Por Hallina Beltrão
De todos os livros da Bíblia, há um em especial que mobiliza poetas, intelectuais e religiosos há mais de dois milênios. O conteúdo erótico do Cântico dos cânticos faz um contraste tão agudo com o corpus das Escrituras que seu texto conseguiu frustrar até mesmo os exegetas mais capazes. O poeta, tradutor e diplomata Geraldo Holanda Cavalcanti tomou parte nessa empreitada desafiadora em O Cântico dos cânticos: um ensaio de interpretação através de suas traduções. A publicação, lançada em 2005, é um tour de force que joga luz sobre um dos textos mais comentados e, ao mesmo tempo, menos compreendidos das Escrituras.
Para o Pernambuco, Cavalcanti discorre sobre as influências sofridas pelo Cântico e seu papel na literatura ocidental, além de atualizar as discussões sobre datação e autoria da obra, os percalços da tradução feita por ele, a partir de uma centena de fontes, e a originalidade temática da relação homem e mulher, mostrando o amor físico como “algo belo e fundamentalmente digno”.
Como o Cântico dos cânticos estaria posicionado de acordo com a literatura hebraica antiga e quais influências de outras culturas esse livro bíblico teria sofrido?
A questão mais séria a respeito da inclusão do Cântico nos cânones judaico e cristão está na interpretação da sua natureza. Há dois mil anos discute-se a pertinência dessa presença. O Cântico é o único livro da Bíblia que não menciona o nome de Iahweh. Sua leitura imediata, desprovida das cautelas ideológicas, revela ser um canto ao amor natural, dos mais francos e diretos da literatura de todos os tempos. Como esse texto foi assimilado aos demais livros da Bíblia, todos, sem exceção, de cunho religioso, didático ou laudatório? Não há explicação satisfatória. Por 20 séculos, no caso do cânone cristão, a justificação passa por uma interpretação alegórica do poema, onde as imagens encontradas referem-se ao amor de Deus pela alma humana ou de Cristo pela Igreja. É difícil sustentar essa tese, devido à natureza extremamente realista das imagens que figuram no poema para descrever o corpo da mulher amada e o desejo sexual do seu amado.
No que diz respeito a influências, toda a literatura bíblica está fortemente influenciada pela dos povos circunvizinhos e pelas diversas culturas dos povos invasores. Muitas, muitíssimas histórias da Bíblia são retiradas, com maior ou menor detalhe, sobretudo dos mitos acádicos, babilônicos, ugaríticos, e, muito particularmente, egípcios. Há traços egípcios desde o Gênesis. No caso do Cântico, a influência egípcia parece incontestável e se revela desde a temática, a estrutura de enunciação na forma de solilóquios do amante e da amada, no tratamento recíproco que se atribuem como “irmão” e “irmã” e, sobretudo na presença dos três wasfs que constituem alguns dos mais belos versos do poema. Os wasfs são a descrição metódica do corpo da mulher amada, através de imagens poéticas. Tiveram origem no Egito já no século 13 a.C. e só aparecem, nas literaturas dos povos do Oriente Próximo, no texto bíblico.
Qual seria a originalidade estilística do Cântico dos cânticos no contexto da Bíblia e onde referências feitas a ele poderiam ser encontradas em outros livros das Escrituras?
Quanto à primeira parte de sua pergunta, a extrema originalidade do Cântico dos cânticos na Bíblia está em ser um poema, um poema-livro, o mais longo da Bíblia, de natureza lírica, um poema laico, único texto da Bíblia onde não há uma só referência a Iahweh, como já observamos. A linguagem do Cântico é francamente erótica, e não se assuste o leitor quando uso essa palavra, pois o Cântico foi reconhecido como um canto ao amor natural, ao “eros”, palavra usada nada menos do que pelos papas João Paulo II, numa série de quatro discursos sobre o Cântico, que pronunciou em 1984, e Bento XVI, na primeira encíclica de seu pontificado, intitulada Dei caritas, Ambos reconhecem no Cântico um poema de louvor ao amor natural, ao “eros” purificado de sua figuração exclusivamente sensual. É o único texto de caráter não religioso que sobreviveu da história do povo bíblico. Pode-se supor que outros terão sido escritos, mas, se existiram, não lograram sobreviver. Para alguns críticos, o próprio Cântico pode ser uma montagem de poemas amatórios produzidos ao longo de um extenso período histórico.
Quanto a referências explícitas ao Cântico em outros livros da Bíblia, não há nenhuma. Quiseram vê-las em Oséias, no Salmo 45, nos Provérbios, mas os analistas mais abalizados observam que as imagens encontradas nesses livros, que se assemelham a algumas encontradas no Cântico, são correntes na língua hebraica e não podem certificar serem dele citações. Neles, e em qualquer outro livro da Bíblia, não há menção explícita ao Cântico. Há que levar em conta, ainda, a questão da datação. A autoria do Cântico por Salomão, o que o faria datar do século décimo antes de Cristo, está completamente desacreditada. A tese mais amplamente aceita atualmente é a de que o Cântico tenha sido escrito depois da separação dos reinos de Judá e Israel, em razão de alusões à capital de Judá no corpo do texto. Com argumentos igualmente baseados no texto, muitos autores avançam a data provável de produção do poema ao período posterior à ocupação persa, mas anterior à ocupação helênica. Em qualquer hipótese, o Cântico seria de composição relativamente recente, entre os séculos 5 e 3 antes de Cristo, posterior, por conseguinte, àqueles citados livros da Bíblia.
O senhor não se furtou a fazer uma tradução própria do Cântico. Quais foram os elementos ou experiências durante essa tarefa que o senhor não encontrou em nenhuma outra de suas traduções?
Consultei uma centena de traduções, latinas, portuguesas, obviamente, inglesas, francesas, italianas, espanholas, e até mesmo alemãs, por língua interposta, privilegiando as que foram feitas diretamente do hebraico, geralmente por fontes religiosas. As traduções livres, feitas por não especialistas, só são mencionadas subsidiariamente, para salientar um ou outro detalhe relevante de natureza poética. Para o texto hebraico, vali-me da inestimável colaboração do hebraísta Davy Bogomoletz, que tinha, ademais, a vantagem de estar familiarizado com as múltiplas interpretações da hermenêutica rabínica. Para os textos latinos, servi-me dos textos básicos das distintas vulgatas, sobretudo o da Vulgata Clementina, usado pela Igreja desde o Concílio de Trento, no século 16, e o da Nova Vulgata, o novo texto canônico, desde sua promulgação por João Paulo II em 1979. Estudei cada palavra, cada imagem, em cada versículo dessas traduções, comparando-os com as versões mais reputadas do texto hebraico, e adotei na minha tradução o sentido que me pareceu mais plausível. Não poderia afirmar que exista na minha tradução uma palavra ou conceito que seja absolutamente original. Mas o Cântico não pode ser apreciado em seus versos individuais. Até sua aparência atual em capítulos, estrofes e versos é obra dos rabinos massoretas provavelmente, da primeira década da era cristã. O que importa, pois, é o sentido geral dado ao poema. Se se pode falar de algo novo, na minha tradução, e isso só na sua comparação com as demais traduções para o português, está na atitude assumida abertamente de atribuir ao poema uma natureza laica e nele reconhecer como tema a exaltação do amor físico e sua apresentação como algo belo e fundamentalmente digno.
Em seu livro, o senhor pontua que há mais manuscritos latinos do Cântico dos cânticos que de qualquer outro livro da Bíblia. No Brasil, há menções a ele já a partir dos sermões de Padre Antônio Vieira. O que faz tantos escritores, exegetas e pesquisadores voltarem a esse texto que, de acordo com as palavras finais de seu livro, seguirá sendo para sempre um enigma?
Acho que o que eu digo no meu livro é que o Cântico dos cânticos é, dos livros da Bíblia, aquele mais amplamente traduzido, e isso porque, além das milhares de traduções feitas da Bíblia em sua integralidade em quase todas as línguas da Terra, todas de cunho religioso (cristãs e judaicas), o Cântico, isoladamente como poema, tem sido objeto de incontáveis traduções avulsas por poetas de todas as partes do mundo ocidental. A bibliografia sobre o poema que aparece na obra de Marvin Pope, um de seus mais reputados estudiosos, relaciona em 54 páginas, 960 obras que incluem traduções globais ou parciais, ou comentários interpretativos do Cântico dos cânticos, a maior parte em inglês, alemão e francês, nessa ordem, e não mais do que uma dezena de obras em cada uma das línguas espanhola e italiana. O livro de Marvin Pope é de 1977 e de lá para cá raro é o ano em que não tenham aparecido novas obras sobre o Cântico, todas com apreciações hermenêuticas.
Por que digo que o poema continuará a ser, para sempre, um enigma? Porque nunca será esclarecida a questão de sua inclusão nos cânones judaico e cristão. Talvez nunca deixe ele de ser defendido, com unhas e dentes, pelo estamento religioso como um texto alegórico, em que se fala do amor de Deus pela alma humana, de Cristo pela Igreja, e, por outro lado, com não menor ardor, pelos que acreditam na sua laicidade, como um canto hino ao amor natural. As próprias palavras de João Paulo II, rendendo-se aos argumentos favoráveis à interpretação naturalista, com o argumento nada despiciendo de que o amor natural é algo criado e querido por Deus na união entre o homem e a mulher, não parecem ter mudado a maneira pela qual o Cântico é apreciado pelos católicos. A propósito, menciono apenas um exemplo da renitente defesa católica da intenção alegórica do texto. É um exemplo simples, mas sintomático. Desde o Concílio de Trento, o texto latino da Bíblia, oficialmente adotado pela Igreja, foi a Vulgata Clementina. Nele, o versículo 7:3 do Cântico fala do umbigo da Sulamita. O texto clementino usa apropriadamente a palavra umbilicus (umbigo) A Nova Vulgata (em 1979!) substitui-o por gremium (regaço), o que não tem nenhum sentido num texto que faz, como já disse, a descrição metódica do corpo da Sulamita, da cabeça aos pés, passando, sem rodeios, pelos seios e pelo baixo ventre. Essa bowdlerização do texto sagrado é encontrada, igualmente, em outros livros da Bíblia. Vejamos o que a Nova Vulgata faz na tradução de Provérbios, capítulo 5, versículos 18 e 19. O texto clementino recomendava, expressamente, ao jovem amante: “goza com a esposa a tua adolescência... seus seios (ubera ejus) te inebriem para sempre.” A Nova Vulgata substituiu ubera por blanditiae (carícias, afagos), o que não é, absolutamente, a mesma coisa. O Cântico será sempre o livro por excelência para esse tipo de manipulação pela pudicícia dos braghetones.