O político abolicionista foi também um dos principais intérpretes do Brasil
Convencionalmente, institui-se, na academia, que, em linhas gerais, as três primeiras décadas do século 20 no Brasil são períodos cruciais para a expansão do “sentimento” de pertencimento a uma nação. Podemos citar como exemplo as várias interpretações do Brasil que surgem nessa época (com intelectuais como Euclides da Cunha, Manuel Bomfim, Silvio Romero, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda — que procuram desvendar, cada um à sua maneira, a ideia de ser brasileiro e o que, afinal, é o Brasil); o modernismo literário, em seu híbrido de vanguarda e tradição; e a política cultural do Estado Novo, que legitimou o samba como símbolo da afetividade nacional estabelecendo através dele a identificação social .
Um outro “marco zero” da interpretação do Brasil, no entanto, encontra-se no prolífico pensamento de Joaquim Nabuco, cujo centenário de morte, a ser comemorado em janeiro, ressuscita problemáticas de sua produção intelectual. Para historiadores como Evaldo Cabral de Mello, que assina o prefácio dos seus diários, publicados em 2005 pela editora Bem-te-vi, Nabuco foi o primeiro intelectual a pensar a formação histórica do Brasil a partir da escravidão. Não na perspectiva culturalista, ou contemporizadora, amplamente difundida na obra de Gilberto Freyre, diga-se. O regime servil é analisado, sem complacência, como uma verdadeira instituição que moldou o ethos brasileiro ao definir a nação economicamente, politicamente e organizacionalmente. E como bem observa o historiador, grande parte do pensamento social do Brasil se debruça sobre a herança dessa reflexão.
Vejamos que as características biológicas (raça) e geográficas (clima) perpassam as análises de Euclides da Cunha, considerado como o autor inaugural da interpretação do Brasil. Nele, há, sobretudo, o determinismo biológico como marca da sua análise do homem sertanejo — uma influência das teorias positivistas em destaque naquele momento –, marcado pela fatalidade da região. Em Bomfim (1905), tal determinismo ainda pode ser encontrado, como crítica, no entanto, ao confrontar o atraso latino-americano ao caráter parasitário da metrópole (escravista). Em Gilberto Freyre, observamos um quadro pictórico de referências biológicas e psicológicas que mostra o resultado da povoação do nosso território por europeus contemporizadores que “minimizariam” as características mais cruéis do sistema escravocrata. Sérgio Buarque representa o grande primeiro corte dessa dominante cultural. Ao utilizar a metodologia do Tipo Ideal weberiano, Holanda aplica elementos morais do colonizador português à especificidade das investidas de colonização europeia (francesa, holandesa, espanhola e portuguesa). Utilizando conceitos como o de “cordialidade”, Sérgio Buarque de Holanda, ainda, no entanto, se inscreve no panorama de intelectuais que remetem à dicotomia “colônia x metrópole”, ou seja, à própria história do processo civilizador no Brasil. Podemos também citar, num bloco mais conservador, os estudos de Oliveira Viana e Nina Rodrigues, corroborando a longa tradição de escritos sobre raça, geografia e cultura no Brasil.
interesse acadêmico
Principalmente ao contrário de Freyre, que tem passado por afãs acadêmicos sazonais, Joaquim Nabuco é um dos autores mais estudados nas instituições universitárias, pela ubiquidade de sua produção. Sobretudo pelo tema da escravidão, sobre a qual discorreu em vários livros e opúsculos, entre eles, O abolicionismo, sua obra mais popular. Nabuco, seus pensamentos e obras, constituem, aliás, um objeto de análise ubíquo na sociologia brasileira, pois reúne paradoxos e, digamos, “fetiches” que os sociólogos adoram debater. Um deles, o próprio hibridismo de gêneros com os quais criou e disseminou suas ideias. O abolicionismo, inclusive, escrito em Londres num período de ostracismo e exílio político, é uma obra que expõe as bravatas características de todo o panfleto juvenil (embora já conta mais de 30 anos na época de sua publicação). Sua narrativa, com teor propagandista, é construída emotivamente, pelo enfoque no drama humano da escravidão, como podemos observar em determinado trecho: “Já existe, felizmente, em nosso país, uma consciência nacional — em formação, é certo — que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para a qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronte. Essa consciência, que está temperando a nossa alma, e há de por fim humanizá-la, resulta da mistura de duas correntes diversas: o arrependimento dos descendentes de senhores, e a afinidade de sofrimento dos herdeiros de escravos”.
Para algumas correntes, o livreto não passa de uma prosa que combina jornalismo e literatura; sem substancialidade científica ou teórica que tenha aprofundado a relação entre o regime escravocrata e outras características sociais da formação histórica brasileira. No entanto, O abolicionismo goza do status de obra pioneira e, mais que isso, de uma literatura perene, que não se encerra nas doutrinas da moda, como o positivismo, bastante influente e dominante no pensamento social brasileiro. Nabuco foi além da questão da raça para enfatizar o aspecto organizacional da escravidão, em sua relação com a propriedade da terra, o comércio e o Estado, revendo outros modos de exploração que marcaram a História, como a escravidão na Antiguidade Clássica. “A fortuna crítica de Nabuco superou a de seus contemporâneos, como Rui Barbosa e o barão do Rio Branco, o que pode ser atribuído, inclusive, à sua atuação à frente da mais importante reforma sócioeconômica realizada no Brasil, a Abolição, e também ao encanto de uma personalidade que fascinou os contemporâneos e fascina até hoje”, observa Evaldo.
Além dos seus antagonismos pessoais (Nabuco era abolicionista e defensor da monarquia), o intelectual destaca-se, assim como Freyre, pela biografia pessoal singular. Filho de aristocratas de origem baiana, portanto, dono de vastas terras e engenhos, Joaquim Nabuco viveu a escravidão sob o seu olhar de menino. Foi amamentado por ama de leite, negra, e acompanhado na meninice pela preta Ana Rosa, da qual tinha medo. Nas terras da família, aliás, esboçam-se as primeiras ideias sobre a reforma que deveria resultar numa sociedade mais justa e democrática, seguindo a boa e velha cartilha iluminista. A solidariedade altruísta se reveste de bandeira ideológica em sua campanha pela abolição da escravatura, como reforma modernizadora do Brasil. Joaquim Nabuco anteciparia, dessa forma, o enfrentamento de nossa modernidade: um processo que ocorre na economia a ser modernizada e passa, na cultura, pelo antagonismo entre a influência da Europa “civilizada” e os elementos tradicionais da nacionalidade.
modernização no brasil
A tradição, que nas sociedades pré-modernas conferia ao passado o status de estabilização social pelos símbolos que perpetuavam as experiências das gerações, é aqui assumida de forma diferente da reflexividade europeia. Para Anthony Giddens, a tradição era uma forma de integrar socialmente as comunidades e uma forma de lidar com o espaço-tempo, conectando o passado ao presente e futuro. Era uma monitoração da ação. Na modernidade latino-americana, a tradição desempenha um papel de reconhecimento social: o que somos e, a partir do espelho a nós apresentado pelas instituições políticas, o que faremos com nossa memória cultural. No contexto da modernização brasileira, a tradição surge como plataforma de um discurso político proferido pelo Estado, que se torna brasileiro e nacional ao defender a história seminal do seu povo.
De certo modo, ao estudar, mesmo que no âmbito macroeconômico, os desdobramentos da formação nacional, Joaquim Nabuco também não deixa de antecipar uma outra problemática recorrente ao longo do século 20: a interpretação das classes subalternas pela elite econômica, o que será evidenciado em Gilberto Freyre, em sua releitura da escravidão a partir da sua perspectiva de classe – que, diga-se, associa-se à decadência da cultura canaviera. Como discurso oficial, essa absorção da realidade cultural das classes subalternas se consolida à medida que uma elite (intelectual ou política) a organiza através da sua própria autorreferência como autoridade e detentora de um poder – seja a verdade em torno do que é afinal a cultura brasileira ou que fazer politicamente com essas manifestações nas quais resiste uma lógica não contrária mas distante da noção de progresso embutida no ideal de modernização. O intelectual forma, assim, o núcleo de onde se sobressai o humanismo racionalizado, e de onde se expõe, para a constatação pública, a memória do País.
Uma das questões mais intrigantes da fortuna de Nabuco é como, apesar de ter sido um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e assinar uma considerável produção literária, a literatura não ganhou reconhecimento nas análises sobre a sua obra. Uma das chaves para esse esquecimento pode ser encontrado na observação de Evaldo Cabral de Mello: “para o intelectual, a ação política é esterelizante. Daí, que nada como um bom ostracismo seja tão produtivo para, como indica o caso de Nabuco, que, marginalizado pela proclamação da República, pôde dispor do lazer suficiente para elaborar a obra cimeira da historiografia do Segundo Reinado, Um estadista do Império. O Intelectual que mergulha na vida política costuma ficar sem tempo suficiente e até sem gosto para registrar suas impressões e reações aos acontecimentos que se desenrolam ao seu redor”.
Por outro lado, seus diários, correspondências e escritos avulsos, que contemplam, sobretudo, a questão abolicionista, ganham interpretações à luz de sua atuação como diplomata e jurista. Vale salientar, ainda, que Joaquim Nabuco é um dos últimos bastiões de um campo cultural, marcado pelo imbricamento entre os gêneros literários e jornalísticos e a atividade política.
Joaquim Nabuco soube entender o drama nacional
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