Tás rindo de quê?”, a voz ao longe de Paulo Bruscky me interpela, no momento em que rompi o silêncio do nosso encontro com um sorriso espontâneo. Ele, em meio a estantes repletas de livros, à procura de um exemplar de Arquivo impresso: Poesia inédita (2012), ouviu o tilintar do meu riso. “É essa tua obra aqui, Quadro a óleo. E essa lata de óleo de cozinha Lisa no meio da moldura...”, digo. “Achei!”, a voz de Paulo Bruscky ainda ao longe. Ele caminha em minha direção – estou no corredor de seu ateliê observando algumas de suas obras dispostas na parede que dá acesso aos fundos, uma espécie de cozinha e um quintal. “Os artistas na época ficaram arretados com essa minha brincadeira”, diz Bruscky, reconhecendo que fui capturado pelo seu jogo. A obra Quadro a óleo é composta por uma moldura, uma lata de óleo de cozinha da marca Lisa ao centro e o título, uma provocação formada por moldura, imagem e palavras.


É do jogo entre imagens e palavras que reside parte do lastro da poética de Paulo Bruscky, artista pernambucano, parcela de pioneirismo na arte conceitual no Brasil, interessado pelos jogos de linguagens. Acho que, no momento em que irrompi o silêncio com um sorriso diante de uma de suas obras, murmurou o saudável atrito dos sentidos. Artista, obra e espectador. Um enunciado. O motivo do nosso encontro é falar sobre Arquivo impresso: Poesia inédita, o primeiro livro, digamos, “livro” de Paulo Bruscky. Como tudo que cerca sua obra, não há meio de expressão que ele não tenha experienciado, recriado, questionado. Fax, carta, fotocopiadora, livro. Livro sem aspas para Paulo Bruscky (em função da recorrência na sua produção) é livro de artista. Já são mais de 200. O livro que a gente está acostumado a folhear, encontrar nas bibliotecas, livrarias, estantes, tem aspas: é “livro” — objeto até então pouco presente de forma tão, digamos, denotativa em meio a seus questionamentos. Arquivo impresso reúne dez poemas de Paulo Bruscky e sai pela Coleção Elixir, de Belo Horizonte (MG), dos editores Ricardo Aleixo e Flávio Vignoli. Terá lançamento em maio na Feira do Livro de Belo Horizonte e, em seguida, no Recife.


Chegando mais perto de Arquivo impresso, nota-se que, mais uma vez, Bruscky segue colocando aspas nas coisas. Embora seja um “livro”, reunião de poemas escritos de forma dispersa, desde a década de 1960, há algo de livro — sim, livro de artista. Não de forma tão explícita como no tijolo de vidro que é a obra Livro de Ar tista, mas pelos questionamentos que há, na própria configuração do meio: Arquivo impresso tem tiragem de apenas 160 exemplares. Todos assinados. O design do livro é sanfonado em papel cartão marrom e as páginas vêm presas como molduras. Para cada poema, uma tipografia diferente – todas elas criadas na Tipografia Matias, também de Belo Horizonte. O papel das páginas-telas também muda. De cor. De textura. Algumas folhas, de gramatura finíssima, nos reportam ao guardanapo de bares. Outras, mais encorpadas, são quase cartões de visitas. Daquela textura que facilita guardar na carteira. O próprio livro vem envolto num elástico branco típico das pastas de arquivos. Lembrando toda carga política que há na obra de Paulo Bruscky, não é difícil remetermos aos arquivos da ditadura, coisas do gênero. São esses signos estéticos em aberto que nos fazem isso...


Voltando às aspas. Arquivo impresso é entre aspas porque conjuga o “livro” com o livro. O próprio Paulo Bruscky chama seus textos de poemas. Mas “sou um artista visual que escreve”, situa. Observando seu lugar na produção artística brasileira, emergem zonas de contato: o artista produziu obras no esteio do poema/processo, na década de 1970; o concretismo legou para Bruscky o interesse pela palavra como lugar de ancoragem — ou debandada — do sentido. “Sempre tive interesse pela literatura, pela música. Li Cabral, Baudelaire, Joaquim Cardoso, todo o pessoal da Geração de 65”, elenca. “A palavra, de alguma forma, faz transbordar a visualidade”, define. Nos anos 1980, quando se debruçou mais detidamente sobre a produção de poesia — talvez se interessando também em produzir poemas de maneira mais tradicional, estes a que estamos acostumados a ler nos “livros” — Bruscky foi tentar entender de mineração. Processos de mineração. Nas minas, há os chamados processos de lavra, que consistem em perfuração, desmonte e remoção de minerais. Lavra: coloque um “pa” na frente e temos a “palavra”. E o poeta como aquele que perfura a língua, desmonta os códigos, remove os sentidos. “Sempre gostei de escrever, fiz jornalismo na Unicap, gosto de burilar, retrabalhar a palavra”, diz.


Foi dessas pesquisas sobre mineração para apreender a complexidade da palavra que Paulo Bruscky chegou a um outro código lúdico: a “palarva”. Larva, a forma animal que ainda não chegou à maturação. “Palarva”, codificação embrionária, essa que ainda ambiciona ser, quem sabe, um dia, palavra. “Escrevi essa ideia de ‘palarva’ em 1971, tentando achar uma metáfora para a própria noção de palavra. Todo mundo queria corrigir achando que estava trocado o ‘rv’ e querendo escrever ‘palavra’ e não ‘palarva’”, ri. No poema “Noturno”, de 1986, presente em Arquivo impresso, Bruscky desconstrói a “palarva”: “Limbo da palavra/ vereda pela larva/ lavra/ só sons, ruídos, sirenes”.


Ao comentar sobre a “palarva”, ele lança algumas questões sobre o seu interesse pela escritura do poema. “Poesia é fome de ver”, define. E explica como nascem alguns de seus escritos. “Caleidoscópio”, de 1976, também em Arquivo impresso, teve sua gênese na observação do cotidiano. A chuva caindo, os pingos se pendurando na marquise. Aquilo que poderia resultar numa obra visual ou mesmo num poema de natureza mais concreta, virou, através de Paulo Bruscky, um texto que tem quase a simplicidade e a forma elíptica de um haicai: “Vejo os pingos da chuva/ que se penduram e caem/ como os mais perfeitos trapezistas/ No chão/ e em compassos/ fragmentos de paisagem”.


A elipse, talvez a mais oblíqua herança do “artista visual que escreve”, logo some ao nos depararmos com “AR- RECIFES DE POESIA DE PBY (O RECIFE EM PROVA E PROSA) ROTEIRO I”, mais longo poema de Arquivo impresso, que, na verdade, foi feito em agosto de 2008, sob encomenda da TV Cultura, que iria fazer um documentário e queria uma visão de Paulo Bruscky sobre o Recife. O texto já tem início com um tom provocador: “O Recife da poesia sonora dos sapos franceses: ui, ui, ui, ui...”. E traz, numa lembrança de “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, a passagem: “O Recife do buraco de Otília, com de tudo um pouco e outros bares e lupanares:/ Venda do Seu João, Leiteria, Gregório, Tita, Bragantino, Espanhol,/ Samburá, Tepan, Don Pedro, Talude, Saci, Gambrinus, Mangueirão,/ Chantecler, entre outros Eus”. Os “eus” de Bruscky dispersos nos bares da cidade. “O bar é um lugar de criação para mim. Muitas vezes, pego meu caderno de ideias, vou para uma mesa dos fundos de um bar e anoto muitas coisas”, explica.

 

 

Inevitavelmente, a questão da palavra ou da “palarva” volta à tona na nossa conversa. Como se autodenomina “um artista visual que escreve”, pergunto se a página, para ele, é o equivalente a uma tela. Ele me responde lembrando que, mesmo para “escritores-escritores”, como João Cabral de Melo Neto, a página nunca foi somente uma página. Também era uma espécie de tela. “João Cabral conhecia muito de artes gráficas, de design. Joaquim Cardozo também”, enumera. “Pernambuco sempre foi vanguarda nas artes gráficas, na forma de apresentação das obras”, lembra. Percebo que o interesse de Paulo Bruscky é mesmo pelas interfaces, pelos deslocamentos. Daí a sua poética de reconfigurar os meios. Ao mesmo tempo, não se furta a me dizer que também gosta da página dos textos em prosa. Aquela repleta de palavras, cheia, ocupada, sem muitos brancos. Os “brancos” da página de um romance, me parece dizer, estão nas entrelinhas de uma história bem escrita. “Gosto muito da literatura russa”, define.


Literatura russa, lembro de alguns romances longos, muitas palavras, Dostoiévski de páginas abarrotadas de letras. E, talvez, sabendo do gosto de Bruscky pelos deslocamentos, questiono sobre um oposto: sim, vivemos numa época em que tudo é digitado, muitos teclados, telas de touch screen, estamos perdendo o sentido do manuscrito? “Eu ainda anoto muito. Tenho cadernos de ideias”, diz. “Olha aí, uso ainda bilhetes para me lembrar das coisas” e aponta para um pequeno papel disposto em cima da mesa de uma espécie de cozinha onde estamos conversando, que tem indicativos do que fazer no dia. Não à toa, olho para uma geladeira ao lado e vejo um ímã disposto na porta branca com os dizeres “Gentileza gera gentileza”, aquele mesmo do poeta-andarilho Gentileza, que escrevia nos muros dos viadutos do Rio de Janeiro. “Em 1978, no Jornal da Cidade, eu fiz uma página inteira de jornal manuscrita. Era uma turma boa que editava, Ivan Maurício, Nagib Jorge Neto, eles deixaram. Eu tinha um espaço sobre cultura, de conteúdo informativo, mas também falava de filosofia, colocava uns contos”, lembra. A permissividade de publicar uma página manuscrita num jornal era mais uma das subversões dos meios que Bruscky constituía como uma construção de seu discurso. Ali residia, possivelmente, também o amálgama da sua arte postal.


Um assunto passa a ser recorrente na nossa conversa: o meio. De comunicação, de expressão, o veículo, o suporte. Aquilo que leva. Ou traz. O entre, esse lugar pouco confortável — porque é de deslocamento –, mas que alguns, como Bruscky, Homi K. Bhabha, Marc Augé, Pierre Verger, Marshall McLuhan, entre tantos outros arriscaram ficar. E pensar sobre. Chegamos a McLuhan, talvez, o “pai” dos estudos sobre meios de comunicação. Bruscky não gostaria muito desse lugar estático em que eu pareço colocar McLuhan — o autor de máximas como “os meios de comunicação são extensões do homem”, “os meios são as mensagens” e de palavras-logomarcas como “aldeia global”. “Muito do que McLuhan tratou, eu li em ‘História das Invenções’, de Hendrik Van Loon, até de forma mais aprofundada”, pontua. McLuhan, ao tratar da ideia de “aldeia global”, estaria falando sobre uma espécie de supressão simbólica da noção de espaço. O mundo é uma aldeia. Aviões nos levam em uma hora a destinos distantes. A transmissão via satélite traz a imagem ao vivo de um jogo de futebol na Espanha para a minha TV no Recife, Brasil. Acesso a internet e converso com alguém na Austrália. O tempo comprime. O espaço nos invade. Ecoamos aquela ideia de Foucault de que habitamos um tempo. “McLuhan estava tratando da vida em rede, da produção a distância e isso já fazíamos desde os anos 1980, com a arte a distância”, aponta Bruscky.


De fato, o tempo real sempre apareceu como matéria-prima na obra de Paulo Bruscky, sobretudo porque ao produzir arte através do fax, tinha-se o processo de desmaterialização na origem e rematerialização no destino. Partida e chegada. E, logicamente, o meio. No bojo deste aparecer e desaparecer, estava o tempo real. É possivelmente deste debate mais conceitual sobre a arte em tempos de internet que Bruscky sente falta. “Não estão sabendo explorar a internet, vejo exposições que são ‘showrooms’ de artistas que dominam o meio”, critica. E com sua voz calma, mas não menos política, ele atesta: “a função da arte é subverter o meio, falta ousadia. A ansiedade da velocidade de reconhecimento assassina muitos artistas”.


Bruscky continua a fazer sua produção a distância. Para a Bienal de Arte da Polônia, que acontece em outubro, em Poznan, vai enviar todo seu material pela internet. O homem da arte postal não se refuta a se adequar ao momento em que trocamos a carta pelo e-mail. “Dá para fazer e-mail arte também”, assegura. E como quem não quer colocar um porto muito seguro para nada — nem mesmo para suas assertivas — atesta: “apesar de tudo isso, ainda ando com caneta e papel, rabiscando, anotando”. E assim como leu sobre mineração para descobrir sobre a palavra, Bruscky investigou também a datiloscopia, o processo de identificação humana por meio das impressões digitais. “Conheci um perito em datiloscopia”, lembra. Suponho que Paulo Bruscky esteja me dizendo que o manuscrito é uma das formas mais poéticas de identificação do ser humano. E que, embora estejamos imersos num mundo de teclados, é ainda sob a égide do toque — extensão do dedo e da mão — que vivemos.


Lembro aquele texto de Mikhail Bakhtin que ele nos fala: é nas mãos que reside a nossa humanidade. Com elas, que gesticulamos, apontamos, pintamos, escrevemos, levamos alimento à boca, tocamos com delicadeza. A mão nos humaniza. E é a mão que toca o teclado que também escreve. “Sinto que as pessoas têm dificuldade de leitura, o signo não é para ser algo erudito”, atesta. E questiono, lembrando o filósofo tcheco Vilém Flusser no seu livro A escrita, a máxima presente na obra: ainda há futuro para a escrita?


Não sei se por um lapso do manuscrito ou mesmo da minha memória, não achei nas minhas anotações a resposta de Bruscky sobre o futuro da escrita. Procurei no meu bloco de notas e nada, nenhum registro. Possivelmente fui traído pela minha ideia um tanto quanto ultrapassada de fazer uma entrevista longa com o artista sem recorrer ao gravador de áudio. Talvez, imbuído pelo espírito subversor de Bruscky, quis questionar a precisão do registro jornalístico. Todo esse texto foi escrito a partir de anotações do que o artista falou. Ele falou muito, mais rápido que a minha escrita manual poderia captar. Fui anotando tópicos, flashes, suas falas. Muito ficou no dito que a escrita não pôde captar. Ficou nesta zona deslizante que Bruscky tanto habita: o entre. A fala do artista, o intervalo, a minha escrita. Numa era da profusão de formas digitais de registro da entrevista, adotei a manual. Para tratarmos de contradições, acho que Bruscky me falou sobre como ele não usa redes sociais numa era de imersão da internet. Eu usando caneta e papel numa era digital, ele negando as conectividades. Talvez tenha a ver. Acho que foi isso.


Já no corredor de saída de seu ateliê, observo um cartaz disposto junto à porta: “vacina contra o tédio”. E chego a pensar se estar em deslocamento, à deriva, questionando os meios, os suportes não seria a própria tentativa de negação do tédio. Algo me diz que Paulo Bruscky é, ele mesmo, um tipo de antídoto. Veneno antimonotonia, diria o cantor. Mas aí, sem que eu verbalize essa coisa de “ser contra o tédio”, Bruscky me diz que comprou aquela casa em que está seu ateliê, no bairro da Boa Vista, “que eu chamo de Nova Olinda”, porque tem um clima meio rural, com casas de porta e janela, parecendo a Olinda da Cidade Alta, pessoas com cadeiras nas calçadas, ruas de paralelepípedo. É aquela região nos arredores do Mercado da Boa Vista, perto do Pátio de Santa Cruz. Recanto de silêncio perto do rush do centro da cidade. “Olha o silêncio daqui”, me diz Bruscky, “nem parece que estamos na Boa Vista”. E mesmo sendo, ele mesmo, um antídoto ao tédio, Paulo Bruscky também não parece negar este tédio que há no silêncio. E que, de alguma forma, é uma subversão daquilo que passamos a manhã inteira a discutir sobre: a palavra.

 


Confira o livro de Paulo Bruscky - Arquivo Impresso, poesia inédita