prisões), que se tornou fonte de inspiração para as lutas contra as prisões em todo o mundo. Sabendo-se que a segunda vinda de Foucault ao Brasil ocorreu a convite do Departamento de Literatura da PUC-RJ, na figura de Affonso Romano de Sant’Anna, pode-se supor que houvesse relação entre a distância temporal e o endurecimento do regime. Cabe dizer, no entanto, que depois do Rio de Janeiro, onde ministrou o curso “A verdade e as formas jurídicas”, que causou grande impacto ao relacionar as ciências humanas aos poderes disciplinares característicos das sociedades modernas, Foucault foi a Belo Horizonte, a convite de Célio Garcia, pois a UFMG mantinha um convênio com a Embaixada da França. Na capital mineira, falou em hospitais psiquiátricos, questionando vigorosamente a “indústria da loucura” então vigente. Sofreu sérias críticas então, até mesmo....nas colunas sociais da grande imprensa. Sem responder taxativamente a sua pergunta — as fontes que poderiam contribuir para isso seriam, talvez, os Serviços de Informação.... —, eu diria que “quando Foucault volta, já é outro”, e um “outro” que seria bem mais suspeito que o de 1965. Em 1973, a repressão já se afrouxa um pouco — os movimentos de guerrilha estão quase dizimados — , mas os combates no Araguaia estão ativos e logo começará a caça aos integrantes dos partidos comunistas.

 

Na sua pesquisa, o que há sobre o Recife? Sobre o que ele falou na cidade? E o periplo nordestino foi registrado em algum documento/texto do filósofo?
Mediante as entrevistas de Sillke Weber, Gadiel Perrusi e Maud Fragoso, ele falou do dispositivo da sexualidade - tema de A vontade de saber, que seria publicado no mesmo ano. A mesma problematização o ocupou em Salvador (na Faculdade de Filosofia da UBA, em São Lázaro) e na UFPA, em Belém, a convite de Benedito Nunes, que Foucault conhecera quando em férias naquela cidade, já em 1973. Nunca encontrei referência ao périplo nordestino nos textos de Foucault, embora nas cartas que escrevia a Defert ele fale que, ao conhecer o Nordeste, está finalmente conhecendo o verdadeiro Brasil, como lhe diziam os amigos brasileiros da medicina social. Em consulta a Dits et Écrits, as referências de Foucault ao Brasil remetem ao entusiasmo por transformações políticas que viu entre os estudantes — que ele compara ao dos estudantes da Tunísia —, bem como ao fato de a psiquiatria brasileira contar tanto com torturadores (provavelmente se refere a Amílcar Lobo, que acompanhou o suplício do deputado Rubens Paiva) quanto com defensores das liberdades, inclusive pondo-se à frente das manifestações de 1968 (provavelmente em elogio a Helio Pellegrino).