Ilustração de Karina Freitas

 

Como e onde estará a literatura de Enrique Vila-Matas dentro de 50 anos?

 

O crítico literário costuma fazer esse tipo de questionamento quando está diante de uma obra que lhe parece relevante, que lhe parece esteticamente recompensadora.

 

A pergunta de fundo é: será que o tempo dará razão ao juízo de valor enunciado pelo crítico literário?

 

Parte do interesse despertado pelos livros de Vila-Matas nasce exatamente de questionamentos dessa ordem — isso porque, dentre os escritores contemporâneos, ele talvez seja o que mais pensou e ultrapassou as fronteiras entre crítica e ficção.

 

Um livro como Doutor Pasavento, por exemplo, lançado em 2006, é um extenso e elaborado resgate de dois escritores: o francês Emmanuel Bove e o suíço Robert Walser. O narrador-protagonista de Vila-Matas, ao longo de seu périplo (Doutor Pasaventoé um longo exercício de associação livre geográfica: um escritor viaja e, nos lugares que visita, rastreia todas as referências literárias que consegue encontrar), testa continuamente a pertinência contemporânea desses dois escritores. Como podemos ler Bove e Walser hoje? Como podemos ler o nosso hoje a partir das ficções de Bove e Walser?

 

Nesse sentido, Vila-Matas é o mais latino-americano dos escritores europeus, e a razão disso é, inicialmente, bastante simples: por conta de sua leitura atenta do argentino Jorge Luis Borges, Vila-Matas conseguiu forjar uma ficção carregada de memória, uma ficção consciente de que a “originalidade” será sempre o resgate de algo esquecido.

 

Vila-Matas aprendeu com Borges a fazer ficção tendo sempre em mente a imagem de Paul Valéry, que escreveu: o leão é feito de carneiro assimilado. Esse procedimento é constante na obra de Vila-Matas. Se Doutor Pasaventofoi feito a partir de Bove e Walser, História abreviada da literatura portátil, de 1985, foi feito a partir de Marcel Duchamp e Laurence Sterne; Bartleby e companhia, de 2000, foi feito a partir de Herman Melville e Rimbaud; Paris não tem fim, de 2003, foi feito de Ernest Hemingway e Marguerite Duras – e poderíamos continuar até elencar a totalidade dos livros escritos por ele.

 

A ficção de Vila-Matas é uma ficção do arquivo. Isso significa que ela está permanentemente ligada a uma percepção revolucionária do tempo, pois sobrepõe continuamente autores e obras de períodos distintos, estabelecendo uma rede descontínua e des-hierarquizada de referências (assim como postula Borges em seu ensaio sobre Kafka e os precursores). “Escrevo para ser cada vez menos aquilo que sou”, diz um dos personagens de O mal de Montano, romance que Vila-Matas publica em 2002. Ou ainda: “A arte é também escapar do que acreditam que você é ou do que esperam de você”, como aponta em seu último livro, Ar de Dylan.

 

Ler a ficção de Vila-Matas, portanto, é um radical desafio de alteridade — ou seja, buscar o estranhamento a cada gesto de leitura e escritura. Cada um de seus livros oferece um intrincado mapa de filiações, e conhecemos Enrique Vila-Matas sempre de forma indireta, de forma oblíqua. O que finalmente conhecemos, quando terminamos a leitura de seus livros, é uma espécie de imagem rarefeita, composta de fragmentos de textos, rostos e obras. A partir das escolhas que faz o escritor Vila-Matas (escolhas pessoais, manifestações de um leitor experiente que só depois transformou-se em escritor), o leitor de seus livros, quase sem querer, termina por esboçar seu próprio percurso — conhecendo um pouco mais a si mesmo, sem uma vez sequer ter dito a palavra eu.

 

II

A cada livro de Vila-Matas, todos esses questionamentos e constatações emergem renovados. Com o passar dos anos, seus livros procuram, ao mesmo tempo, um afastamento daquilo que já foi realizado, sem, com isso, deixar de circular pela mesma área comum. Com seu último livro, Ar de Dylan, que sai agora traduzido no Brasil, não é diferente.

 

Desde muito cedo, Vila-Matas investiu em duas linhas de produção literária: as novelas breves, de forte acento metanarrativo, e os romances, não menos metanarrativos, porém, com um investimento substancial no desenvolvimento da história. Ar de Dylanpertence à segunda categoria, e, assim como Dublinesca, A viagem verticalou Longe de Veracruz, persegue, durante muitas páginas, o fio de uma narrativa sempre intrincada e repleta de reviravoltas e desvios.

 

Em Ar de Dylan, encontramos o narrador em um congresso sobre o fracasso, organizado por uma universidade suíça – o uso da conferência como gênero literário já foi usado pelo próprio Vila-Matas, com muito sucesso, em Paris não tem fim. O narrador, um escritor que, como sempre, guarda muitas semelhanças com o Vila-Matas que conhecemos, assiste a uma leitura muito intrigante de um jovem chamado Vilnius Lancastre. Semanas depois, reencontra o jovem em Barcelona, onde ambos vivem. Vilnius Lancastre, que é cineasta e prepara um ambicioso projeto sobre o fracasso, não consegue esconder aquele que termina por ser seu traço mais marcante: uma peculiar semelhança física com o jovem Bob Dylan.

 

Por conta de seu projeto sobre o fracasso, Vilnius decide criar uma espécie de sociedade secreta, um seleto grupo de artistas que são guiados pelo seguinte princípio: ter apenas uma ideia por dia e deixá-la desaparecer no ar logo depois de enunciada, ou seja, pensar sem jamais realizar. Vilnius denomina esse grupo de “os infraleves”, ou “os Oblomovs” — este último termo é um empréstimo direto de um romance russo, publicado por Ivan Goncharov em 1859.

 

Segundo o narrador de Ar de Dylan, trata-se de “uma sociedade que não se dedicava a nada de concreto”, uma sociedade “que se sentia atraída pelo infraleve, por todas essas coisas — pensemos em num sabão que escorrega, por exemplo — que são, por um lado, tão indeterminadas e, por outro, tão específicas”. E completa: “são tudo ao mesmo tempo, como a própria vida”. Mas, afinal de contas, o que é o infraleve? “Infraleve era o roçar de uma calças ao caminhar”, escreve o narrador, “um desenho a vapor de água, um bafejo no vidro da janela”.

 

Falando de maneira um pouco mais contextualizada, “infraleve” é um conceito (uma categoria, talvez uma sensação) criado por Marcel Duchamp em suas notas de trabalho. É impossível ignorar a importância de Duchamp para o desenvolvimento da literatura de Vila-Matas: em História abreviada da literatura portátil, as caixas-maletas criadas por Duchamp são a ideia central por trás da “conjura portátil” (o grupo de artistas que se comprometiam a criar uma obra que pudesse caber em apenas uma maleta) e tanto em Bartleby e companhiaquanto em O mal de Montanoo nome de Duchamp é citado várias vezes.

 

Em Ar de Dylan, no entanto, a busca por Duchamp é ainda mais intensa — e tudo começa desde o título. Sim, “ar de Dylan” faz referência direta a Bob Dylan e ao fato do jovem Vilnius Lancastre ser muito parecido com o cantor quando jovem. Mas o título do romance é, na realidade, uma surpreendente mistura de Dylan e Duchamp, isso porque, em 1919, o artista francês comprou uma ampola de vidro em uma farmácia parisiense e a levou a Nova York, como presente para aqueles que o esperavam do outro lado do oceano. “Como meus amigos tinha praticamente tudo”, disse Duchamp (segundo o narrador de Vila-Matas), “levei para eles cinquenta centímetros cúbicos de Ar de Paris”. O romance de Vila-Matas, portanto, é o encontro do aspecto camaleônico de Bob Dylan com a pulsão ready-made de Marcel Duchamp.

 

Ilustração de Karina Freitas

 

III

O novo romance de Vila-Matas, como afirma o próprio narrador, leva em seu título o nome da sociedade secreta que se empenha em criar: “em homenagem a Duchamp”, escreve Vila-Matas, “essa sociedade podia se chamar Ar de Dylan, o que permitiria a ambos [o jovem Vilnius e sua namorada, Débora] imaginar a si mesmos como uma gota de cristal que conteria a essência de sua época”, uma gota de cristal como aquela que usou Duchamp para levar Paris, de forma portátil, para Nova York. Uma gota de cristal que conteria “o ar de seu tempo, do nosso, de um tempo ligado em arte ao mundo de Bob Dylan, criador esquivo e homem de tantos personagens e personalidades”.

 

Ar de Dylané mais um indício que mostra como Vila-Matas conseguiu captar uma linha de força da modernidade, transformando-a em procedimento literário original. Essa linha de força, que é, ao mesmo tempo, conceitual e prática, se define por dois elementos: 1) filiação e 2) arquivo. Ou seja, o primeiro elemento está relacionado ao contínuo uso das referências, ao desenvolvimento de uma ficção “parasitária”, “secundária”, que vive sempre em paralelo a outros autores e outros livros. Esse gesto de filiação é, necessariamente, um procedimento de abertura do arquivo da modernidade — um procedimento de revelação tardia da tradição, de abertura dos elementos esquecidos do passado e, finalmente, de montagem e re-montagem das referências.

 

Vila-Matas descobriu uma forma muito inovadora e lúdica de colocar todos esses elementos em evidência. Mais do que isso, conseguiu transformar esses elementos um pouco abstratos em narrativa, e faz isso a partir das sociedades secretas que cria para suas histórias. Uma breve retrospectiva bastará para deixar claro esse motivo recorrente da obra de Vila-Matas: como vimos, a História abreviada da literatura portátilapresenta a sociedade secreta dos shandys, artistas sempre prontos para viajar, cujas obras cabem em maletas; Bartleby e companhiatrata da comunidade dos artistas que desistiram de seus ofícios, de suas atividades — os artistas do Não; O mal de Montano, investindo na vertente oposta, apresenta os escritores doentes de Literatura, que pensam sempre de forma literária, que veem o mundo através de citações; Paris não tem fimé sobre um grupo muito fluido de indivíduos que gravitou por Paris durante a década de 1970 — resgatados e reorganizados pela memória do próprio Vila-Matas, trinta anos depois; Dublinesca, por fim, mostra um cortejo de homens de letras que comemoram o bloomsdaye promovem o “funeral íntimo” de sua época.

 

A sociedade secreta é, para Vila-Matas, uma estratégia de movimentação dentro da contemporaneidade — um procedimento de entrada e saída daquilo que, em Ar de Dylan, ele chama de “ar do nosso tempo”. Há, por trás disso, uma lógica da filiação e da afinidade, e, consequentemente, a formação de comunidades guiadas por interesses comuns, que procuram escapar dos imperativos mercadológicos do presente. São comunidades rarefeitas, postiças, instáveis e, agora, depois de Ar de Dylan, também infraleves, que se dissolvem no ar. Ordenamentos provisórios de indivíduos guiados por obsessões comuns — obsessões que giram sempre em torno da leitura, da escritura, da literatura. “Os infraleves existiam para esvaziar o real”, escreve Vila-Matas em Ar de Dylan, “e, uma vez que havia crise, ser a própria crise era o que poderia salvá-los dela”.

 

Essas comunidades funcionam como células de resistência, como núcleos de um fazer artístico que se coloca contra a corrente, contra certa “moda” literária, ainda que nunca fique muito claro de onde vem essa moda. Vila-Matas, seja em seus livros, ensaios ou entrevistas, muitas vezes deixou evidente seu descontentamento com os rumos da literatura espanhola contemporânea — seus temas convencionais, sua linguagem politicamente correta, seu futuro enfadonho. Em O mal de Montano, Vila-Matas fala das “toupeiras” que tentam “furar” a literatura desde seu interior, procurando expulsar a criatividade e a inovação. O narrador de Ar de Dylan, por sua vez, afirma: “Meus jovens amigos viviam em meio a uma atmosfera cultural vazia”, e completa: “Jamais tinha havido tanta banalidade nas culturas catalã e espanhola e isso, em termos gerais, era contagioso”. As comunidades criadas por Vila-Matas, portanto, são uma forma de remexer o arquivo da tradição literária (exercícios de memória e erudição), mas são também uma forma de intervenção sobre o cenário literário contemporâneo. Passado, presente e futuro se misturam nas conjuras conspiratórias de Vila-Matas — e parte da força estética da experiência de leitura de seus livros passa por essa interpenetração de temporalidades.

 

IV

Vila-Matas, claro, não está sozinho. E ele é o primeiro a indicar os escritores contemporâneos que considera especiais, que considera próximos à sua própria poética. De todos os que cita, três nomes sempre aparecem em destaque, especialmente pelo fato de Vila-Matas não apenas mencionar os nomes, mas também indicar os títulos que considera mais representativos: Danúbio, do italiano Claudio Magris, A arte da fuga, do mexicano Sergio Pitol, e Os anéis de Saturno, do alemão W. G. Sebald.

 

Essa é parte da comunidade que Vila-Matas cria para si também fora de seus livros. Se sua ficção postula uma série de conjuras portáteis e infraleves, uma série de comunidades provisórias que desafiam os rumos do contemporâneo, em sua vida deve fazer o mesmo — exatamente para mostrar que as duas esferas, vida e obra, estão em constante permutação. Junto de Sebald, Magris e Pitol, outros nomes poderiam engrossar as fileiras desse grupo, como Antonio Tabucchi, Paul Auster ou Javier Marías (este responsável por outro amplo projeto de “conjura portátil”, o Reino de Redonda, uma nação fictícia que desde 1865 é “governada” à distância por escritores).

 

A preocupação de Vila-Matas com o passado (com o arquivo, com a leitura contínua da tradição) faz com que ele transforme também o presente, lendo seus contemporâneos de forma voraz — como se todos compartilhassem a autoria de uma obra ainda a ser escrita, uma obra em potência (como Vila-Matas já apontou em Bartleby e companhia, um romance formado por “notas de rodapé de um texto invisível”). Os escritores que, junto com Vila-Matas, formam essa linhagem muito específica da literatura contemporânea, estão unidos por um forte senso de impureza dos gêneros — conscientes do fato de que quanto mais porosas são as fronteiras do romance, mais rico será seu alcance. “Ser a própria crise era o que poderia salvá-los dela”, como escreve Vila-Matas em Ar de Dylan, no sentido de que criar suas próprias dificuldades talvez seja mais interessante do que esperar sua inesperada chegada.

 

Geralmente os livros dos escritores citados acima apresentam uma dicção ensaística em meio à narrativa, uma sorte de pulsão documental que atravessa a ficção. Em suma, um desejo de expor a literatura em sua condição de artifício, diminuindo consideravelmente o espaço que separa a crítica da ficção. Um livro como Bartleby e companhia, por exemplo, conta uma história de desistência e fracasso fazendo uso de dezenas de fragmentos de comentário literário, filtrados por uma hipótese crítica que lhes dá coesão. A mesma lógica está em livros como Microcosmos, de Claudio Magris, Todas as almas, de Javier Marías, ou Sonhos de sonhos, de Antonio Tabucchi — todos permeados por um desencanto diante da ideia da literatura como um grande projeto humanista de esclarecimento do homem e de suas faculdades, mas, por outro lado, profundamente empenhados em jogar com a vida e a arte, movimentar os elos que regem seus encontros e acasos.

 

Há uma passagem de Ar de Dylanque reúne esses motivos e pode servir como imagem de encerramento. O narrador recebe do jovem Vilnius a missão de escrever a autobiografia de seu pai recém-falecido, o também escritor Juan Lancastre. O narrador de Vila-Matas, quando toma conhecimento do projeto, afirma que “estava diante da primeira grande chance de verdade de minha apagada vida de escritor”, questionando-se: “Não havia passado anos escrevendo romances nos quais tentava sempre fazer passar por reais minhas histórias de ficção? Pois agora”, continua o narrador, explicando seu fascínio pela ideia de criar, de forma póstuma, a vida de um estranho, “estava diante da possibilidade contrária: uma história da vida real da qual eu estava sendo testemunha privilegiada ia ter de ser contada em tom de memórias abreviadas de um escritor morto, porque essa era a minha intenção secreta: transformar o que eu tinha vivido nas últimas semanas na autobiografia do falecido Lancastre”.

 

Essa passagem faz eco imediato com um longo conto que Vila-Matas incluiu em Exploradores do abismo, um livro de 2007, chamado “Porque ella no lo pidió”, que toma como protagonista a artista plástica Sophie Calle (e tudo começou quando Paul Auster transformou Calle em personagem de seu romance Leviatã, de 1992). Se Auster, em seu livro, apreende elementos da “vida real” de Calle e transporta para a vida de sua personagem ficcional, Vila-Matas, em seu conto, acata o desafio da própria Calle e escreve uma ficção destinada para a vida, ou seja, uma ficção que Calle, depois de ler, deveria viver.

 

O narrador de Ar de Dylan, contudo, apresenta uma nova versão desse teatro do cruzamento entre vida e obra. Seu projeto ficcional consiste em transformar sua vida recente em autobiografia apócrifa de um escritor desaparecido, como se a vida de um escritor fosse, em suma, já póstuma, como se vivesse, desde sempre, em um tempo alternativo, estranho. Talvez seja a partir desse lugar obscuro que Vila-Matas continue escrevendo seus livros, suas enigmáticas máquinas de implosão do real.