Ilustração/Capa por Raíza Bruscky

“O pensamento é o único lugar onde ainda estamos seguros, onde nossa loucura é permitida e todos os nossos atos são inocentes”, determina a imagem randômica do tipo para-refletir, na qual cabeleira publicitária de moça divagante carrega flor com cheiro de Alfazema. 495 facebookeiros resolveram, audazes, gritar aos ventos a frase de Martha Medeiros. E, ao menos para um suposto paradigma literário que aqui pode configurar crime contra as peremptórias letras, nada de segurança quando o pensamento vira like. Esses internautas são uns homicidas.

 

Afinal, o que acontece quando o destino Power Point de citações aleatórias a se degustar em doses psicoterapêuticas ganha impacto viral nas redes sociais? Talvez estejamos aprendendo a ler de outra forma. Ou teríamos nos tornado, malvada e tacitamente, maculadores da Literatura?

 

Se sim, Martha Medeiros se tornou bom exemplar de vítima, abaixo de incontornáveis hits como Caio Fernando Abreu e Clarice Lispector no ranking de autores desfigurados na rede. Seu catálogo de aspas circula em ao menos cinco contas de Twitter, duas de Tumblr, dois aplicativos e nada menos que 47 contas de Facebook.

 

Seja entre as páginas célebres, como a didática Aprendendo com Martha Medeiros, que esbanja mais de 70 mil seguidores, seja entre as dezenas de mirradinhas, o destino é o mesmo: imagem com frase-chave ou aquele trecho pra cima aspeado de um texto perdido no tempo e no espaço. Curadoria de leigos que, para alguns, é impertinência de um hiperrecital desregrado onde o pensamento escapa sem consentimento.

 

Alvo autoproclamado dos citadores, Luís Fernando Veríssimo decidiu usar sua coluna no jornal O Globo para desmentir a autoria da viralizada crônica Quase, atribuída a ele. É, na verdade, da autora Sarah Westphal Batista da Silva tal receituário moral para corações partidos, explicou. E alardeou: quatro entre cinco dos textos de Facebook assinados pela grife Veríssimo são casos de impropério.

 

A própria Martha dedicou-se a queixume parecido em sua coluna no jornal Zero Hora, na qual empenhou o heterônimo Fakebook, irritou-se com citações irresponsáveis e afirmou ter orgulho de estar distante das redes. Um ano depois, ela nos conta que permanece off-line do Face. Com um sorriso aberto por e-mail, já que “por telefone o resultado nunca fica muito legal”.

 

“Como não estou em nenhuma rede social, ouço falar e acho tudo meio surreal. Reconheço a abrangência, a homenagem, o carinho, mas muita coisa está atribuída a mim sem ser eu a verdadeira autora, a gente sabe como a internet espalha equívocos”, diz. Por um lado, admite, sente-se “honrada”. “Mas troco mil pessoas que leem textos deturpados por um único leitor que leia o texto original”.

 

Auxiliar administrativa em um hospital gaúcho, Deise Moré precaveu-se e criou método bibliográfico para a sua ainda miúda página Frases de Martha Medeiros. “Coloco tudo com referência para quem ler ter certeza de que se trata de um texto ou frase dela”, diz. Já Imelda Sitole agregou mais de 50 mil seguidores à sua Eu e Martha Medeiros sem uma única nota de rodapé — e, admite, nunca abriu sequer um livro da cronista. Explica-se: a estudante de sociologia de 20 anos é moçambicana e tornou-se fã, ela mesma, colhendo excertos na ventania da internet.

 

“Seleciono os textos essencialmente pela Wikipedia e por blogs, daí estou sujeita a erros. Nunca tive um livro físico de Martha, talvez peça para o meu pai”, planeja. Recentemente, vem se comunicando via e-mail com a autora que, diz, propôs lhe enviar versões digitalizadas de suas publicações. Enfim, quem sabe, largue mão dos “estilhaços soltos pelas redes” que abastecem o vendaval. “Só me resta torcer para que façam algum sentido e não fiquem muito piegas”, diz Martha.

 

NÃO INSTALE O REFRIGERADOR AO AR LIVRE <3¹

Num cosmos de regras turvas e letras miúdas em que Paulo Coelho tem mais likesque Shakespeare, que por sua vez é mais curtido que Stephenie Meyer, há de se perguntar: o que faz de um texto compartilhável no Facebook? Martha Medeiros arrisca: “A frase que mais me escrevem por e-mail é: ‘parece que tu lê meus pensamentos’ ou ‘parece que fui eu que escrevi’, ou seja, eu acabo refletindo o que muitos pensam e sentem, porém não conseguem expressar”. E diz mais: “Quando eles enviam meus textos para outras pessoas, um pedaço deles está indo junto”.

 

O escritor Fabrício Carpinejar, colecionador ativo de compartilhamentos, escritor de blog e Twitter, inequívoco mediaman, categoriza a resposta à questão que assombra a proliferação de likes: “O que faz com que estes textos sejam compartilhados é a empatia confessional, a capacidade de resumir paradoxos, dilemas urbanos e existenciais. Caio e Clarice, por exemplo, têm uma espécie de interlocução íntima, como se escrevessem um diário. E é próprio da rede a ânsia por equacionar a vida”, diz. “A gente está carente por notícias do nosso interior”.

 

“É um novo modo de ler e de pensar o texto”, professa Ana Cláudia Viegas, docente da pós-graduação em Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e estudiosa das interlocuções entre Literatura contemporânea e internet. Para a pesquisadora, trata-se de uma maneira estreante de leitura em que vale mais a troca de experiências que a admiração estética, cujo risco maior é de uma banalização do texto literário, incapaz de ultrapassar a fruição do “raso”. Seria, portanto, um desdobramento da prática literária.

 

“A Literatura, em qualquer meio, em qualquer época, é responsável por trazer novos olhares e formas de ver. Creio que, mesmo nesses novos suportes, ela permaneça cumprindo seu papel”, aposta a professora. Olhar caridoso cuja sombra esconde o mito da profanação. Arguto no debate sobre os efeitos da internet nos espaços de criação e veiculação literária, o escritor Michel Laub diz que o fenômeno é “sem importância” para um projeto político em que as letras têm valor artístico. Quando há fotinha e like, sugere, não há Literatura.

 

“Se o cara pega um trecho de Drummond e tira do contexto, ele não é um leitor de verdade. O leitor não vai gostar pelo que ele tem de edificante ou sentimental. Essas pessoas querem citar como podem uma foto de cachorrinho”, arrisca Laub. E se houver um ou outro literato blindado em altas prateleiras contra salvações do espírito, grandes verdades e carentes compartilhadores? “Não há um autor que não tenha uma frase de efeito. Posso tirar uma até do manual da minha geladeira”.

 

“Nestes textos há uma forte exposição do eu e da identificação. Não à toa, são frases intimistas que circulam da mesma forma que as frases de fundo religioso”, observa Ana Cláudia Viegas. Textos de romance ou bula de remédio, lançados como uma superfície de interseção entre valores da arte e do mundo prosaico. Que, se tomarmos o pensamento do filósofo Jacques Rancière, parece articular, com a mesma matéria-prima simbólica, uma parataxe entre formas a princípio incompatíveis de acessar o mundo sensível, típicas de um estado pós-industrial da cultura. “A abolição do princípio que repartia o lugar e o meio de cada uma (arte), separando a arte das palavras e das formas, as arte do tempo e do espaço”, escreve Rancière, ao comparar os ofícios de engenheiro e de poeta no livro O destino das imagens.

 

Ou, no mundo real, são os saudosos Power Points com impactantes ditames espiritual-emocionais, musiquinha e rosas brancas, que viraram compartilhamentos no Facebook, que por sua vez, enfim, tornaram-se releitura de marca das trocas de aforismos e frases de efeito. Atentas ao fenômenos das emotivas aspas literárias no Facebook, a publicitária Luiza Voll e a jornalista Daniela Arrais, sócias da empresa Contente, criaram um canal para a publicação das tais bulas emotivas, para o qual um dos objetivos expressos é exatamente lançar luz sobre a maneira como consumimos, com a praticidade de um miojo gigante, toda sorte de autoajuda. Das páginas Autoajuda do dia, no Face, no Instagram ou no Pinterest, as frases vêm de escritores mas também de letras de música e memes fofos, sempre em embalagem sofisticada que passa por crivo de curadoria.

 

“A gente começou a perceber que o que as pessoas mais compartilhavam eram frases muito motivacionais, fossem tiradas de livro ou da própria internet, às vezes de autor desconhecido, em busca de respostas para a vida, para o amor, para o trabalho”, conta Daniela. “Como muito dessa produção era estrangeira, quisemos trazer pra realidade da gente”.

 

Dito e feito, o mural de imagens-frases do Autoajuda do dia exibe uma sensibilidade cool e filtro semi-industrial, uma versão recauchutada de humildes profecias escritas, cuja idealização visual é de artistas gráficos e afins. Da velha Clarice a Jorge Mautner, passando por autores anônimos, cada pensamento é encampado por uma assinatura de designer ou de outras marcas de sites, estúdios e lojas. Uma pequena vitrine de verbos derretidos como manteiga em supermercado, ou talvez um conglomerado de comunicadores unidos por um cafuné de grife. Tipo “substitua consumo por autoestima”, by Oficina de Estilo. E dezenas, às vezes centenas, de amorosos likes.

 

A Literatura, feita pílula de superação emocional, teria se tornado uma ferramenta tão eficiente (e rentável de um jeito novo) quanto uma chave de fenda para as nossas almas? Há de se pensar como o contexto Facebook — e seu talento em dar um tapinha nas costas — pode impactar o consumo das letras. Em artigo publicado no The New York Times, o escritor Jonathan Franzen diz já no título que, seus doidinhos por cafuné, Liking is for cowards. Go for what hurts— ou, em português bom, Curtir é para covardes. Se joga!E que presenciamos, nas redes, uma “comodificação do amor”. O like vale muito mais (e destila muito mais amor) que uma chave de fenda.

 

Franzen discorre em uma visão talvez conservadora, certamente apocalíptica do que o Facebook reserva para as relações sociais. Para o autor, consumimos nossos gadgets como se em um relacionamento erótico desde os tempos da brilhantina, o que foi exponencializado num presente de libidinosos iPhones tomados por redes sociais cujos integrantes são todos espelhos homoafetivos de nós mesmos. Um amor, diz ele, de mentira, através do qual nos estimulamos freneticamente em busca de uma gota artificial de paz interior.

 

Ou seja, estes dispositivos teriam “substituído um mundo natural que é indiferente aos nossos desejos — um mundo de furacões e dificuldades e corações partíveis, um mundo resistente – por um mundo tão responsivo aos nossos desejos que parece, efetivamente, uma extensão de nós mesmos”. Um mundo que, no sétimo dia, viu nascer o like — em sua assertiva, “um substituto comercial para o amor”. No caso das graciosas frases de efeito, amor que paga amor com amor. Ou, quem sabe, com imagens de cachorrinho e sacras letrinhas serifadas.

 

O FACEBOOK É UMA COMUNIDADE DE PARTILHA DE SONHOS <3²

O crítico americano Jacob Silverman poderia ter pensado, enfim: e se a catástrofe idealizada por Franzen — da qual, ao que parece, só um amor real pode nos salvar — matasse a literatura produzida aqui e agora? No artigo The epidemic of niceness in online book culture(por aqui, A epidemia do SEU LINDO <3 na cultura literária online), publicado na revista Slate, Silverman afirma que o like basicamente sepultou o debate.

 

“O problema de curtir é que é um beco sem saída para a crítica, que não começa uma conversa. É uma opinião sem evidência — ou, na verdade, uma postura sem opinião”, escreve. Com base em casos como o da escritora americana Emma Straub, descoberta a partir de brilhantes tuítes, o jornalista protesta contra o que acredita ser uma prática promíscua de afetos também na esfera literária, que trata “ofensa e discordância como tóxicos”, uma ditadura do amor mútuo e do não-seja-deselegante-em-falar-mal-do-colega, “como se todos os livros fossem maravilhosos”. “Uma cultura literária melhor não seria tão dependente da estima pessoal e do reforço mútuo”, escreve.

 

Ilustração por Raíza Bruscky

Em artigo publicado na Revista Piauí, intitulado Em defesa da obra, o escritor Bernardo Carvalho desce ainda mais no poço e recorre a Jacques Rancière para polemizar certo colapso da crítica canônica em meio a um turbilhão de vozes leigas linkadas em rede com os autores contemporâneos. “Hoje, o autor por excelência é supostamente aquele que explora o que já lhe pertence, a sua própria imagem”, escreveria Rancière em sua dosagem política da Literatura. No que Carvalho expande: “A autoria também passou a ser vista como sinônimo de visibilidade, uma forma privilegiada de estar e aparecer no mundo, em detrimento das obras. E são as grandes corporações da internet que acabam colhendo os frutos dessa estratégia, são elas que nos proporcionam afinal o sonho de sermos célebres autores de nós mesmos”.

 

Entre apocalípticos e integrados, e em meio a uma discussão apaixonada sobre a força ou o esmorecimento da crítica em tempos de Facebook, que rodou até a revista Veja, Michel Laub vem publicando em seu blog textos sobre os novos ares da literatura do like, quando enfim, estica a vara: o que o Facebook vai fazer dos novos textos literários? A inflamação dos egos de autores, retumbante se comparada ao tamanho social que, diz, vinham assumindo nas últimas décadas, bem como o deslocamento do eixo de intimidade travada com os leitores, seriam potentes motores deste novo momento.

 

“No que se diz e na forma como isso é dito será preciso ainda mais esforço para construir algo além do testemunho ou experiência pessoal, uma exigência que torna ainda mais duro — e mais compensador quando o resultado é positivo — o caminho para se transmitir a quem lê a verdade de quem escreve”, elabora Laub. E diz à reportagem: “Em termos instrumentais, não muda nada. Você só está lendo numa outra plataforma. Já a produção de textos está mudando e vai mudar ainda mais por causa da interatividade. É bem possível que se mude a prosa de não ficção, por causa do hábito. E isso provavelmente vai ter impacto na Literatura, seja pela proximidade ou, ao contrário, pela recusa da linguagem corriqueira”.

 

Por enquanto, já assistimos a uma talvez incipiente legitimação de redes sociais como plataformas privilegiadas para a inventividade literária. A realização do 1º Festival de Ficção do Twitter, no fim de 2012, reuniu escritores de todos os continentes em torno da hashtag #twitterfictione de listas produzidas via curadoria, os quais desenvolveram narrativas em 140 caracteres ao longo de uma semana. Carpinejar, talvez o mais célebre autor de tuítes brasileiro, delicia-se com a rede na exata medida em que ela imiscui papéis e índices de real ou ficcional. “O que eu mais gosto da ficção do Twitter é a criação de personagens. Não são autores criando universos, mas autores também inventados. Se tudo ali é uma versão, por que não inventar?”

 

Acabou-se, enfim, o lugar do escritor recluso, um gênio romântico fetichizado que atravessava páginas a fim de nos revelar, em segredo, o mundo? Há quem rejeite, mesmo do alto das novas ondas literárias, que o Face está com essa bola toda. Que acha que não enfraquece o exercício da crítica — pelo contrário. E que, em vez de esvaziar, agiganta a Literatura. “A rede social não é um ambiente apto para qualquer discussão aprofundada”, diz o escritor Antônio Xerxenesky. “Mas a internet de modo algum reduz a qualidade da crítica. Pelo contrário, dá voz para as pessoas que não teriam voz, para que livros ignorados na grande mídia repercutam”.

 

Xerxenesky, que usa blog, redes sociais e não larga a cultura pop, é no entanto um cara que não vê na internet suporte adequado para publicar ou consumir ficção. “Não leio de ninguém e nem escrevo. Prefiro o Kindle ao livro de papel, mas internet tem distração”. Acredita, porém, em bons ventos literários para o Twitter. E que seria quem sabe improvável um escritor calouro despontar na celebridade das letras sem se tornar um relações públicas de si mesmo, desfilando obras na passarela dos likes. Ou não seria? “Se surgir um gênio, os livros acabam se impondo”, adianta Laub. Pois que venha, minar a inocência do pensamento, o próximo “coraçãozinho”.

 

1 Manual do refrigerador Dako, 2 Fabrício Carpinejar