Ilustração por Hallina Beltrão

 

Numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero me lembrar, não faz muito tempo vivia um fidalgo desses de lança no cabide, adarga antiga, pangaré magro e galgo corredor. Um cozido com mais carne de vaca que de carneiro, salpicão na maioria das noites, ovos fritos com torresmo aos sábados, lentilhas às sextas, algum pombinho de quebra aos domingos, consumiam três partes de sal renda. O resto dela gastava com um saio de lã cardada, calções de veludo para as festas e chinelos do mesmo tecido, e nos dias de semana se honrava com a melhor das burelinas. Tinha em casa uma criada que passava dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte e um rapaz pau para toda obra, que tanto encilhava o pangaré como empunhava o podão. Nosso fidalgo beirava os cinquenta anos. Era de compleição rixa, seco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça– Trecho da nova tradução de Dom Quixote.

Ao pensar emtraduzir Dom Quixote, eu tinha, entre inumeráveis preocupações pequenas, três grandes: manter a fluência, o ar antigo e o humor. Mas, note-se, sem que a maior parte dos leitores fosse obrigada a consultar o dicionário de duas em duas linhas. Foi por essas e outras que gastei dois anos no trabalho.

Primeira preocupação: se em português o texto de Cervantes não tivesse a mesma energia e brilho, minha tradução seria um fracasso completo. Ler Cervantes em busca apenas do sentido é como ler sobre Cervantes, não? Daí eu ter me empenhado para encontrar em português um ritmo, uma atmosfera, uma melodia em que Cervantes se sentisse em casa.

Segunda: os quatrocentos anos entre nós. Hoje Cervantes não é fácil nem para os espanhóis, basta ver nas últimas edições de Dom Quixote a quantidade de notas de rodapé explicando o que ele queria dizer. As palavras envelhecem, perdem e ganham significados, trocam de sexo, se tornam solenes ou ridículas, ou caem no limbo, isto é, vivem apenas nos dicionários e na cabeça dos especialistas. Eu decididamente não queria fazer uma tradução para especialistas. Afinal, eles podem ler o original.

Então, como manter o ar antigo sem ser ilegível? Se o escudo do cavaleiro é um tipo específico, adarga, paciência. Mas pra que usar “acaçapar” se “esconder” é palavra mais antiga e está em melhor forma? Esse raciocínio esteve na base de minhas escolhas. Por via das dúvidas, estabeleci o ano de 1900 como limite. Não usei nenhuma palavra que tenha entrado para o português escrito depois dessa data.

Mas há palavras e expressões que, mesmo sendo comprovadamente antigas, soam modernas. É o caso de “esperto”, que evitei, apesar da tentação. Ou a expressão “forçar a barra”, que tem o mesmíssimo sentido de “tirar la barra”. Mas o leitor na certa iria sentir que eu estava forçando a barra. Quer dizer, que Deus nos livre, muitas vezes tudo depende de nosso ouvido.

Outro ponto são palavras do tipo de “requebro” e “discreto”, por exemplo. Quantos leitores hoje se dariam conta de que os requebros de um cavaleiro não são rebolados, mas galanteios? Nos dois volumes achei apenas uma frase em que a palavra discreto é empregada no sentido de reservado. No mais, sempre no sentido de inteligente, sagaz. Traduzir literalmente nesses casos seria trazer para o português uma obscuridade que não há no original. Ou não havia no tempo de Cervantes, porque as edições modernas estão crivadas de notas de rodapé para esclarecer coisas assim.

Terceira preocupação: se o cômico é o gênero mais difícil, como garante Alberto Moravia, como fica a tradução dele? Não penso que um tradutor tenha de ser um humorista para encarar Cervantes, mas alguma intimidade com o gênero certamente ajuda. Cotejando o original com a tradução dos viscondes de Castilho e Azevedo, descobri que dezenas de piadas foram estragadas, em geral porque se perderam a concisão e a agilidade, ou porque os nobres nem notaram que era uma piada. No capítulo XII, do primeiro volume, um pastor diz “estil” e Quixote corrige: “estéril”. O pastor responde: “Estéril ou estil, sai tudo pelo mesmo lugar”. Os nobres: “Estéril ou estil, tudo vem a dar na mesma”. Não me parece que haja dúvida sobre o endereço.

Todo o humor da cena dos moinhos de vento, por exemplo, está na ação. Traduzi-la não é, então, mais complicado que traduzir uma cena trágica. Basta não estropiar a desenvoltura do texto. Mas o Quixote tem muitos jogos de palavras. Mesmo o espanhol e o português sendo línguas muito parecidas, grande parte dessas brincadeiras se perde se você não tem a ousadia e a astúcia de recriar.

No capítulo XXVI, do segundo volume, depois que dom Quixote destroça a espadadas o teatro de bonecos, mestre Pedro fala “das feituras que me desfez”. Mesmo entendendo a piada sem ter de consultar o dicionário, temos outro problema: a palavra “feitura” perdeu seu ambiente, se tornou um tanto ridícula. Daí parti pro drible: “Se o senhor dom Quixote me pagasse uma parte do que seu feito desfez…”.

Há ainda a enxurrada de ditados de Sancho. Há ditados espanhóis de compreensão imediata no Brasil, alguns até são os mesmos com um que outro jogo de corpo, mas há muitos que não fazem sentido nenhum, ou perdem as rimas e a graça. Gastei horas e horas de pesquisa atrás de ditados equivalentes. Equivalentes, note-se, não só no sentido, mas no humor e na agilidade. Umas duas ou três vezes, no desespero, tive de adaptar, como no caso de “não importa com quem nasces, mas com quem paces”, que se tornou “não importa a casta, mas com quem se pasta”.

E as expressões? Na cena famosa do escrutínio da biblioteca, o padre manda a criada queimar os livros grandes. Aí se descreve, literalmente: “Não se disse a tonta nem a surda, mas a quem tinha mais gana de queimá-los que de tecer um pano, por grande e fino que fosse”. “Echar una tela” é tecer um pano e ao mesmo tempo fazer amor. Eu prefiro nem adjetivar a tradução dos viscondes de Castilho e Azevedo: “Não o disse a nenhuma tonta nem surda, que mais vontade tinha ela própria de os ver queimados que de botar ao tear uma teia, por grande e fina que fosse”. “Tela” também pode ser teia, mas cadê o sentido aqui? E a graça, cadê? Penso ter ficado mais perto deles: “Não falou a boba nem a surda, mas a quem tinha mais gana de queimá-los do que pintar e bordar, fosse lá o quê ou com quem”.

Por esses exemplos, fica claro que uma tradução não é uma luta que a gente ganha por nocaute, mas por pontos. Daí a necessidade de tentar não desperdiçar nenhum pontinho.

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Sonha Cervantes, sonha Pancho, sonha o leitor